quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Textos Editoriais Marvel NOW! 5 - Homem-Aranha Superior 9

Na semana em que chegou às bancas a última edição mensal da Marvel publicada pela Panini Espanha no mercado português, aqui deixo o quinto e último texto que escrevi para essas revistas, sem saber na altura que seria o último. 
Esta não foi a primeira aventura da Panini Espanha na edição da Marvel em Portugal, pois em meados da década de 2000 tinham lançado dois ou três livros, entre os quais Os Eternos de Neil Gaiman e Romita Jr, em edições produzidas pela equipa da BD Mania e que apenas tiveram distribuição nas lojas FNAC.
Esta segunda tentativa não teve vida muito mais longa e acabou pelos mesmos motivos: fracas vendas, motivadas por uma escassa divulgação e por uma distribuição deficiente, que nem sequer previa a distribuição nas livrarias, ou a encomenda de números atrasados. Extinguiram-se assim, de forma ainda mais discreta do que começaram, as revistas que davam a conhecer aos leitores portugueses com uma qualidade muito superior à das edições brasileiras, a fase mais recente do Universo Marvel, deixando várias histórias por terminar. 
O futuro (próximo) dirá se alguém vai voltar a pegar na Marvel em Portugal em termos de publicações mensais, mas a fase Marvel Now! em português de Portugal, acabou agora. 
Resta-me agradecer ao José de Freitas, meu antigo patrão na Devir e amigo de sempre, o convite para colaborar neste projecto, escrevendo rigorosamente sobre o que me apeteceu e quando me apeteceu.   


ASSUSTADORA SIMETRIA

Tyger Tyger, burning bright, 
In the forests of the night; 
What immortal hand or eye, 
Could frame thy fearful symmetry?

Assim começa Tyger, o famoso poema de William Blake que, para além de ser o mais conhecido trabalho do poeta inglês, foi sendo objecto de citação e homenagem em diversos media, desde a música - servindo por exemplo de letra a uma canção dos Tangerine Dream - até ao cinema e televisão, e principalmente, a Banda Desenhada. Aqui, além de ser citado ao longo do 5º capítulo de Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons intitulado precisamente Fearful Simetry, está também em grande destaque no clássico A Ultima Caçada de Kraven, uma história do Homem-Aranha, de J. M. De Matteis e Mike Zeck, recentemente editada em Portugal pela Levoir, numa colecção distribuída com o jornal Público. A história, que teve precisamente como título de trabalho Fearful Simetry, usa abundantemente o poema de Blake, numa versão ligeiramente modificada, em que o tigre (tyger) dá lugar à aranha (spyder), que funciona como uma espécie de mantra, que pontua e ilumina os momentos mais importantes da narrativa,
E foi precisamente a (re)leitura de A Última Caçada de Kraven para escrever o editorial desse volume, que me chamou a atenção para os grandes pontos de contacto entre o clássico de De Matteis e Zeck e a saga do Homem-Aranha Superior, criada por Dan Slott, que podem ler nesta revista. Comparando as duas histórias, há diversos elementos em comum  que revelam essa simetria. Uma simetria que, não sendo propriamente assustadora, não deixa de ser, no mínimo, curiosa…
A verdade é que a história de um vilão que mata o herói e assume o seu lugar, está longe de ser propriamente original. O próprio De Matteis já em meados da década de 80, tinha proposto à Marvel uma mini-série de Wonder Man, em que este era enterrado e acabava por conseguir libertar-se da campa, mas o editor Tom De Falco rejeitou a proposta, o que levou o escritor a reformular a história e e levá-la à DC, transformada numa aventura do Batman, em que o Joker mata o Batman, o que o deixa curado… Mais uma vez, a proposta seria rejeitada, neste caso, por ter alguns pontos de contacto com A Piada Mortal, que Alan Moore estava a preparar na altura. Só quando De Matteis reformulou novamente o conceito e o levou outra vez à Marvel, transformado numa aventura do Homem-Aranha, é que a história foi finalmente aceite, com o sucesso que conhecemos.
Outro exemplo é dado por Mark Millar em Wolverine: O velho Logan, também editado em Portugal pela Levoir, em que o Caveira Vermelha, depois de matar o Capitão América, não só assume o seu lugar, mas passa a usar o uniforme do Capitão, como símbolo da vitória final sobre o seu maior adversário
Mas, no caso da história de Dan Slott, há mais do que um ponto de partida semelhante, até porque o Kraven de De Matteis é o primeiro a considerar-se “superior” ao Homem-Aranha original, quando refere “Massacrei a Aranha. Transformei-me nela. Cacei como a aranha caça… consumi as suas presas. Provei que sou superior a ela em todas maneiras.” Ou seja, tanto Kraven, como o Dr. Octopus não se contentam em vencer e matar o Homem-Aranha. Decidem ocupar o seu lugar e desempenhar a sua missão, mas de uma forma mais eficiente, sem as restrições morais que afectam Peter Parker, e que por isso, eles consideram superior. Algo que os resultados iniciais da actuação de ambos, parece confirmar.
A grande diferença está na motivação de ambos e na forma como se relacionam com Peter Parker, o homem por trás da máscara do Homem-Aranha. Kraven vê o Homem-Aranha como um símbolo, não tendo qualquer interesse em descobrir a identidade secreta do herói. Apenas pretende derrotá-lo e tomar o seu lugar, o que consegue, mas a vitória deixa-o de tal forma vazio que considera que já não tem mais nenhum motivo para viver…
 Já o Dr. Octopus quer ocupar literalmente o lugar de Peter Parker, em todos os sentidos (mesmo que resista à tentação de se envolver com Mary Jane…) e a sua actuação é bastante mais linear e lógica do que a do emotivo Kraven, tal como o seu empenho em cumprir as funções do Homem-aranha de uma forma superior é bem mais acentuado. Esta diferença é natural, pois se Peter Parker e Sergei Kravinoff pouco têm em comum, já Parker e Otto Octavius são personalidades simétricas que optaram por caminhos diferentes (o caminho do mal, no caso do Dr. Octopus), mas ambas têm bem a noção de que grandes poderes implicam grandes responsabilidades. Responsabilidades que Otto Octavius não tem enjeitado, usando o corpo e os poderes de Peter Parker com os mesmos objectivos, mas com uma eficácia superior.
Texto originalmente publicado no nº 9 da revista Homem-Aranha Superior, de Ourtubro de 2014.

sábado, 22 de novembro de 2014

Universo Marvel 19 - Vingadores Vs X-Men Vol1: O dia da Fénix


VINGADORES E X-MEN NUM CONFRONTO 
QUE VAI MUDAR A FACE DO UNIVERSO MARVEL


UNIVERSO MARVEL VOL 19
Vingadores Vs X-Men  Vol 1 – O Dia da Fénix
Argumento – Brian Michael Bendis, Jason Aaron, Ed Brubaker, Jonathan Hickman e Matt Fraction
Desenhos – John Romita Jr., Olivier Copiel e Andy Kubert

 A colecção Universo Marvel aproxima-se do fim com a publicação da primeira parte da saga que concretiza o sonho de milhares de fãs da Marvel que sempre imaginaram como seria um confronto entre os Vingadores e os X-Men, os dois maiores grupos de heróis da Casa das Ideias.
 Este confronto, muitas vezes imaginado mas só agora concretizado é a consequência lógica dos acontecimentos que os leitores do Público poderam acompanhar em sagas como Dinastia de M, que reduziu drasticamente a população de mutantes, ou Vingadores, o fim de uma Era. Sagas inesquecíveis que alteraram profundamente o equilíbrio de forças do Universo Marvel, levando a uma profunda reorganização de que o Argumentista Brian Michael Bendis foi o principal arquitecto e que se concretiza finalmente nesta história, em que o regresso da Força Fénix, que levou à morte de Jean Grey na sequência do clássico A Saga da Fénix Negra, publicada numa anterior colecção dedicada à Marvel, vai levar ao confronto entre os X-Men, liderados por Scott Summers, o Ciclope e por Emma Frost, após a morte do Professor Xavier e os Vingadores, em cujas fileiras está Wolverine que durante décadas foi o mais popular dos X-Men e que agora se vê forçado a defrontar os seus antigos companheiros
E se esta saga, cuja primeira parte poderemos ler na próxima quinta-feira, reúne os maiores heróis da Marvel, em termos de talento criativo a situação não é muito diferente, pois é difícil reunir numa mesma história argumentistas do calibre de Jason Aaron, Ed Brubaker, Jonathan Hickman e Matt Fraction. Nomes que estão indiscutivelmente entre os maiores escritores a trabalhar no mercado americano de BD, com um trabalho de altíssima qualidade que não se restringe às histórias de super-heróis.
Em termos gráficos, o talento também está à altura da importância do acontecimento, como o atesta a presença de um dos maiores Ilustradores da Marvel das últimas décadas: John Romita Jr., desenhador que ao longo de uma carreira de mais de 40 anos já passou pelas principais séries da Marvel e que aqui tem mais uma oportunidade de voltar a desenhar os principais heróis da Casa das Ideias, reunidos numa história épica. Mas Romita Jr. não é o único desenhador a ilustrar este confronto entre os Vingadores e os X-Men, contando com a companhia inspirada de Olivier Coipel, nome bem conhecido dos leitores destas colecções graças ao seu trabalho em Dinastia de M, Thor renascido e Cerco, e ainda de Adam Kubert, filho do lendário Joe Kubert, que mais uma vez prova estar à altura do legado do pai.
Em suma, um elenco de luxo para uma história à altura, que encerra com chave de ouro esta movimentada viagem pelo Universo Marvel.
Texto publicado no jornal Público de 07/11/2014

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Universo Marvel 18 - Wolverine: Evolução


UNIVERSO MARVEL VOL 17
Wolverine: Evolução
Argumento - Jeph Loeb
Desenhos - Simone Bianchi

Este foi o último editorial que escrevi para a colecção Universo Marvel. Um texto que surge no blog mais tarde do que o costume, porque o Amadora BD não me deixou grande tempo para actualizações. Mas passada esta fase mais complicada, que se prolonga por este fim-de-semana graças ao Fórum Fantástico, prometo actualizar o blog com maior frequência.



DA ORIGEM DAS ESPÉCIES

Jeph Loeb, um dos criadores mais presentes nas diversas colecções que a Levoir tem dedicado aos super-heróis americanos regressa neste volume com uma história que explora mais a fundo a relação entre Wolverine e Dentes de Sabre, que têm aqui um violento e espectacular confronto final, numa história que procura ainda fazer alguma luz sobre as origens misteriosas dos dois personagens, cujos destinos parecem estar entrelaçados.
Quando Wolverine surgiu pela primeira vez na revista americana The Incredible Hulk 180, no ano de 1974, ninguém sabia o que o destino reservava a esta personagem.
Nessa história, em que Wolverine se alia ao Hulk para derrotar Wendigo, o misterioso herói já se gabava constantemente das suas habilidades, em especial das suas garras letais cobertas por adamantium, ficando célebre a frase: “ sou o melhor naquilo que faço”. A palavra mutante ainda não tinha entrado do vocabulário dos leitores e esta primeira aparição com o seu uniforme azul e amarelo não foi o suficiente para o classificar com sendo herói ou vilão. Mas foi a sua inclusão nos X-Men, pela mão de Len Wein em Giant Size X-Men # 1, e o posterior destaque que Chris Claremont lhe dá, aquando da remodelação do grupo de mutantes que o deu verdadeiramente a conhecer aos leitores. A partir desse momento, Logan, o homem misterioso que nada sabia do seu passado, rapidamente conquistou os leitores, tornando-se rapidamente o mais popular dos X-Men, estatuto que Eu, Wolverine, a mini-série de Claremont e Frank Miller ajudou a consolidar.
Já Dentes de Sabre surge pela primeira vez no nº 14 da revista Iron Fist, criado por Claremont e John Byrne, surgindo como adversário recorrente de Danny Rand, o Punho de Ferro. Só quando Claremont aproveitou a personagem como inimigo dos X-Men, na saga Massacre Mutante, de 1986, e declarou retroativamente que o Dentes de Sabre que Danny Rand enfrentou em Iron Fist # 14 era um mero clone, com capacidades inferiores ao original, é que Dentes de Sabre surge como Némesis de Wolverine. Uma relação de dois mutantes com capacidade regenerativa e com uma acentuada dimensão animal e selvagem, que Wolverine procura sublimar e controlar e que Dentes de Sabre assume sem quaisquer restrições. A forma como os dois mutantes funcionam como negativo um do outro, é acentuada numa entrevista em Claremont declara que a relação entre eles é uma relação de “pai e filho. É por isso que Dentes de Sabre sempre considerou Logan como uma fraca cópia em relação ao seu original. O outro elemento fulcral da minha abordagem da relação entre eles, foi que, em toda a vida deles, Logan nunca conseguiu derrubar Dentes de Sabre num combate sem regras”.
Esta saga explora o capítulo final do confronto entre os dois mutantes, que descobrimos ser resultado de uma guerra eterna entre diferentes ramos da evolução humana, após a descoberta de vestígios arqueológicos que provam a existência de um ramo lupino, de que Wolverine e Dentes de Sabre são descendentes e que através do misterioso Romulus pretende recuperar a posição perdida na cadeia evolutiva.
Mas o grande destaque deste volume vai para o trabalho do desenhador italiano Simone Bianchi. Nascido em 1972 na Itália, em Lucca, cidade que alberga desde 1966 o mais antigo Festival de Banda Desenhada europeu. Grande fã dos super-heróis americanos, que já desenhava ainda antes de saber ler ou escrever, Bianchi publicou a sua primeira tira cómica aos 15 anos, no jornal Il Tirreno, iniciando uma colaboração regular com a imprensa, publicando cartoons e ilustrações. Decisivo para a sua carreira na BD foi o encontro em 1994, com Claudio Castellini - famoso desenhador italiano, que para além do seu trabalho para a editora Bonelli, onde era um dos desenhadores regulares de Dylan Dog, desenhou também Conan e o Surfista Prateado para a Marvel - que se tornou seu professor e mentor, ajudando-o a arranjar trabalho na indústria em editoras como a Phoenix, Comic Art e a Bonelli. Uma estreia promissora que lhe permitiu ver o seu trabalho exposto pela primeira vez no Festival de Lucca de 1998 e desenhar uma aventura do bárbaro Conan para a Marvel Italia no ano seguinte.
Para além da BD e de uma série de ilustrações para capas de discos e de revistas e de trabalhos como consultor visual para empresas de publicidade, estúdios de animação em 3D e companhias produtoras de role play como a Fantasy Flight Games para quem trabalhou na concepção do jogo Dragonstar, Bianchi inicia também uma interessante carreira como professor, primeiro como assistente de Ivo Milazzo (o criador de Ken Parker) numa cadeira de Banda Desenhada na Academia de Belas-Artes de Carrara e mais tarde, como professor a tempo inteiro da disciplina de Anatomia na Banda Desenhada, da Scuola Internazionale di Comics de Florença.
2004 revelou ser um ano decisivo para Bianchi, pois a sua estreia em álbum dá-se em Janeiro desse ano com Ego Sum, título editado em Portugal pela Vitamina BD, que lhe valeu o prémio de melhor desenhador em Lucca e uma presença no Festival de Angoulême do mesmo ano para promover a edição francesa do seu livro, onde conheceu Sal Abbinanti, o agente de Alex Ross, que se torna também seu agente. Nesse mesmo Verão vai viver para Nova Iorque, onde conhece o desenhador Mike Bair, que o apresenta ao editor Peter Tomasi, que lhe propõe trabalhar com Grant Morrison, na mini-série Shining Knight, integrada no ambicioso projecto Seven Soldiers of Victory, em que Bianchi trabalha lado-a-lado com ilustradores como J. H. Williams III, Cameron Stewart e Frazer Irving.

Embora tenha ilustrado antes algumas capas da revista X-Men Unlimited, a sua estreia como desenhador de uma série regular da Marvel, dá-se em 2007, com a história que têm nas mãos, uma saga em seis capítulos escrita por Jeph Loeb, estreada no nº 50 da revista do Wolverine. E o próprio Leb é o primeiro a não poupar nos elogios a Bianchi, dizendo: “como fã de BD estou sempre à espera do próximo grande artista. Quando Bianchi apareceu, o seu trabalho era tão dinâmico e imaginativo. Já vi algumas páginas de Simone para o Wolverine e posso garantir que ninguém está preparado para aquilo. Vai deixar toda a gente de boca aberta. É óptimo para mim poder contribuir para o início da carreira de um artista que vai ser uma superestrela.”
Uma opinião certamente partilhada pela editora que não hesitou em lançar os números de Wolverine desenhados por Bianchi numa versão a preto e branco, que permitisse apreciar devidamente a fabulosa técnica de aguada do desenhador italiano, que revela igualmente um excelente sentido de composição, pensando a página e a dupla página com um a unidade estética autónoma, sem que com isso a narrativa perca legibilidade.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Universo Marvel 17 - Hulk: Cinzento


UNIVERSO MARVEL VOL 17
Hulk: Cinzento
Argumento - Jeph Loeb
Desenhos - Tim Sale

TRÊS CORES: CINZENTO

Se dissessem a um cinéfilo mais tradicional, daqueles que lêem a revista Cahiers du Cinema, que há grandes pontos de contacto entre a trilogia das cores do cineasta polaco Krzysztof Kieslowski e os trabalhos de Jeph Loeb e Tim Sale para a Marvel, este teria certamente dificuldade em acreditar, mas a verdade é que, por mais improvável que pareça, há muita coisa que aproxima os filmes do cineasta polaco e as Banda Desenhadas dos dois americanos.
Se Azul, Branco e Vermelho, os três filmes que Kieslowski dedicou às cores da bandeira de França e aos ideais da Revolução Francesa (Liberdade, Igualdade e Fraternidade) são histórias de amor, marcadas pelo peso da memória, o mesmo se pode dizer de Homem-Aranha: Azul, Demolidor: Amarelo e Hulk: Cinzento, a trilogia das cores que Loeb e Sale dedicaram aos principais heróis da Marvel e que, depois da edição pela Devir dos dois livros anteriores, está finalmente disponível na íntegra em Portugal.
Revisitações nostálgicas dos primeiros tempos de actividade dos heróis, os três livros seguem uma estrutura muito semelhante, marcada pelos flash-backs. Tanto em Homem-Aranha: Azul, como em Demolidor: Amarelo, as histórias são narradas como cartas de amor a pessoas que já morreram (Peter Parker a Gwen Stacy em Homem-Aranha: Azul e Matt Murdock a Karen Page em Demolidor: Amarelo), mecanismo que permite o desencadear das recordações de um tempo que já passou, e que Loeb e Sale recuperam com o talento que se lhes reconhece.
Em Hulk: Cinzento, o que desencadeia os flash-backs, são as sessões de terapia entre Bruce Banner e Leonard “Doc” Samson, mas no centro dessas recordações está igualmente uma história de amor trágico, o triângulo amoroso entre Bruce Banner, Betty Ross e o Incrível Hulk, com a história mais centrada na relação impossível entre Betty e o Hulk, de uma forma que nos recorda o fascínio de King Kong por Ann Darrow (personagem interpretada de forma memorável pela actriz Fay Wray no filme original de Merian C. Cooper) que acaba por levar à sua perdição. Uma história centrada numa etapa inicial menos conhecida do percurso de Hulk, em que o gigante esmeralda era cinzento e a sua transformação era não consequência do aumento do stress, mas do cair da noite.
Mesmo que os outros heróis da Marvel com a excepção do Homem de Ferro, que não sai muito bem tratado desta história, brilhem pela ausência, Loeb não esquece os criadores que antes dele escreveram as aventuras do Hulk e em especial Peter David, responsável pelo argumento da revista do Hulk durante doze anos e que recuperou a versão cinzenta do Hulk, para além de ter criado também uma versão vermelha (cá temos outra trilogia das cores: cinzento, verde e vermelho...) A homenagem de Loeb a David é evidente no diálogo entre Banner e Samson sobre a mudança de cor do Hulk, com Banner a concluir o tema com a frase “mas estou a divagar” (“but I digress”, no original), que é precisamente o título da coluna de comentário sobre Banda Desenhada que Peter David Assinou na revista Comics Buyers Guide, de 1990 até 2013, data em que a revista cessou a publicação.
Nascido em 1956 em Ithaca, Nova Iorque, Sale passou a infância e a adolescência em Seattle, de onde saiu durante dois anos para frequentar a School of Visual Arts, a célebre escola nova-iorquina criada por Burne Hogarth, onde Will Eisner foi professor, para além de ter feito um workshop em Banda Desenhada com John Buscema. Mesmo que tenha regressado a Seattle sem ter concluído a sua licenciatura na S.V.A., o contacto com tão bons mestres deixou marcas e não admira que tenha acaba por decidir fazer carreira na Banda Desenhada. Uma carreira que se iniciou em 1983, com a série Mith Adventures da Warp Graphics, mas que só arrancaria realmente dois anos mais tarde ao conhecer o autor Matt Wagner e a editora Diana Schutz na Comic Con de San Diego. Encontro que lhe valeu o convite para colaborar na série Grendel, de Wagner, como desenhador, e que acabou por levar ao encontro mais importante da sua vida, com o escritor Jeph Loeb, que lhe foi apresentado por Wagner e Schutz.
Vindo do mundo do cinema, onde foi responsável pelo argumento de filmes como Teen Wolf e Commando e trabalhou na primeira série de ficção da HBO, The Hichhiker, foi o seu trabalho para um filme do Flash que nunca chegou a ser feito, que lhe abriu as portas da DC Comics, que detém os direitos da personagem e lhe permitiu iniciar uma carreira na Banda Desenhada, que não se limitou às colaborações com Sale. Uma carreira prolífica e frutuosa como argumentista de BD ligado às maiores editoras americanas, que Loeb tem sabido conciliar com a sua actividade de argumentista e produtor para televisão e que faz dele o homem ideal para o cada vez maior número de projectos em que Hollywood vai beber ao mundo da Banda Desenhada.
A série Chalengers of the Unkwon, o primeiro argumento de comics escrito por Loeb em 1991, foi naturalmente ilustrado por Sale e desde então a dupla colaborou em inúmeros projectos, com destaque para as sagas The Long Halloween e Dark Victory, que exploram o destino do Batman imediatamente após os acontecimentos do Year One, de Frank Miller e David Mazzucchelli e para Superman For All Seasons, história muita na linha da trilogia das cores da Marvel, de que é precursora e que foi assumida pelos criadores da série televisiva Smallville, onde Loeb também trabalhou, como uma das principais fontes de inspiração da série.
Mas as colaborações da dupla não se resumem à DC. Basta relembrar as mini-séries Homem-Aranha: Azul e Demolidor: Amarelo, os volumes anteriores da trilogia das cores, publicadas em Portugal pela Devir e da participação de Sale na série televisiva Heroes, de que Loeb foi produtor e argumentista e onde Sale, para além de conselheiro artístico, foi o responsável pelas pinturas de Isaac Mendez, um dos personagens da série, cujos poderes divinatórios se revelavam nos quadros que pintava.
E se Loeb e Sale já tinham estado em destaque nas duas colecções que a Levoir dedicou à DC, em que Loeb assinou o argumento dos últimos volumes da primeira e segunda série, com histórias que reúnem o Super-Homem e o Batman (A Rapariga de Krypton e Poder Absoluto) e Tim Sale foi responsável pela arte de Contos do Batman, em que ilustrava três histórias do Cavaleiro das Trevas, escritas por outros argumentistas que não Loeb, esta é a primeira vez que a dupla surge junta numa colecção da Levoir, assinando um dos seus melhores trabalhos conjuntos.
Um trabalho em que o traço de Sale revela uma plena maturidade, que ainda lhe faltava em Contos do Batman, e um apurado sentido narrativo, usando com grande efeito dramático, os grandes planos, as imagens de página inteira e as duplas páginas. Mas onde Sale mais brilha é na expressividade que consegue transmitir ao rosto do Hulk, usando com grande eficácia as sombras e os grandes planos, focando pormenores como os olhos e os dentes do Hulk, que se destacam no meio da escuridão. Veja-se, por exemplo a sequência que nos mostra a sua breve amizade com um coelho, ou o modo como o monstro se “derrete” na presença de Betty Ross. Betty, a mulher cuja memória está no centro da história, tal como aconteceu nos outros volumes da “trilogia das cores”, mas que na realidade acaba por ser mais um catalisador duma reflexão de contornos psicanalíticos sobre a relação difícil entre pais e filhos.
Pais geralmente ausentes, como nos casos de Bruce Banner e Rick Jones, dois órfãos com infâncias traumáticas, que estabelecem nesta história uma relação de pai e filho, ou mesmo de Betty Ross, que órfã de mãe tem no General Ross um pai ausente, para quem a obsessão em capturar o Hulk se sobrepõe tudo o resto, evocando uma personagem trágica da literatura, o capitão Ahab e a sua relação com Moby Dick, a baleia branca, que está no centro do famoso romance de Herman Melville.