sábado, 26 de janeiro de 2013

NetCom2 e o regresso da "Linha Clara"



Mesmo que os tempos de crise em que vivemos não sejam os mais propícios a novas aventuras editoriais, a verdade é que há quem continue a apostar na edição de Banda Desenhada em português. É o caso da NetCom 2, uma editora espanhola que se lançou na edição de Banda Desenhada franco-belga no país vizinho há quatro anos, com sucesso e que no final de 2012 decidiu editar alguns dos seus títulos também em Portugal.
Com um catálogo virado essencialmente para a Banda Desenhada clássica, em que as séries criadas por Jacques Martin, o autor de Alix, têm um grande peso, a NetCom2 privilegia o estilo “Linha Clara”, ligado à revista Tintin, de que Jacques Martin, com Hergé e Edgar P. Jacobs, foi um dos pilares. Não podendo editar “Alix”, série cujos direitos pertencem à Asa, a NetCom2, escolheu outro trabalho de Martin, a série “Keos”, escrita por Martin, para os desenhos de Jean Pleyers, que nos transporta para o antigo Egipto, com o rigor documental e o detalhe que Martin sempre impôs às suas criações.
Ambientada no reinado de Ramsés II, “Keos” contém os ingredientes habituais na obra de Martin, desde o jovem protagonista, ao ambiente de intriga política em que se desenrolam mortíferos jogos de poder e o contracenar de personagens ficcionais, com figuras históricas, como Moisés, que tem uma presença importante nesta história. Quanto à edição da NetCom2, apesar das cores algo esbatidas e da legendagem demasiado mecânica, quando comparadas com a edição original francesa, está bem impressa e melhor encadernada, satisfazendo os critérios de qualidade a que o leitor tradicional de BD franco-belga está habituado.
Se Jacques Martin é um valor seguro, a outra aposta da NetCom2 foi uma agradável surpresa. “O Mistério do Tracção 22”, primeiro volume das investigações de Margot, mistura carros de colecção e um erotismo light, numa história que graficamente recupera a “linha clara” de uma forma bastante competente e eficaz e que, sendo pensada para os fanáticos dos automóveis, deixa-se ler muito bem pelo leitor comum que pouco se interessa pelo assunto.
Em resumo, duas apostas sólidas, a que se juntará em Março, Giles Chailet com a série a “Última Profecia” de uma editora que aposta na Banda Desenhada franco-belga de cariz mais clássico. Uma aposta de risco controlado, que pode apenas ser prejudicada pela pouca exposição dos títulos, que têm uma distribuição muito limitada, que no caso de Coimbra, se limita apenas à Livraria Dr. Kartoon.
(“Keos Vol 1: Osíris”, de Jacques Martin e J. Pleyers, NetCom2 editorial, 48 pags, 15 €
“As Investigações de Margot T 1: O Mistério do Traction 22”, de O. Marin e E. Van Der Zuiden, NetCom2 editorial, 48 pags, 15 €)
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 26/01/2013

domingo, 20 de janeiro de 2013

Editoriais para a Colecção Heróis Marvel II - Parte 4: Wolverine: Arma X


E aqui está finalmente o último editorial que escrevi para a série II da Colecção Heróis Marvel. Trabalho que me deu grande prazer e o orgulho de ter o meu nome na ficha de três grandes livros (e um interessante) cuja edição fazia falta em Portugal.
BARRY WINDSOR-SMITH E AS GARRAS SELVAGENS DE WOLVERINE
DE TODOS OS AUTORES QUE TRABALHARAM COM A PERSONAGEM WOLVERINE, BARRY WINDSOR-SMITH FOI AQUELE QUE CONSEGUIU UM IMPACTO MAIOR COM UMA LIGAÇÃO MAIS CURTA AO MAIS POPULAR DOS MUTANTES DA MARVEL. ARMA X, A HISTÓRIA QUE DÁ TÍTULO A ESTE VOLUME, É DAS QUE TEVE MAIS INFLUÊNCIA, TANTO NO PASSADO COMO NO FUTURO DA PERSONAGEM.


Nascido em Inglaterra em 1949, Windsor-Smith estreou-se na Marvel no Verão de 1968, desenhando a capa e a história da revista X-Men # 53, publicada em Fevereiro de 1969. Embora tenham sido maioritariamente desenhadas em bancos de jardim, pois o artista - que acabaria por ser deportado para Inglaterra pouco depois por não ter autorização de residência -, tinha sido despejado do hotel onde vivia, dado não ter dinheiro para pagar a conta, o resultado final, em que eram notórias as influências de Jack Kirby, impressionou suficientemente o editor Roy Thomas, que lhe tinha arranjado esse trabalho. Ele escolheu Windsor-Smith, que na época assinava apenas Barry Smith, como desenhador da adaptação em Banda Desenhada das aventuras de Conan, o guerreiro bárbaro criado por Robert E. Howard na literatura. Embora mais elegante e felino do que o guerreiro selvagem e ameaçador que as ilustrações de Frank Frazetta para as reedições dos romances de Howard tinham definido junto do público, o Conan de Barry Smith foi muito bem recebido pelos leitores e, entre 1990 e 1993, Thomas e Smith tiveram oportunidade de adaptar a maioria dos contos de Howard em versões verdadeiramente memoráveis, onde é visível a rápida evolução do estilo de Smith, que se foi gradualmente libertando da influência do “King” Kirby, cujo trabalho o tinha levado a tornar-se autor de comics.
Tendo ganho outro estatuto graças ao seu trabalho com Conan, Smith, cada vez mais desiludido pela forma como a Marvel o tratava, acabou por se afastar aos poucos do mundo da Banda Desenhada, voltando-se mais para a ilustração e para a pintura, ao mesmo tempo que ilustradores como Arthur Rackham, Aubrey Beardsley e os pintores da Irmandade Pré-Rafaelita, como Edward Burne-Jones, John Everett Millais, ou Dante Gabriel Rossetti, substituíram Kirby como a principal influência. Se o seu trabalho em Conan já revela esta evolução estética, a incorporação do apelido da mãe, passando a assinar Barry Windsor-Smith (um apelido composto, como os da maioria dos membros da Irmandade Pré-Rafaelita) revela que essa influência, mais do que estética, era também filosófica. Mas Windsor-Smith não estava sozinho nesta tentativa de conciliar a Banda Desenhada com as Belas Artes. Tratava-se de um interesse partilhado por outros criadores, como Jeff Jones, Mike W. Kaluta e Bernie Wrightson, com quem Windsor-Smith formou o Studio, nome dado ao apartamento/atelier que os quatro artistas partilharam em Manhattan entre 1975 e 1979, e que serviu de título ao livro-catálogo que em 1979 recolheu os principais trabalhos produzidos pelos quatro autores durante esses anos e que incluía verdadeiras obras de arte, como as serigrafias de Windsor-Smith com Conan e as ilustrações de Bernie Wrightson para o Frankenstein de Mary W. Shelley.
Durante este período, Windsor-Smith afastou-se temporariamente dos comics, tendo criado a sua própria editora, a Gorblimey Press, para editar posters e serigrafias com ilustrações suas e de outros artistas. Mas o amor à Banda Desenhada acabou por falar mais forte e o regresso à Marvel far-se-ia em 1983, nas páginas da revista Epic Illustrated , seguindo-se durante o resto da década uma mini-série protagonizada pelo Machine Man e colaborações esporádicas nas revistas Marvel Fanfare, Daredevil e Uncanny X-Men . Foi no # 205 dessa última publicação, em 1986, que Windsor-Smith ilustrou e coloriu Lobo Ferido, a história de Chris Claremont protagonizada pelo Wolverine que completa este volume e que, não tendo directamente a ver com a história de Arma X, aborda temas como os implantes de Adamantium, o metal mais resistente do mundo, que revestem o esqueleto de Wolverine e que irão ser desenvolvidos em Arma X , a história incontornável com que Windsor-Smith vai deixar a sua marca na mitologia da personagem.
Ao contrário do que é habitual nos comics da Marvel, em que há uma rígida divisão de tarefas criativas, Arma X é uma história inteiramente criada por Windsor-Smith, que assegurou o argumento, o desenho a lápis, a passagem a tinta, as cores (pensadas tendo em conta os problemas de reprodução postos pelo tipo de papel usado nas revistas da época) e até parte da legendagem. O resultado é um trabalho que, embora tenha crescido de forma orgânica (o primeiro episódio que o artista inglês desenhou foi o que actualmente corresponde ao capítulo 5) é perfeitamente coerente e mostra um autor no perfeito domínio das suas capacidades. Se em termos narrativos e de planificação, o trabalho de Windsor-Smith está próximo do de Frank Miller na série Demolidor e no Regresso do Cavaleiro das Trevas, em termos estéticos consegue aliar a graça e elegância da pintura Pré-Rafaelita, com a visceralidade das mais sanguinárias aventuras de Conan, em páginas visualmente arrebatadoras e de uma beleza selvagem.
Publicada em treze capítulos, nos # 72 a 84 da revista Marvel Comics Presents, Arma X revela pela primeira vez aos leitores o processo de implantação do Adamantium no corpo de Wolverine e a sua transformação numa verdadeira arma viva, às mãos de um grupo de cientistas a trabalhar para o exército. Esses cientistas incluem um misterioso Professor, que retira um prazer sádico das experiências a que Wolverine é submetido e que, pela sua aparência pode ser visto como uma versão maléfica do Professor Xavier dos X Men e o Dr. Cornelius, numa provável homenagem à famosa personagem de Michael Moorcock que Moebius também homenageou na série A Garagem Hermética. Mas, deliberadamente, Windsor-Smith nunca explica quem está por trás das experiências que procuram transformar Logan na Arma X e a história levanta mais questões do que aquelas a que responde, tendo sido inúmeros os autores que nas décadas seguintes vão explorar os caminhos abertos por esta história, incluindo o próprio Barry Windsor-Smith.
Por exemplo, Grant Morrison, na série Novos X Men , publicada em Portugal pela Devir, irá estabelecer que a experiência que transformou Wolverine na Arma X, foi a décima num programa de criação de super-soldados, conhecido como o projecto Arma Mais e que foi iniciado nos anos 40 com a experiência que transformou Steve Rogers no Capitão América e que, assim, o X de Arma X, corresponde ao numeral romano que simboliza o número dez.
Mas o objectivo deste volume não é desvendar os mistérios da origem de Wolverine, que tanto contribuem para o fascínio da personagem, mas dar a descobrir aos leitores portugueses, pela primeira vez e em boas condições, o trabalho de Barry Windsor-Smith com o Wolverine, que das histórias, às capas e ilustrações este livro recolhe na íntegra.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

As 10 Melhores BDs que li em 2012 - Parte 2


E a qui está finalmente a segunda parte da lista. Ao contrário da 1ª parte, em que a BD autobiográfica era dominante, esta segunda metade tem de tudo: histórias de super-heróis, clássicos franco-belgas e BD portuguesa. Embora séries como os Ultimates, de Mark Millar, ou Philemon, de Fred, não sejam exactamente novidades, a verdade é que só em 2012 é que tive oportunidade de as ler na íntegra.

6 - O Baile, de Nuno Duarte e Joana Afonso, Kingpin Books
Bom exemplo de que a BD nacional pode ser de qualidade sem ter que ser necessariamente alternativa, O Baile é uma história muito bem contada por Nuno Duarte a que a arte de Joana Afonso dá outra dimensão. Mais do que um história de zombies ambientada no Portugal do Estado Novo, O Baile utiliza o terror como metáfora de uma realidade histórica que importa não esquecer.

7 - Philemon Integrale, de Fred, Dargaud
Embora já tivesse lido vários álbuns soltos desta série, tendo inclusive o primeiro volume em português, só graças à excelente edição integral em 3 volumes da Dargaud, tive oportunidade de ler os 15 álbuns da série Philemon de uma só vez. Clássico que envelheceu muito bem, Philemon é um bom exemplo da poesia e do humor de Fred, aliado a uma capacidade impar de desafiar as convençoes da Banda Desenhada, subvertendo a sua gramática e linguagem de uma forma extremamente criativa e delirante.

8 - Scalped vols 7 a 10, de Jason Aaron e R. M. Guera, Vertigo tive oportunidade de falar desta série neste blog, mal começou a ser publicada e, agora que chegou ao fim, 60 revistas e 10 volumes depois, todas as expectativas foram cumpridas e até superadas, sendo evidente o crescimento de Aaron como argumentista ao longo da série. Com personagens que nos cativam, apesar dos seus defeitos e um trabalho gráfico exemplar de R. M. Guera, Scalped é a melhor série realista da Vertigo desde 100 Bullets.
9 - The Ultimates Omnibus, de Mark Millar e Bryan Hitch, Marvel Embora tenha lido o começo desta história quando foi publicada nas revistas mensais da Devir, só em 2012 tive oportunidade de ler na íntegra a versão dos Vingadores criada por Mark Millar para o Universo Ultimate e que funcionou como principal influência para o filme dos Vingadores (do Nick Fury com cara de Samuel jackson, até ao uniforme do Capitão América durante a 2ª Guerra Mundial, já estava tudo na BD de Millar e Hitch). E os Ultimates sai claramente a ganhar quando confrontado com o filme, graças ao argumento inteligente e divertido de Millar, e ao espectacular trabalho gráfico de Brian Hitch que cria uma aventura com um fôlego épico difícil de ultrapassar.

10 - Três Sombras, de Cyril Pedrosa, Polvo
Apesar do seu Portugal dizer mais aos leitores portugueses, este Três Sombras finalmente disponível em edição nacional é quanto a mim um trabalho mais equilibrado e conseguido. Uma bela história em tons de fábula, marcada pela inevitabilidade do destino, a que o traço esvoaçante de Pedrosa, em que é visível a influência da sua experiência no cinema de animação, dá uma dimensão poética.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Editorias para a Colecção Heróis Marvel II - Parte 3: Demolidor Renascido


De todos os livros publicados nesta série II da colecção Heróis Marvel, este é o meu favorito. Não só é, para mim, a melhor história de sempre do Demolidor, como é dos melhores argumentos de Frank Miller, então no auge das suas capacidades. Por isso, além do editorial, fiz questão também de traduzir o livro. Mais uma vez, há pequenas diferenças entre o texto impresso e a versão que aqui publico. Além de ter suprimido o primeiro parágrafo, que me parece dispensável neste contexto, aproveitei para corrigir um erro, que me foi assinalado pelo André Azevedo, em relação à estreia de Frank Miller na Marvel e que já tinha sido cometido também por Julian M. Clemente no 1º volume da série 1.
De todos os criadores que trabalharam com o Demolidor, aquele que mais influenciou a evolução do herói foi Frank Miller. Depois de uma passagem memorável pela série, Miller regressou em 1986 para aquela que é muito justamente considerada como a melhor história de sempre do Demolidor. De Jerry Siegel a Jack Kirby, passando por Joe Schuster, Stan Lee, Gil Kane, Will Eisner ou Joe Kubert, os principais autores que inventaram, ou reinventaram as histórias de super-heróis têm um elemento em comum: a ascendência judia. Num excelente romance, As Espantosas Aventuras de Kavalier & Clay, o escritor Michael Chabon, também ele de ascendência judia, recria de forma ficcionada a Idade de Ouro dos comics americanos, acentuando a importância da cultura e da mitologia judaicas na criação dos primeiros super-heróis.

Ao contrário dos autores acima referidos, Frank Miller é de ascendência irlandesa e formação católica. Um aspecto que, dos títulos dos capítulos à própria história, passando pela iconografia religiosa, está muito presente em Renascido, história que publicamos neste volume e que assinalou o seu regresso em força ao Demolidor, personagem que ajudou a lançar o seu nome como um dos mais importantes autores de comics do século XX.
Nascido em 1957, Frank Miller estreou-se na Marvel em 1978, desenhando o nº 18 de John Carter Warlord of Mars para no ano seguinte se estrear como desenhador do Homem-Aranha, em histórias já publicadas no primeiro volume da primeira série desta colecção, e ainda em 1979, como desenhador das aventuras do Demolidor, antes de assumir no ano seguinte também o argumento da série que, quando Miller lhe pegou, estava prestes a ser cancelada por vendas muito baixas. Na sua primeira passagem de quase quatro anos pela série Daredevil, entre os #158 e 191, Miller revolucionou completamente a série, juntando-lhe elementos do policial negro e dos filmes orientais, numa mistura tão inesperada como eficaz, servida por uma planificação revolucionária e pelo uso da narração em off, que muitos imitaram, mas poucos superaram. Para além da criação de personagens originais inesquecíveis, como a ninja Elektra, Miller pegou no Rei do Crime, um vilão secundário nas histórias do Homem-Aranha, transformando-o no todo-poderoso Senhor do Crime de Nova Iorque.

É precisamente Wilson Fisk, o Rei do Crime, o motor que faz avançar a intriga da história que vão poder ler em seguida. Ao descobrir a identidade secreta do Demolidor, Fisk vai destruir-lhe carreira, finanças, casa, credibilidade e sanidade, arrastando Murdock para um calvário que deveria culminar com a sua morte, mas do qual ele emerge como um novo homem, um homem renascido, espiritualmente mais forte e desprendido das coisas supérfluas da vida. Essa aplicação da máxima de Nietzche de que “o que não nos mata, torna-nos mais fortes” vai tornar-se recorrente na obra de Miller, que vai impor o mesmo tratamento a Elektra, ao Batman em O Regresso do Cavaleiro das Trevas e Ano Um, e a alguns habitantes de Sin City, como Dwight ou Hartigan, mas em nenhum dos casos com a profundidade com que é feito nesta história. Uma história desenhada por David Mazzucchelli, na época o desenhador regular da série, que acabou por desenhar a história porque Miller estava muito ocupado com os desenhos de O Regresso do Cavaleiro das Trevas, a crepuscular saga de Batman que revolucionou a personagem. Mas se a participação de Mazzucchelli foi consequência da falta de tempo de Miller, o seu contributo foi absolutamente fundamental, sendo o produto final o resultado de um estreito processo de colaboração em que as fronteiras habituais entre desenhador e argumentista se esbateram, como reflecte a ficha técnica, ao não distinguir entre desenhador e argumentista, com Mazzucchelli a contribuir de forma decisiva para a evolução da história, que cresceu de forma quase orgânica, fruto das constantes trocas de ideias entre os dois autores. Por exemplo, a personagem de Maggie, a freira que o leitor descobre ser a mãe que Matt julgava morta, não estava prevista no argumento inicial, resultando de uma epifania de Miller, durante uma conversa com o desenhador. Mazzucchelli é também responsável pela importância da iconografia cristã ao longo da história, desde o recriar da Pietá de Miguel Ângelo, na cena em que Maggie segura Matt moribundo no colo, na penúltima página do 3º capítulo, dando ao leitor a confirmação de que Maggie é realmente a mãe de Matt Murdock, passando ao repetido uso da composição triangular, típica da pintura renascentista, com olhar do leitor a ser conduzido para o vértice do triângulo, onde está um cruxifixo, ou pela página de título do capítulo 4, em que a cama onde jaz Matt e a parede encimada por um crucifixo, formam uma cruz, até à profusão de símbolos religiosos, de crucifixos a campanários de igrejas, ao longo do livro.
Mas as influências estéticas de Mazzucchelli ao longo deste livro, em que é visível a rápida evolução do seu traço, de um realismo influenciado por Miller, para um traço mais solto, próximo do expressionismo, não se ficam pela pintura religiosa. Veja-se a óbvia homenagem a O Grito, de Eduard Munch, na notável sequência em que Urich ouve pelo telefone o tenente Manolis a ser estrangulado, acentuado pelo trabalho de cores de Max Schelle.
Embora à superfície seja uma história de super-heróis, Renascido, mais do que uma aventura do Demolidor é antes de mais uma história de Matt Murdock. Um relato kafkiano da lenta queda de um homem no abismo, uma história policial sobre a corrupção na grande cidade e uma obra coral, narrada sob três pontos de vista diferentes (o de Matt Murdock, o de Wilson Fisk e o do jornalista Ben Urich) que se completam, numa narrativa estética e literariamente poderosa. E, embora Matt Murdock passe a maior parte do tempo sem uniforme, não deixa de ser uma história de super-heróis, em que Miller ainda consegue introduzir o Capitão América e os Vingadores no final da história, graças à personagem Nuke, que mostra como os políticos e os militares conseguiram perverter o sonho americano de que o Capitão América é o símbolo vivo. >br> A completar este volume, temos a história E o Nevoeiro sussurrou… morte, escrita por Dennis O’Neil (com a participação de Miller, que tem direito a agradecimentos especiais na ficha técnica) e ilustrada por Mazzucchelli, publicada originalmente em Daredevil #220 (USA 1985). Embora cronologicamente seja anterior à saga Renascido, optou-se por apresentá-la no fim do livro para não retirar o natural e merecido destaque à história principal que assinalou o efectivo regresso de Frank Miller ao Demolidor.
A escolha de Nevoeiro de entre dezenas de histórias do Demolidor ilustradas por Mazzucchelli, fez-se por dois motivos. Antes de mais, porque é uma excelente história, que o próprio desenhador considera como um dos seus melhores trabalhos e a primeira história em que o seu traço se libertou dos pormenores e assentou no uso das sombras para criar ambientes, com o nevoeiro que invade Nova Iorque a assumir-se como uma personagem de corpo inteiro. O outro motivo foi porque o suicídio nessa história de Heather, a antiga namorada do Demolidor, vem contribuir para o estado depressivo de Matt Murdock, ao mesmo tempo que abre caminho para o regresso de Karen Page, antiga secretária e primeira namorada de Matt Murdock, à série. Karen que, como veremos, vai desempenhar um papel fundamental na trama de Renascido.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Blake e Mortimer: O Juramento dos Cinco Lords


Como vem sendo hábito, o final do ano viu chegar às livrarias mais um álbum, o 21º, da série “Blake e Mortimer”, que a Asa editou em Portugal quase em simultâneo com a edição no mercado francófono. Quinto álbum assinado pela dupla Yves Sente e André Juillard, “O Juramento dos Cinco Lords” traz de volta os heróis mais “british” da BD franco-belga, para mais uma aventura, desta vez tendo como cenário a universidade de Oxford.

Tendo como modelo a fase áurea de Jacobs, entre os álbuns “A Marca Amarela” e “S.O.S. Meteoros”, a série prossegue a evolução na continuidade, alternando os álbuns escritos por Yves Sente, com os de Jean Van Hamme. Embora respeitando escrupulosamente o “caderno de encargos”, Sente não deixa ainda assim de apresentar algumas novidades neste álbum, como a mudança de cenário, trocando os cenários exóticos pela britânica cidade de Oxford, a ausência de Olrik, o eterno inimigo da dupla de aventureiros, ou o desenvolvimento de aspectos menos conhecidos do passado de Francis Blake, tal como tinha feito com Mortimer em “Os Sarcófagos do 6º Continente”.
Desta vez, ficamos a conhecer os primeiros tempos do Capitão Blake nos Serviços secretos ingleses e a sua participação involuntária na morte de T. E. Lawrence, o mítico Lawrence da Arábia. E é precisamente a memória de Lawrence da Arábia que marca toda esta história de vingança que se abate sobre um grupo de cinco antigos alunos de Oxford. Uma história escorreita e bem contada, onde estão completamente ausentes os elementos fantásticos e de ficção científica, por isso, mais próxima dos policiais à inglesa de Agatha Christie, do que das histórias clássicas de Jacobs. Uma mudança agradável, que confirma Sente e Juillard como os mais sólidos continuadores da série, mesmo que o talento gráfico de Juillard brilhe muito mais quando não tem que imitar Jacobs (algo que não é tão fácil como parece, que o digam os vários desenhadores com quem Van Hamme já trabalhou na série) e se limita a ser ele próprio.
A continuação das aventuras de Blake e Mortimer, após a morte de Jacobs foi ditada por razões meramente comerciais. Mas a verdade é que a aposta deu certo e mesmo os álbuns de Jacobs vendem mais agora do que quando ele era vivo. É um negócio em que todos ganham: o editor, os autores, que vendem bem mais do que com as suas séries habituais e os leitores, que têm a oportunidade de reencontrar os seus heróis favoritos. E, enquanto as aventuras de Blake e Mortimer pós-Jacobs, tiverem a qualidade média deste “Juramento dos Cinco Lords”, não sou eu que me vou queixar…
(“Blake & Mortimer: O Juramento dos Cinco Lords”, de Yves Sente e André Juillard, Edições Asa, 64 pags, 14,50 €)
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 04/01/2013

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

As 10 Melhores BDs que li em 2012 - Parte 1


Mantendo a tradição, aqui vai, desta vez um pouco mais cedo do que no ano passado, a lista das 10 melhores Bandas Desenhadas que li durante o ano de 2012. Convém referir que a lista se refere, não às BDs publicadas em 2012, e muito menos, às BDs publicadas em Portugal em 2012, mas sim às que EU li, PELA PRIMEIRA VEZ, em 2012. Assim, ficam de fora títulos como Demolidor, Renascido de Frank Miller e David Mazzucchelli, ou Pílulas Azuis, de Frederik Peeters, dois títulos publicados em Portugal em 2012, que se os tivesse descoberto no ano que terminou, estariam certamente nesta lista.
Como habitualmente, a lista é apresentada por ordem alfabética, não estabelecendo uma hierarquia entre os 10 títulos que a integram. Aqui ficam os cinco primeiros títulos, curiosamente, quase todos de carácter autobiografico, enquanto os restantes serão postados durante a próxima semana.

1 - A Chinese Life, de Li Kunwu e P. Otié, Self Made Hero
Narrativa autobiografica sobre a vida durante a (tristemente) famosa "Revolução Cultural de Mao Zedong, A Chinese Life é uma viagem fascinante a um período negro da história da China, contada com recurso à BD, cuiriosamente uma linguagem muito usada pela propaganda maoista. Embora a edição original seja francesa e em três volumes, eu preferi a edição integral em inglês, cuja relação qualidade/preço é absolutamente imbatível.


2 - Building Stories, de Chris Ware, Phanteon
De Chris Ware devemos sempre esperar o inesperado e Building Stories, o seu mais recente projecto só vem confirmar essa ideia. Building Stories não é exactamente um livro, mas uma caixa com diversos livros (e desdobráveis e posters) que contam várias histórias dos habitantes de diferentes apartamentos de um prédio e que podem ser lidas de forma independente. Tudo com o requinte gráfico e o pormenor maníaco a que Ware nos habituou. Mas, melhor do que eu, este vídeo do excelente site brasileiro Omelete, mostra-nos exactamente o que é Building Stories, o último delírio de Ware.



3 - Daytripper, de Fabio Mooon e Gabriel Bá, Vertigo
Se a série 10 Pãezinhos já deixava perceber o imenso talento dos gémeos brasileiros, Fabio Moon e Gabriel Bá, Daytripper, o seu primeiro trabalho autoral para o mercado americano, é a exuberante confirmação desse talento. Centrado na vida (e na morte) de Brás de Oliva Domingos, um escritor de obituários, Daytripper é um trabalho de grande beleza e sensibilidade, muito inovador em termos narrativos, que mostra que "por vezes,temos que morrer para provar que vivemos".


4 - Diário Rasgado, de Marco Mendes, Turbina
Se há autor a cujo trabalho a expressão "slice of life" 8que podemos traduzir de formamais ou menos livre, como "pedaços de vida")se aplique, Marco Mendes é esse autor. Recolha de narrativas curtas, limitadas na sua maioria a uma página de 4 quadrados, Diário Rasgado, o seu álbum de estreia, mostra um grande desenhador (mesmo que em alguns episódios propositadamente deixados em esboço, a qualidade do seu traço não seja tão evidente como nas imagens mais trabalhadas) com um olhar simultaneamente divertido e poético sobre a vida que o rodeia.


5 - El Arte de Volar, de António Altarriba e Kim, De Ponent
Muito premiado em Espanha, este El Arte de Volar, conta-nos a história de António Altarriba, pai do argumentista, cuja vida foi marcada pela Guerra Civil espanhola e que o seu filho nos relata num longo flash back, que começa no momento do seu suicídio. Trabalho claramente de argumentista, com os textos de Altarriba a guiarem a história, os desenhos minuciosos, entre o realismo e a caricatura, de Kim, parecem cumprir apenas a função de ilustrar as palavras do argumentista. Mas a verdade é que, apesar do seu estilo não ser particularmente chamativo, Kim é um excelente desenhador, que utiliza soluções narrativas bastante interessantes.