domingo, 30 de outubro de 2011

Spielberg leva Tintin ao cinema

Pouco menos de trinta anos após os primeiros contactos, eis que se concretiza o sonho de Hergé de ver o seu Tintin adaptado ao cinema por Steven Spielberg. Tudo começou em 1981, quando Spielberg intrigado com as referências a Tintin nas críticas francesas ao primeiro filme da série “Indiana Jones”, decidiu ler os álbuns de Hergé, nascendo logo aí a vontede de levar Tintin ao cinema. Os primeiros contactos entre Hergé e Spielberg remontam a finais de 1982, mas os dois criadores nunca se chegaram a encontrar pessoalmente, pois Hergé morreu em Março de 1983. Mesmo assim, Spielberg adquire os direitos de Tintin em 1984, para acabar por deixar cair o projecto, que só será retomado décadas depois, quando a evolução da tecnologia o permite.
Descartada a opção do filme com imagens reais, a opção recai na animação em stop motion, técnica usada por Robert Zemeckis, um dos colaboradores habituais de Spielberg, com resultados discutíveis, mas que graças ao filme “Avatar”, de James Cameron, evoluiu muitíssimo nos últimos anos. E, apesar da estranheza inicial de ver um tratamento hiperealista a figuras caricaturais e estilizadas (a aparente simplicidade da “linha clara” de Hergé) o resultado final é muito eficaz e convincente. Parafraseando o célebre slogan publicitário de Fernando Pessoa para a Coca Cola, “primeiro estranha-se, mas depois entranha-se”.
Para isso também contribuem as soluções encontradas para fazer a transição entre os dois registos gráficos, começando pelo excelente genérico do filme, que evoca todas as aventuras de Tintin, até à sequência inicial em que vemos Hergé a desenhar Tintin no seu estilo habitual.
Em termos de história, o filme segue o díptico “O segredo do Licorne”/”O Tesouro de Rackham, o Terrível”, juntando-lhe elementos de “O Caranguejo das Tenazes de Ouro”, para introduzir a personagem do Capitão Hadock, Claro que há algumas simplificações da história original, como a supressão do Professor Tournesol, que não aparece de todo no filme, para darem espaço a algumas cenas de acção originais, que oscilam entre o magnífico (toda a cena de perseguição de moto ao falcão, em Marrocos, digna dos melhores momentos de Indiana Jones) e algo ridículo (a luta de guindastes). Mas o combate entre o Cavaleiro de Hadoque e Rackham, o Terrível está absolutamente espectacular, como espectaculares estão as cenas no deserto.
Mesmo que por vezes, esteja mais próximo de “Indiana Jones” do que dos livros de Hergé, este filme é um exemplo perfeito da aventura em estado puro, com tudo para agradar tanto aos fãs de Spielberg como aos leitores de “Tintin”. Que venha depressa o segundo filme, dirigido por Peter Jackson, a partir de “As Sete Bolas de Cristal e “O Templo do Sol”!
Provando a forte aposta em Portugal, país onde a popularidade de Tintin é forte, o filme, para além das versões Digital e 3D, estreou em três dobragens diferentes: a versão original inglesa, uma dobragem em português e, para aqueles que, como eu, consideram que o Tintin deve falar em francês, como na BD original, uma versão dobrada em francês.
(“As Aventuras de Tintin: O secredo do Licorne”, de Steven Spielberg, com Jamie Bell e Daniel Craig, Universal, Columbia Pictures, 2011. Em exibição em Coimbra nos cinemas Zon /Lusomundo Dolce Vita e Fórum Coimbra)
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 29/10/2011

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Frank Miller regressa com Holly Terror

Precisamente dez anos depois dos atentados ao World Trade Center de 11 de Setembro de 2001, chegou às livrarias americanas, "Holy Terror", uma novela gráfica de Frank Miller, em que o criador de "Sin City" aborda a problemática do terrorismo islâmico. Reacção visceral de um novaiorquino aos atentados que mutilaram a sua cidade, Holy Terror foi inicialmente pensada como uma história de Batman, mas que surge agora protagonizado por "The Fixer", um novo herói mascarado, cujas semelhanças com o Batman são mais do que mera coincidência...
Segundo declarou em várias entrevistas, Miller decidiu retirar Batman da história, pois a evolução da personagem levou-a a um tipo de comportamento de tal modo violento, que era difícil de encaixar na imagem de Batman, mas quanto a mim, a saída de Bob Schreck da DC Comics, também teve um papel importante e talvez até decisivo. Schreck, que foi editor de Frank Miller na Dark Horse, é um dos seus melhores amigos e foi ele, enquanto editor das revistas do Batman, o responsável pelo regresso de Miller às histórias de Batman, com os polémicos "Dark Knight Strikes Again" e "All Star Batman & Robin". O anúncio de que Holy Terror já não seria uma história de Batman, surgiu quando Bob Schreck já não estava na DC e, não por acaso, a história acaba por ser publicada, não pela Dark horse, editora habitual dos projectos mais autorais de Miller, mas sim pela Legendary Comics, que tem como editor-chefe, adivinharam, Bob Schreck. E "Holy Terror" é o título de estreia de uma nova editora, criada pela produtora cinematográfica que esteve ligada a vários filmes inspirados em BDs, como o "300" de Zack Snyder, a a partir da BD de Frank Miller, ou os Batmans de Cristopher Nolan.
Falando do livro, propriamente dito, Miller continua igual a si próprio e trata a questão do terrorismo islâmico com a subtileza de um elefante numa loja de porcelanas e aqueles que acharam que o Batman de "The Dark Knight Returns" era fascista, vão espumar com este "Holy Terror".
Graficamente, "Holy Terror" é um Batman em Sin City, publicado no mesmo formato italiano (na horizontal) de "300". Usando um preto e branco contrastado, com pequenos apontamentos de cor (as sapatilhas e os olhos de Cat Burgler, por exemplo) Miller alterna as páginas memoráveis, com outras mais "a despachar", mas não faltam imagens espectaculares e sequências muito bem conseguidas, como as cenas no meio da tempestade, ou as caras das vítimas dos atentados que vão gradualmente desaparecendo até dar lugar a páginas cheias de pequenos quadrados brancos.
Pensada como uma história de Batman (Cat Bulgral era obviamente a Catwoman, Dan Donegal era o Comissário Gordon, com cabelo preto e o Robinson Park faz parte da toponimia de Gotham City, aqui transformada em Empire City), parece-me que "Holy Terror" funcionaria melhor como uma história de Batman, do que como uma aventura deste novo herói que Miller nem se deu ao trabalho de desenvolver minmamente.
Embora "Holy Terror", com todos os seus defeitos, virtudes e desiquilibrios, não seja o regresso de Frank Miller aos seus tempos de glória, ainda assim não deixa de ser um prazer ver Miller fazer aquilo que faz melhor, escrever e desenhar Banda Desenhada. Sobretudo depois do verdadeiro desastre que foi a sua estreia a solo no cinema, como realizador de "The Spirit"...
Frank Miller's Holy Terror, Legendary Comics, 120 páginas a 2 cores, 29,95 €

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Amadora BD 2011

É já amanhã que abre o 22º Festival da Amadora, este ano dedicado ao humor. Podem ver a programação e outra informação na página do Festival no Facebook. Mesmo sem grandes nomes internacionais, o Amadora BD merece sempre uma visita. Apareçam! Eu estarei por lá aos fins-de-semana, na Livraria do Festival, gerida pela Dr. Kartoon

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Bilal revisita Shakespeare

Pouco mais de um ano depois de “Animal’Z”, Bilal regressa ao universo pós-apocaliptico do álbum anterior, com “Júlia & Roem”, uma revisitação futurista do “Romeu e Julieta”, de Shakespeare.
Tal como o próprio Bilal referiu numa entrevista, aquando da saída de “Animal’Z”, estes dois últimos álbuns representam uma ruptura com a sua obra anterior. “Uma ruptura narrativa -um one-shot, uma história num único álbum de perto de 100 páginas- mas também gráfica: preto e branco, em vez de pintura, o desenho em estado puro, realçado por ligeiros toques de cor, um traço mais rápido, mais enérgico.”
Ou seja, temos um Bilal longe do fantástico trabalho de cor a que nos habituou, optando por explorar o traço de forma livre, num trabalho executado a grafite e pastel seco, num registo quase monocromático, em que a principal nota de cor é dada pela tonalidade do papel, com o azul dominante de “Animal’Z”, a dar lugar desta vez aos tons castanhos, quebrados por pequenos apontamentos de branco, azul e de vermelho.
Tendo como cenário o mesmo mundo que viu as suas condições climatéricas dramaticamente alteradas pelo “Golpe de Sangue”, uma catástrofe natural que tornou a maior parte do planeta inabitável e a água potável um bem tão raro como precioso, os dois álbuns são igualmente afectados pelo excesso de referências literárias e de citações, neste caso pertencentes à peça de William Shakespeare, que Bilal já tinha tratado numa série de ilustrações soltas.
Mas Shakespeare não é o único a ser citado, pois “Júlia & Roem” está cheio de referências a outros trabalhos de Bilal, em especial no cinema, com o hotel abandonado onde decorre parte da acção, a remeter para “Bunker Palace Hotel, o seu primeiro filme, enquanto que o segundo capítulo abre com uma citação de “Bleu Sang”, o seu último filme.
Resumindo, à parte de um final feliz, e do padre que guia um ferrari electríco e tem tatuados os símbolos de todas as ideologias e religiões, esta adaptação/revisitação do clássico de Shakespeare não traz nada de novo, o mesmo acontecendo no plano gráfico, onde o registo minimalista já perdeu o efeito-surpresa. Um livro só para os incondicionais de Bilal, que não faz esquecer as suas colaborações com Pierre Christin, ou mesmo a “Trilogia Nikopol”.
(“Júlia & Roem”, de Enki Bilal, Edições Asa, 96 pags, 21,90 €)
Versão integral do texto publicado no Diário As beiras de 15/10/2011

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Quando a vida imita a Arte

Embora o homem tenha mau feitio, conforme dá para perceber por aqui, confesso que sou um fã incondicional de Manu Larcenet. A sua série Le Combat Ordinaire é genial, La ligne de Front e os dois primeiros volumes de Blast são livros notáveis e séries como Bill Baroud e Nick Oumouk são muito divertidas.
Talvez por Larcenet ser apenas o desenhador, nunca dei muita atenção à série Le Retour à la Terre, escrita por Jean-Yves Ferri, o futuro argumentista de Astérix, mas quando a comecei a ler, percebi que tinha feito mal. Le Retour à la Terre é um caso muito curioso de BD semi-autobiográfica, pois com base nas experiências pessoais de Larcenet, que trocou a cidade pelo campo, Ferry constrói uma divertida série, feita de gags de meia página, sobre a adaptação de um citadino à vida no campo.
Recentemente, fiz obras em casa e instalei uma gateira na porta da cozinha que dá para a varanda. A forma pouco cooperante como os meus dois gatos receberam esta inovação tecnológica, recordou-me imediatamente estas tiras de Les Revolutions, o 5º volume de Le Retour à la Terre. Ora vejam:


terça-feira, 11 de outubro de 2011

Está quase a chegar!


É já no dia 18 que estreia na Fox, também em Portugal, a segunda temporada da série The Walking Dead, só dois dias depois de estrear nos EUA, no canal por cabo AMC. Até lá, aqui fica um trailler, que tem como banda sonora um excelente tema do Johny Cash. Uma mistura perfeita!

sábado, 8 de outubro de 2011

A Republica revisitada

Em termos de exposições, um dos pontos altos da edição de 2010 do Festival de Banda Desenhada da Amadora, foi a mostra dedicada ao livro “É de noite que faço as Perguntas”, projecto inserido nas comemorações do Centenário da República, em que David Soares coordena um grupo de cinco desenhadores, numa viagem plena de simbolismo pelos anos da primeira república. Precisamente um ano depois do inicialmente previsto, eis que o livro chega finalmente às livrarias, numa aposta corajosa (depois da overdose de edições sobre a República em 2010 e inícios de 2011, será que ainda há espaço nas livrarias para mais um livro sobre a República…) da Saída de Emergência, editora que assim se estreia finalmente na BD.
Embora actualmente se dedique mais ao romance do que à Banda Desenhada, David Soares tem trabalho feito (e muito bem feito) na BD, como argumentista e como autor completo, pelo que o convite da Amadora para escrever este livro, fez todo o sentido. A história, cuja acção decorre em Lisboa, em meados do século XX, sob um regime autocrático indefinido, mas cujas semelhanças com o Estado Novo salazarista são mais do que pura coincidência, parte das memórias da primeira república que um pai lega ao filho, numa carta que nunca chegará a enviar.
Se as sequências, inicial e final, são ilustradas por Richard Câmara num estilo quase esboçado, em contrate com o estilo realista dos restantes desenhadores, os diferentes episódios narrados pelo pai, são ilustrados cada um por diferentes desenhadores.
Assim, Jorge Coelho ilustra o período antecedente à implantação da República, desde o ultimato inglês de 1890 até ao assassinato do Rei D. Carlos, João Maio Pinto fica com o período da República, André Coelho com a 1ª Guerra Mundial e Daniel da Silva com o episódio final, em que os ideais da república dão lugar à realidade sombria do regime salazarista.
Embora nem todas as referências sejam facilmente perceptíveis para quem não conheça bem a história do período em causa (nesse aspecto, uma cronologia e umas notas de enquadramento no final do livro seriam de grande utilidade), a história está muito bem construída e revela o rigor da pesquisa habitual em David Soares, que soube muito bem escolher os seus colaboradores. Há sequências especialmente bem conseguidas, em que os autores jogam na perfeição com a repetição de alguns motivos, como o bacio com a forma de John Bull no episódio inicial, desenhado por Jorge Coelho, ou o eléctrico (que não por acaso, está na capa do livro) no episódio final, desenhado por Daniel da Silva.
Um excelente álbum, pelo qual valeu bem a pena esperar um ano e que, para além de confirmar o talento de David Soares, Richard Câmara, Jorge Coelho e João Maio Pinto, dá a descobrir dois desenhadores muito promissores, como André Coelho e (especialmente) Daniel da Silva.
(“É de noite que faço as Perguntas”, de David Soares e vários desenhadores, Saída de Emergência, 64 pags, 18,00 €)
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 8/10/2011

sábado, 1 de outubro de 2011

Evocando Sérgio Bonelli

Faleceu no passado dia 26 de Setembro, em Milão, o nome mais importante da BD italiana da actualidade. Falo não de um autor, como Manara, Toppi, Liberatore, ou Giardino, mas sim de um editor, Sérgio Bonelli, que soube construir um verdadeiro império editorial, que não se limita apenas à série “Tex”, criada pelo seu pai Gian Luigi Bonelli e por Galep, o seu título mais popular.
O segredo dos “fumetti” (nome dado em Itália à BD) da Bonelli, consiste em fornecer aos leitores edições baratas, em pequeno formato, com muitas páginas, lançadas a um ritmo mensal. Essa receita, que consegue aliar uma produção quase industrial, com capacidade de lançar mais de mil páginas por mês, a uma qualidade muito razoável, nasceu como reacção ao boom da TV privada nos anos 70, que veio provocar uma crise no mercado da BD. Face a uma televisão que oferecia programas gratuitos para todos os gostos, Bonelli optou por propor aos seus leitores verdadeiras novelas gráficas de quase cem páginas, capazes de prender a atenção do leitor durante uma hora, ou mais, que vivem muito da notável capacidade produtiva de uma série de argumentistas de talento, aliado a um leque mais alargado de desenhadores.
A reacção dos leitores italianos a esta nova forma de BD foi entusiástica, com algumas revistas de Bonelli a atingirem tiragens próximas do meio milhão de exemplares, para além das constantes reedições de títulos antigos, o que leva à impressionante média de 25 milhões de exemplares vendidos por ano, algo que só é possível graças a um público heterogéneo, que não se restringe aos adolescentes habituais e que engloba também quadros médios e universitários, e até intelectuais como Umberto Eco.
Embora seja um fenómeno marcadamente italiano, as séries de Bonelli também têm procurado o sucesso internacional, estando igualmente presentes nos mercados, americano (através da Dark Horse), espanhol, francês e brasileiro. E é precisamente via Brasil que nos chegaram uma série de títulos bem representativos da qualidade e diversidade dos fumetti de Bonelli, actualmente reduzidos aos Westerns “Tex”, “Mágico Vento” e “Zagor”, e ao policial “J. Kendall”, cancelados que foram títulos como “Dylan Dog”, “Martin Mystere” e “Dampyr”.
Mas o contributo de Bonelli para a BD italiana, não se fica só pelas revistas mensais que editou, que mostram que BD de qualidade não tem que ser necessariamente luxuosa e cara. Além do seu trabalho de argumentista em “Mister No”, com o pseudónimo de Guido Nolitta, dos famosos “Texones”, as edições anuais que são uma referência habitual neste espaço, assinados por nomes como Buzelli, Magnus; Bernet, ou Joe Kubert, Sérgio Bonelli promoveu projectos como a série “Un Huomo, una Aventtura”, por onde passaram os maiores nomes da BD italiana, como Pratt, Manara, Crepax; Battaglia, Toppi e Buzzelli, além de ter dado a desenhadores como Victor De La Fuente, Esteban Maroto, José Ortiz, Alfonso Font, ou Manfred Sommer, a possibilidade de prosseguirem uma carreira na BD de acção e aventura.
Com a morte de Bonelli, desaparece um dos últimos cultores da Banda Desenhada de aventuras de grande público. Agora resta esperar para ver se a editora que criou consegue sobreviver ao desaparecimento do seu fundador.
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 1/10/2011