sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Lucky Luke de Mathieu Bonhomme em destaque na revista do Clube Tex Portugal

Para fechar este ano que amanhã termina, deixo-vos com o texto que escrevi sobre a excelente homenagem feita por Mathieu Bonhomme a Morris e ao seu Lucky Luke, por acasião dos 70 anos da série. Um texto que, embora prevista para sair no nº 4 da dita revista, acabaria por só sair neste nº 5, por uma questão de espaço. O que permitiu que o meu texto tivesse a companhia de um excelente artigo de Jorge Magalhães sobre Lucky Luke em Portugal, formando os nossos dois textos um mini-dossier sobre os 70 anos do cowboy que dispara mais rápido do que a própria sombra.
Resta-me desejar um Excelente Ano de 2017 aos leitores deste blog. Eu prometo regressar logo na primeira semana de Janeiro, com a primeira parte dqa já habitual lista das 10 Melhores BDs que li no ano que findou. Até lá, boas entradas em 2017!


O HOMEM QUE MATOU LUCKY LUKE, 
OU O WESTERN SEGUNDO MATHIEU BONHOMME

O mais popular cowboy da BD europeia, Lucky Luke, comemora em 2016 setenta anos de aventuras, sendo por isso dois anos mais velho do que o “nosso” Tex, que Gian Luigi Bonelli e Aurelio Gallepini criaram em 1948.
Criado por Maurice de Bevére, mais conhecido por Morris, o cowboy que dispara mais rápido do que a própria sombra, fez a sua estreia a 7 de Dezembro de 1946 no almanaque da revista Spirou, com a história Arizona 1880. Uma primeira história em que ainda é bem visível a influência da animação dos Estúdios Disney, mas o traço de Morris rapidamente ganhou outra personalidade e sofisticação, que se estendeu também aos argumentos, sobretudo no período áureo, de pouco mais de 20 anos, em que René Goscinny, um dos criadores de Astérix, se ocupou também do argumento de Lucky Luke.
A morte de Goscinny, em 1997, pôs fim a essa fase incontornável e, embora Morris continuasse a desenhar a série até à sua morte, em 2001, os argumentistas que com ele colaboraram, fracassaram claramente na espinhosa tarefa de fazer esquecer Goscinny…
O desaparecimento de Morris, não significou o fim do seu pobre cowboy solitário, com as aventuras de Lucky Luke a continuarem a sair com regularidade, com Achdé a assegurar o desenho de forma competente e extremamente fiel ao traço de Morris e o argumento a ser entregue a escritores como Laurent Guerra, Daniel Pennac e Tonino Benacquista, com créditos firmados em outras áreas, da televisão à literatura. Escritores que, sem deslumbrar, vieram ainda assim dar outro folego à série, mas sem nunca se afastarem da matriz de Morris.
Finalmente, aproveitando os setenta anos do herói, a Editora Lucky Comics, decidiu seguir o exemplo da Dupuis, com a série Spirou e dar carta-branca aos autores para criarem um Lucky Luke à sua imagem, à semelhança do que fez por exemplo Emile Bravo com o Spirou, no magnífico Journal D’un Ingenú, da série Spirou vu par…. É assim que vai nascer L’Homme qui Tua Lucky Luke, o livro que motiva este texto e que assinala o regresso de Mathieu Bonhomme ao Western, depois de Texas Cowboys, ao lado de Lewis Trondheim.
Nascido em Paris, em 1973, no seio de uma família ligada às artes, Bonhomme formou-se em Artes Aplicadas e iniciou-se na BD como assistente de Christian Rossi, o extraordinário ilustrador que substitui Jean Moebius Giraud como desenhador da série Jim Cutlass, o “outro” western a que o desenhador do Tenente Blueberry esteve ligado.
Grande fã do Western, Bonhomme logo no início da sua carreira abordou o género através das ilustrações que fez para o livro Contes et Recits de la Conquête de l’Ouest, editado pela Nathan em 2001, mas os seus trabalhos em BD, desde L’Age de la Raison, que lhe valeu o prémio do melhor primeiro álbum, no Festival de Angoulême de 2003, até às séries Marquis d’Anaon, Le Voyage d’Esteban e Messire Guillaume, que lhe valeu outro prémio de Angoulême, em 2010, abordavam outras épocas e outros temas, embora a aventura, mais adulta em Le Marquis D’Anaon e mais juvenil em Esteban, esteja sempre presente.
A ideia de escrever e desenhar uma aventura de Lucky Luke, não nasceu com esta oportunidade do aniversário, pois o autor é o primeiro a afirmar que “há mais de dez anos que pedia às edições Dupuis que me dessem uma oportunidade de o fazer. (…) quando fiz a enésima tentativa, não sabia que eles já estavam a reflectir na preparação dos 70 anos do personagem em 2016. Quando me apercebi que estavam receptivos à ideia, não esperei mais e mandei-lhes um dossier que acabou por os convencer. Só faltava formalizar tudo e escrever um argumento sólido e… que agradasse à editora.”
Para a disponibilidade demonstrada pela Dupuis, contribuiu, e muito, as provas já dadas no género por Bomhomme na série Texas Cowboys, criada a meias com Lewis Throndeim, a pedido do próprio Bonhomme, que queria que o prolífico argumentista lhe escrevesse um Western. Pré-publicada em capítulos na revista Spirou, como um suplemento destacável, Texas Cowboys recria a estrutura da Dime Novels, os romances de cordel que recontavam a história do Oeste, de uma forma bastante romanceada, em que a lenda se sobrepõe à História. O protagonista principal, Harvey Drinkwater, é precisamente um jornalista de Nova Iorque que vai para Forth Worth, no Texas, em busca de histórias sobre o Oeste Selvagem e que, mais do se limitar a contar as aventuras dos outros, prefere viver também ele essas aventuras, ou lado de lendas do Oeste como Sam Bass, Wyatt Earp, ou Bat Masterson.
Uma mistura entre história e lenda que encontramos também nas aventuras de Lucky Luke, personagem de ficção que se cruza frequentemente nas suas aventuras com figuras com existência real, como o Juiz Roy Bean, Jesse James, Calamity Jane, ou Billy The Kid e que, Bonhomme, a solo desta vez, aqui reinventa, de forma simultaneamente respeitosa e inovadora.
Esse respeito pela história e pela lenda (que muitas vezes se confundem) do Oeste é um elemento fundamental do trabalho de Bonhomme que refere: “queria verdadeiramente fazer um Western clássico. Queria que o Lucky Luke fosse um verdadeiro cowboy, pois ao longo do tempo, o humor tornou-se dominante na série”.
Também em termos gráficos, o trabalho de Bonhomme está mais próximo do realismo estilizado habitual nos seus trabalhos, do que do estilo mais caricatural de Morris. Como o próprio reconhece, “limitei-me a arredondar as formas do meu desenho para estar num registo mais semi-realista. Não estou muito longe do que fiz na série Esteban. Aliás, a cara de Esteban está bastante próxima da do meu Lucky Luke.”
Mas isso não o impediu de respeitar o passado de Lucky Luke, arranjando até uma explicação bastante engenhosa para o facto de o cowboy ter deixado de repente de fumar na BD, uma decisão motivada pelas exigências dos produtores de uma série de animação de Lucky Luke, de modo aos desenhos animados poderem passar na televisão americana, mas que valeu a Morris um prémio da Organização Mundial de Saúde, em 1988.
Talvez o aspecto em que Bonhomme tenha sido mais fiel ao trabalho de Morris, seja na utilização da cor. Uma cor mais narrativa e impressionista do que naturalista, que opta pela aplicação de manchas de cores planas, como o vermelho, castanho, ou azul, para destacar certos elementos e que ajuda a guiar o olhar do leitor através de uma cena, o que se revela particularmente eficaz nas cenas de multidão. Assim, o mesmo personagem pode aparecer inteiramente colorido a vermelho, amarelo, ou azul, na mesma página, ou todos os personagens podem aparecer coloridos num registo monocromático, que não tem qualquer relação óbvia com a cor dominante do cenário.
A ideia inicial de Bonhomme para a sua história, passava por revisitar o mito de OK Corral, mas dessa primeira versão apenas restou a personagem de Doc Wednesday, claramente inspirada na figura real de Doc Holliday, optando Bonhomme por contar uma história em que Lucky Luke é contratado pela população de Froggy Town para investigar o assalto a uma diligência feito por um índio e acaba por se confrontar com os diversos membros da família que domina essa cidade.
Uma história que começa precisamente com Lucky Luke abatido pelas costas no meio da enlameada rua principal de Froggy Town, com o leitor a descobrir, através do longo flash-back que se segue, o que realmente aconteceu desde a chegada de Lucky Luke à cidade, numa noite de tempestade.
Uma cena perfeitamente coreografada, que evoca no leitor a parte final do filme Imperdoável, de e com Clint Eastwood. Referência que está igualmente presente na imagem da capa do livro, em que o poncho que Lucky Luke usa não pode deixar de evocar o inconfundível vestuário do homem sem nome que Eastwood interpretou na trilogia dos dólares de Sergio Leone, cineasta a quem Bonhomme vai também recorrer na planificação do principal duelo da história, onde não faltam os grandes planos serrados dos olhos dos homens que estão prestes a bater-se e a alternância campo/contracampo. Elementos narrativos que Leone usava como ninguém e que acentuam o dramatismo dos momentos que precedem o duelo. Mas Eastwood e Leone não são as únicas referências cinematográficas presentes neste livro, que vai beber também a O Homem que Matou Liberty Valance, de John Ford, em termos de argumento.
Tão devedor da BD como do cinema, L'Homme qui Tua Lucky Luke, mais do que uma bela homenagem a Morris e ao seu Lucky Luke e uma maneira perfeita de comemorar os setenta anos do cowboy que dispara mais rápido do que a própria sombra, que também é, revela-se um excelente Western de papel, na linha dos grandes clássicos cinematográficos do género, que Bonhomme na sua juventude, devorou nas salas de cinema.
Texto publicado originalmente no nº 5 da revista do Clube Tex Portugal, em Dezembro de 2016 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Boas Festas!

Com esta ilustração de Hergé, para uma capa da revista Tintin, no ano em que se completam 70 anos sobre a criação da revista, aqui vão os meus votos de um Feliz Natal e de um excelente ano de 2017, para todos os leitores deste blog. Embora deseje já um Bom Ano, conto ainda aqui publicar mais um post, antes de 2016 chegar ao fim. Mas até lá... Feliz Natal!

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Sandman 11: A Vigília

E assim chegou ao fim a publicação de uma das mais importantes colecções de BD já lançadas neste país e, com ela, também os textos que sobre ela escrevi no Público. Para mim, foi um prazer espacial trabalhar na série Sandman, até por ver chegar ao fim uma edição que ficou interrompida nos meus tempos da Devir. Um agradecimento à Levoir e ao Público por me permitirem participar neste belo projecto, quase de serviço público aos leitores  portugueses de BD.

DEPOIS DO SONHO TERMINAR

Sandman – Vol. 11
A Vigília
Argumento – Neil Gaiman
Desenhos –  Michael Zulli, John J. Muth e Charles Vess
Quinta, 15 de Dezembro
Por + 11,90€
Com a publicação de A Vigília, na próxima quinta-feira chega ao fim a publicação da série original do Sandman, de Neil Gaiman, corrigindo assim mais uma grave lacuna na edição de BD em Portugal.
Apesar da morte de Morfeu no volume anterior a saga de Sandman não terminou aí. Em A Vigília, Gaiman dá tempo aos leitores e a si próprio, de se despedirem condignamente das personagens que os acompanharam durante uma década. Por isso, A Vigília é centrado no velório e no funeral de Morfeu, cuja vida é celebrada e evocada por ocasião da sua morte, numa cerimónia solene a que assistem literalmente todas as personagens da série.
A ilustrar esta história em três partes e o consequente epílogo, está Michael Zulli, um extraordinário desenhador cujo traço os leitores já tinham podido apreciar em outros volumes da série, mas que aqui mostra todo o seu talento em estado puro, sem uma passagem à tinta que roubasse a espontaneidade do seu desenho inicial a lápis. Aproveitando a evolução tecnológica, A Vigília foi um dos primeiros casos de um livro colorido e impresso a partir dos desenhos a lápis, mantendo intacta toda a subtileza do sumptuoso desenho de Zulli. Um traço de grande realismo e maior elegância onde são bem evidentes as influências da pintura pré-rafaelita e simbolista.
Se a história de Morfeu e a sua substituição por um novo Mestre dos Sonhos que, na essência continua a ser o mesmo Sadman embora, na verdade não o seja, tem o final perfeito nos episódios ilustrados por Zulli, havia ainda duas histórias que Gaiman queria contar, que funcionam como continuações e codas de Lugares Instáveis e Sonho de uma Noite de Verão.
Na primeira, Jon J. Muth ilustra, usando tinta-da-china, pincel e colagens, um conto oriental que reúne o velho e novo Sandman. E finalmente, tal como ficou estabelecido em Sonho de Uma Noite De Verão, Shakespeare entrega ao Senhor dos Sonhos a segunda da duas peças que lhe prometeu, em troca da imortalidade para o seu trabalho. Essa peça é, obviamente, A Tempestade, que foi a última peça que Shakespeare escreveu sozinho.
Um final perfeito para uma série magnífica, que continuará viva na cabeça e nos sonhos dos leitores.
Publicado originalmente no jornal Público de 09/12/2016

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Sandman 10: As Benevolentes - Parte 2


O ÚLTIMO COMBATE DE MORFEU

Sandman – Vol. 10
As Benevolentes - Parte 2
Argumento - Neil Gaiman
Desenhos – Marc Hempel, Teddy Kristiansen, Richard Case
Quinta, 08 de Dezembro
Por + 11,90€
Com a publicação do 10º volume de Sandman, que chega aos quiosques na próxima quinta-feira, chega ao fim a mais épica (e a maior) das histórias de Sandman, As Benevolentes, cujo inevitável desfecho vem confirmar a dimensão trágica do percurso de Morfeu, o Mestre dos Sonhos.
Um dos segredos do sucesso de Gaiman em Sandman, para além do seu talento a articular inúmeras personagens e diferentes histórias, dentro de uma narrativa global complexa, como se fosse a coisa mais simples do mundo, é a sua capacidade invulgar de harmonizar os elementos e a mitologia da tragédia clássica, com a dimensão mundana do dia-a-dia, a brevidade da vida e a importância do amor. No fundo, Os eternos e as outras divindades e criaturas mitológicas que Gaiman convocou para a saga de Sandman, são profundamente humanos nos seus comportamentos e atitudes.
Como bem refere o académico e escritor Frank McConnell, no prefácio do volume anterior: “É esta a premissa básica de As Benevolentes, e da própria saga de Sandman: a lenta realização que Sonho tem da intensidade da vida mortal, e da sua inescapável implicação nessa mesma intensidade. As Benevolentes, as Erínias, as Euménides, caçam-no ao longo deste livro porque ele matou o seu filho, Orfeu: claro, a pedido dele, mas mesmo assim matou-o. E com esse acto, Sonho entrou no tempo, escolha, culpa e remorso - entrou na esfera do que é humano.
No capítulo onze, depois de abandonar a segurança do Domínio do Sonho, a fada Nuala, que o invocou, faz-lhe a pergunta que poderá ser o segredo central da história. “Tu... queres que elas te castiguem, não queres? Queres ser castigado pela morte de Orfeu.”
E a vinheta seguinte, a resposta de Morfeu, é simplesmente a cara dele, vista de perto, sem palavras, uma cara torturada. (E já agora, um efeito que, nem um romance, nem um filme, poderiam conseguir com a mesma força, já que o romance teria de descrever a cara dele, e o filme apenas nos poderia mostrar um actor a tentar imitar aquela máscara sombria do remorso. O comic, com o estilo de desenho brilhantemente redutor de Marc Hempel, dá-nos a coisa em si.)”
E neste último parágrafo, McConnell alerta-nos para outro inegável talento de Neil Gaiman que, para além do grande escritor que a sua carreira de romancista demonstra, é alguém que tem um profundo conhecimento dos mecanismos narrativos da Banda Desenhada e que domina a linguagem da BD como poucos. A prová-lo está a escolha de Marc Hempel para desenhar esta história. Hempel, não sendo o mais vistoso, ou o mais talentoso dos desenhadores da série, bem longe disso, é alguém cujo estilo único se adequava perfeitamente ao tipo de história que Gaiman queria contar. E é precisamente esse casamento perfeito entre o texto e a imagem que torna única a linguagem da Banda Desenhada.
Texto publicado originalmente no jornal Público de 02/12/2016

sábado, 3 de dezembro de 2016

NOS TRINTA ANOS DE DYLAN DOG - Parte III: Uma Nova Era


Como prometido, aqui fica a parte final do artigo sobre o trigésimo aniversário da série Dylan Dog, que saiu inicialmente na revista Bang! numa versão bastante mais reduzida. A primeira parte do texto pode ser lida aqui e a segunda, aqui. Espero que gostem  do artigo e que em breve possamos ver Dylan Dog editado em Portugal. Afinal, os principais trabalhos de Alan More também só tiveram direito a edição nacional, trinta ou mais anos depois da sua publicação original...

Embora continuasse a ser a segunda mais popular série da Bonelli, logo a seguir ao cowboy Tex, a popularidade do detective do oculto foi caindo e a própria editora apercebeu-se de uma certa estagnação criativa, que levou a uma remodelação da série, coordenada por Roberto Recchioni. Recchioni que tinha sido o argumentista de Mater Morbi, história magnificamente ilustrada por Massimo Carnevale, que é considerada como uma das melhores aventuras de Dylan Dog da última década, contou com a bênção e supervisão do próprio Sclavi, no seu projecto de renovação da série.
Uma renovação de que os leitores italianos puderam ver os primeiros resultados em finais de Outubro de 2013, a partir do Dylan Dog nº 338, em que o inspector Bloch finalmente se reforma e vai viver para Wickedford, uma pequena e pacata cidade de província que, como seria de esperar nesta série, esconde terríveis segredos. A substituir Bloch na Scotland Yard temos o inspector Tyron Carpenter, que para além de ser contra a colaboração informal de Dog com a polícia, o que vem introduzir um elemento de tensão novo na série, conta com uma assistente paquistanesa e muçulmana, Rania Rakim que usa véu, dando um toque mais multicultural a uma série em que as novas tecnologias têm uma presença cada vez mais visível, sendo evidente a preocupação dos escritores em adaptarem o mais possível as aventuras de Dylan Dog à realidade do mundo contemporâneo. Assim não só o próprio Dylan, sempre avesso a essas tecnologias, passa a usar um smartphone, como ganha um novo Némesis em John Ghost, um milionário proprietário da Wolfconn, a empresa que domina o mercado dos smartphones, (ou seja, uma espécie de versão maléfica de Steve Jobs) que surge pela primeira vez no nº 341, onde há ainda espaço para uma curiosa homenagem a Alan Moore.
Também é visível uma evolução a nível dos argumentistas, com mais mulheres a juntarem-se a Paola Barbato, que se vai afirmando como a principal escritora da série. É o caso de Sílvia Mericone e Rita Poretto, duas fãs da série, que cresceram a ler Dylan Dog e que agora escrevem as suas aventuras.
Outra das características da série, é o multiplicar de títulos, que faz que todos os meses haja dois, ou mais títulos novos de Dylan Dog à venda nos quiosques italianos. Assim, além da série mensal e das suas reedições, os fãs da fase anterior à actual remodelação têm a revista Maxi Dylan Dog Old Boy, um título quadrimestral de quase 300 páginas, com histórias passadas na época em que Bloch ainda estava no activo. Outro título interessante é o trimestral Dylan Dog Color Fest, uma edição temática a cores, composta por histórias curtas, normalmente desenhadas por artistas pouco habituais na série, como o argentino Enrique Breccia, ou o italiano Giuseppe Camuncoli, que trabalha para a Marvel. Outro título que foi reformulado, foi o clássico Almanaque della Paura, uma publicação anual que foi substituída pelo Dylan Dog Magazine. Também um dos títulos mais antigos, o Dylan Dog Speciale, publicado anualmente, abrigou nos últimos dois anos a história Pianeta dei Morti, uma saga iniciada no Dylan Dog Color Fest, escrita por Alessandro Bilotta, cuja acção se passa vinte anos no futuro, num planeta ameaçada por uma grande invasão de zombies, de que Groucho, que Dylan Dog não teve coragem de matar, foi o paciente zero.
Trinta anos depois da sua primeira aventura, Dylan Dog, está presente em força nos quiosques e nas colecções dos jornais, ao mesmo tempo que ganha um espaço cada vez maior nas livrarias. Nos jornais, depois do relativo fiasco da Collezione Storica a Colori, lançada com os jornais La Reppublica e L’Espresso, que recolhia por ordem cronológica, em versões coloridas, as histórias da revista original (e que já tinham sido reeditadas por diversas vezes, em diferentes formatos, o que pode explicar a fraca aderência dos leitores), a parceria com La Gazzetta dello Sport, iniciada com a colecção I Colori della Paura, que recolhe as histórias de Dylan Dog Color Fest , correu bastante melhor, tendo terminado no nº 54, por já não haver mais histórias para publicar, de tal maneira que o maior jornal desportivo italiano voltou imediatamente a colaborar com a Bonelli numa nova colecção Il Nero della Paura, que começou a sair em Julho deste ano, no mesmo dia em que terminou a colecção anterior. Nas livrarias, onde as histórias de Dylan Dog já estavam presentes através das recolhas em capa dura da editora Mondadori e das luxuosas edições da Bao Publishing, juntam-se agora as edições da própria Bonelli de algumas obras seleccionadas, como Dopo un Lungo Silenzio, título que assinala o regresso do seu criador, Tiziano Sclavi à escrita da série.
E o regresso de Sclavi é uma das melhores notícias deste 30º aniversário, pois Dopo un Lungo Silenzio, ilustrada por Giampero Casertano e lançada em finais de Outubro durante o Festival de BD de Lucca, é uma belíssima e sombria reflexão sobre o alcoolismo, que revela um Sclavi em grande forma e bastante contido nas referências à cultura Pop. Uma história incontornável, que teve direito a três edições diferentes: a edição dos quiosques com uma capa completamente branca, uma edição de luxo para as livrarias, que inclui o argumento completo de Sclavi e uma terceira edição, exclusiva da cadeia de Livrarias da Mondadori. E a editora Bonelli não deixou de comemorar devidamente a ocasião, através de uma série de iniciativas, como Dylan Dog Presenta, um ciclo de cinema em articulação com a Universal Itália, que culmina com a exibição de 30 Anni di Incubi, um documentário sobre a série, na noite de Halloween, uma nova adaptação radiofónica das aventuras de Dylan Dog, que incluirá também a mais recente história escrita por Sclavi e uma Dylan Dog Experience, (uma experiência interactiva, aproveitando um palácio abandonado no centro de Lucca que vai ser transformado em Hotel) apresentada também em Lucca.
 Foi também em Lucca que foi revelada a alteração no responsável pelas capas da edição mensal, com Angelo Stano, que substituiu Claudio Villa a partir do nº 41, a dar lugar a Gigi Cavenago, ao fim de 26 anos e mais de 300 capas depois. Mas a grande novidade do Festival, foi o anúncio de que Tiziano Sclavi está a trabalhar numa nova série de Dylan Dog, chamada I Racontti di Domani, a lançar em 2017.
Ou seja, não restam dúvidas que trinta anos depois, Dylan Dog está mais vivo do que nunca e em muito boas mãos!

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Sandman 9: As Benevolentes - Parte 1

O PRINCÍPIO DO FIM

Sandman – Vol. 9
As Benevolentes  - Parte 1
Argumento - Neil Gaiman
Desenhos –  Marc Hempel, D’Israeli, Glyn Dillon e Charles Vess
Quinta, 01 de Dezembro
Por + 11,90€
Com o nono volume, que chega aos quiosques nacionais na próxima quinta-feira, a história de Sandman entra no seu acto final e o preço que Morfeu terá de pagar por derramar o seu próprio sangue – ao conceder ao seu filho Orfeu, o alívio da morte por que ele ansiava há séculos – vai ser muito alto.
Se dúvidas ainda houvesse de que a história de Morfeu, o Mestre dos Sonhos, é uma tragédia clássica, o capítulo decisivo, que ocupa os próximos dois volumes da série, dissipá-las-á de vez.
Pensada inicialmente para ser contada em seis capítulos, As Benevolentes acabou por ocupar treze números da série mensal, sendo de muito longe, a mais longa história de Sandman, o que fez com que, por uma questão de equilíbrio entre o tamanho dos volumes, fosse dividida em dois na edição portuguesa. Mesmo assim, os leitores portugueses apenas terão de esperar uma semana pelo desenlace da mais decisiva história da série, ao contrário de quem leu na altura a edição original americana, em que a história se prolongou por mais de um ano.
História extraordinariamente meticulosa, em que todas as peças do puzzle que Gaiman foi construindo de forma rigorosa ao longo da série, se encaixam finalmente no espaço previsto desde o início, As Benevolentes foi o maior desafio que Gaiman enfrentou até então enquanto escritor. Como o próprio refere numa entrevista, “quando comecei a escrever As Benevolentes, vi-me a mim próprio dentro de um camião muito, muito, grande, apontado a uma parede e a meter o pé no acelerador”.  Mas, mostrando que tinha mãos para conduzir esse camião, o escritor evita o desastre com brilhantismo, construindo uma história fantástica a todos os níveis, que contribui de forma decisiva para a mitologia da série.
Falando de mitologia, As Benevolentes é o volume de Sandman em que a mitologia clássica está mais presente, começando logo nas Benevolentes, as Euménides, as Três Parcas que tecem o destino dos homens com os seus fios e que aqui aparecem com uma imagem de três simpáticas senhoras inglesas, a fiarem enquanto bebem o seu chá, mesmo que uma delas prefira acompanhar o chá com um rato morto, em vez de biscoitos de gengibre… E a imagem do fio da vida que se interrompe ao ser cortado por uma das Benevolentes está presente a abrir cada um dos capítulos, frisando a ideia que o destino de Morfeu está traçado e irá ser cumprido, tal como estava escrito no livro do seu irmão cego, Destino.
Em termos gráficos, Gaiman também optou por correr riscos. Numa fase em que a popularidade e prestígio da série lhe permitiriam ter qualquer desenhador que quisesse, Gaiman optou por Marc Hempel, cujo estilo expressionista está longe de ser consensual, mas que se adequa perfeitamente às necessidades de uma história carregada de emoções, em que as fronteiras entre o mundo real e a fantasia se esbatem.
Publicado originalmente no jornal Público de 25/11/2016