quarta-feira, 30 de julho de 2014

Entrevista ao Diário As Beiras


Curiosamente, tendo terminado recentemente a coluna de Banda Desenhada que mantinha no Diário As Beiras há exactamente 20 anos, não esperava voltar tão cedo às páginas do jornal. Mas esse regresso aconteceu na passada sexta-feira, no renovado suplemento "Gente", onde também saia a minha coluna, quando a minha disponibilidade e o espaço disponível no jornal o permitiam.
A entrevista, profusamente ilustrada com fotografias de Luís Carregã, foi feita pela Patrícia Cruz Almeida e teve lugar na Livraria Dr. Kartoon. Foi uma conversa muito agradável, que me deu também a oportunidade indirecta de me despedir dos leitores do jornal, pois a minha coluna foi interrompida sem qualquer aviso aos leitores, que me acompanharam  desde Maio de 1994, quando o então director Joaquim Rosa de Carvalho, me convidou a escrever para o Diário As Beiras que tinha ainda poucos meses de vida, até Maio de 2014.
Foram vinte anos de publicação regular dos meus textos, que durante grande parte desse tempo foram  pagos  (mesmo que mal..), que chegaram ao fim de forma natural, face à minha menor disponibilidade e às sucessivas remodelações gráficas do jornal, que resultavam invariavelmente em menos espaço para a minha coluna, nos últimos tempos reduzida a um máximo de 1.200 caracteres.
Longe vão os anos em que cheguei a dispor de uma página completa do jornal, para publicar textos que ultrapassavam os 5.000 caracteres. Ficam as recordações, o Prémio de Imprensa do Festival da Amadora em 1996, para um texto publicado nas Beiras sobre a Balada do Mar Salgado de Hugo Pratt e entrevistas a grandes nomes da BD europeia, como François Bourgeon,  Miguelanxo Prado, Hermann, André Juillard e Milo Manara.
E fica já a saudade dos amigos que fiz no jornal, como a Lídia Pereira e o Paulo Marques e, sobretudo, dos leitores, que me podem continuar a acompanhar neste blog, sem limites de espaço, ou quaisquer constrangimentos editoriais.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Universo Marvel 3 - Homem-Aranha: A Última Caçada de Kraven


Tal como aconteceu com o 1º volume, no caso deste A Última Caçada de Kraven, também o editorial é da minha autoria. Daí que, em vez do texto que saiu no Público, tenha optado por publicar o editorial que escrevi para o livro, que desenvolve alguns aspectos que estão apenas aflorados no texto do jornal. Aqui está ele!

A SOMBRA DO CAÇADOR

Se pegássemos na vastíssima galeria de vilões que passaram pelas aventuras do Homem-Aranha e fizéssemos um Top Ten dos seus principais inimigos, dificilmente Kraven, o Caçador entraria nos três primeiros, mas a verdade é que uma história por ele protagonizada foi muito justamente considerada pelos visitantes do prestigiado site Comic Book Resources, como a melhor história do Homem-Aranha de todos os tempos.
E é precisamente essa história, A Última Caçada de Kraven, que publicamos neste volume. Uma história sombria, que reúne os talentos do escritor J. M. Dematteis e dos desenhadores Mike Zeck e Bob McLeod ao serviço de uma intriga perturbadora, em que Kraven, o Caçador, alveja o Homem-Aranha, enterra-o numa campa e assume temporariamente o seu lugar. Ou seja, uma história muito perturbadora (até pelo controverso final, que tanta polémica causou junto dos leitores) que mostra o lado mais negro do Homem-Aranha, que aqui não é o “simpático amigo da vizinhança” da série de animação.
Publicada originalmente entre Outubro e Novembro de 1987, esta história em 6 capítulos deveria ter sido publicada apenas na revista Spectacular Spider-Man, mas o editor Jim Salicrup lembrou-se de a espalhar pelas outras duas revistas do Homem-Aranha (Amazing Spider-Man e Web of Spider-Man) cujas páginas ocupou durante dois meses. Uma decisão ditada por motivos comerciais, pois obrigava os leitores a comprar as três revistas para conseguir ler a história, mas também por questões de lógica editorial, pois se Kraven mata o Homem-Aranha e ocupa o seu lugar, seria naturalmente confuso para os leitores que a vida de Peter Parker seguisse o seu percurso normal nos outros títulos, enquanto o herói estava debaixo de seis palmos de terra nas páginas de Spectacular Spider-Man
Se a premissa-base da história, em que um vilão mata o Homem-Aranha e passa a vestir o seu uniforme e a fazer o seu trabalho, tem, para os leitores actuais, grandes semelhanças com a história que Dan Slott criou para o Homem-Aranha Superior, trocando apenas Kraven pelo Dr. Octopus, o que mostra a influência do trabalho de De Matteis, quase trinta nos depois, a verdade é que A Última Caçada de Kraven não foi a primeira vez que o escritor tentou contar a história de um vilão que mata o herói e assume o seu lugar. Longe disso.
Reza a lenda que, já em meados da década de 80, De Matteis tinha proposto à Marvel uma mini-série doWonder Man, em que este era enterrade e acabava por conseguir abandonar a campa, mas o editor Tom DeFalco rejeitou a proposta, o que, anos mais tarde, levou o escritor a reformular a história e levá-la à DC, transformada numa aventura do Batman, em que o Joker mata o Batman, o que o deixa curado… Mais uma vez, a proposta seria rejeitada, neste caso, por ter alguns pontos de contacto com A Piada Mortal, que Alan Moore estava a preparar na altura. Só quando John Marc De Matteis reformulou outra vez o conceito e o levou à Marvel, transformado numa aventura do Homem-Aranha, é que a história foi finalmente aceite, com o sucesso que hoje se conhece.
Com um tom muito mais sombrio do que o habitual e referências literárias pouco habituais numa história de super-heróis, esta história é filha do seu tempo, reflectindo a alteração dos comics de super-heróis para um registo mais violento e realista, destinado a um público mais adulto, fazendo por isso mais sentido fora da continuidade normal do herói. O próprio De Matteis é aliás o primeiro a reconhece-lo, quando diz: “não estou a pensar para além destes seis números. Esta história não entra muito na continuidade dos outros livros. Na verdade, acho que se podiam pegar nestes seis capítulos e publicá-los separados, como uma mini-série, ou uma novela gráfica”.
Nascido em Nova Iorque em 1953, John Marc De Matteis queria ser músico rock, ou desenhador de BD, mas seria como argumentista que construiria uma carreira tão prolífica como bem-sucedida. Tendo começado a trabalhar para a DC em finais dos anos 70, De Matteis chegaria à Marvel em 1980, graças ao mítico editor Jim Shooter, que depois de alguns trabalhos menores, lhe confiou a escrita da revista do Capitão América, no que seria sua primeira colaboração com o desenhador Mike Zeck. Mas, mais do que as histórias de super-heróis, seriam os projectos mais artísticos que ajudaram a construir a fama de De Matteis. Mini-séries de luxo, ilustradas em cor directa, como Moonshadow, que escreveu para Jon J. Muth, ou Blood: A Tale, uma poética história de vampiros, pensada para o traço de Kent Williams.
Num registo bem diferente, mas igualmente memorável, estão as divertidas histórias da Liga da Justiça Internacional, que escreveu a meias com Keith Giffen, que contrapõem ao registo sombrio que dominava os comics da época, um humor absolutamente delirante. Humor que está ausente de A Última Caçada de Kraven, história que dá uma dimensão trágica e uma dignidade insuspeitada a um vilão menor do Homem-Aranha, Kraven, dá o merecido destaque a Ratus, uma espécie de ratazana humana, que Zeck e Matteis tinham criado durante a sua passagem comum pela revista do Capitão América e utiliza de forma eficaz o aspecto mais sombrio do novo fato que o Homem-Aranha ganhou durante as Guerras Secretas.
Muito bem construída em termos narrativos, com uma versão do famoso poema The Tyger, de William Blake (que Alan Moore já tinha utilizado no capítulo 5 da série Watchmen) em que o tigre (tyger) dá lugar à aranha (spyder), a funcionar quase como um mantra, pontuando os momentos mais importantes da narrativa, A Última Caçada de Kraven é o exemplo perfeito de uma boa história a que a cumplicidade e colaboração entre o argumentista e o desenhador, dá uma dimensão extra.
A parte gráfica foi assegurada por Mike Zeck, prolífico e talentoso desenhador que os leitores portugueses já conhecem dos dois volumes da saga Guerras Secretas, publicada na primeira colecção que a Levoir dedicou à Marvel e que aqui, apoiado na inspirada arte-final de Bob McLeod, assina um dos seus melhores trabalhos de sempre, marcado por um realismo sombrio, muito típico da segunda metade da década de 80, em que a influência de obras seminais como The Dark Knight Returns, de Frank Miller e Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons, se fazia sentir fortemente.
O sucesso de A Última Caçada… foi tal que o próprio De Matteis voltaria pegar na história, novamente com Mike Zeck, em 1992, na novela gráfica Soul of the Hunter. E as coisas não ficaram por aqui, pois, regularmente, a relação entre Kraven, O Caçador e o Homem-Aranha volta ser abordada em mini-séries como Grim Hunt e Kraven First Hunt, em que descobrimos que Kraven deixou uma filha, que está pronta para acabar o trabalho do pai. Mas essas continuações, apesar de bem conseguidas, não fazem esquecer a história original. Uma história que, graças a esta colecção, os leitores nacionais vão poder ler finalmente em português de Portugal, numa edição que faz justiça à importância da obra.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Lembrando Carlos Paredes, 10 anos depois


Passam hoje exactamente 10 anos sobre o falecimento de Carlos Paredes, artista genial e verdadeiro mago da guitarra. Para evocar a data, lembrei-me de recuperar um punhado de imagens do livro Movimentos Perpétuos: BD para Carlos Paredes, lançado em 2004 com o jornal Público e que reúne grandes nomes da BD e da literatura nacionais. a colaborarem em histórias curtas de homenagem a Paredes.
Assim, o escritor de canções Sérgio Godinho escreveu uma história para Daniel Lima ilustrar, Gonçalo M. Tavares assinou um argumento para o traço único de João Fazenda, Adolfo Luxuria Canibal assina um conto ilustrado por Carlos Zíngaro, José Viale Moutinho junta-se a José Manuel Saraiva e Mário de Carvalho assina o argumento para uma BD de Nuno Saraiva.
As únicas excepções à regra de juntar um escritor a um autor de BD, são um cartoon de Luís Afonso e Variações em Sal, a BD de José Carlos Fernandes que podem ler a seguir. Uma belíssima história que, agora que o criador da Pior Banda do Mundo abandonou a Banda Desenhada, faz ainda mais sentido recuperar. Escusado será dizer que para ver melhor as imagens e ler a história, basta clickar nelas...











quinta-feira, 17 de julho de 2014

Universo Marvel 2 - Capitão América: O Soldado do Inverno 2



O COMBATE FINAL ENTRE O CAPITÃO AMÉRICA E O SOLDADO DE INVERNO

Universo Marvel - Vol 2 
Capitão américa: O Soldado do Inverno, Parte 2 
Argumento - Ed Brubaker Desenhos - Steve Epting, Michael Lark, Lee Weeks e Stefano Guaudiano 
Quinta, 18 de Julho + 8,90 €
Conclui no segundo volume, que chega às bancas e quiosque de todo o país na próxima quinta-feira, a história épica que assinalou a estreia de Ed Brubaker como escritor do Capitão América e o regresso de Bucky Barnes ao Universo Marvel, como o Soldado do Inverno. A mesma história que serviu de base para o último filme do Capitão América, estreado em finais de Março com enorme sucesso em todo o mundo, incluindo Portugal.
 Criado em 1941 por Joe Simon e Jack Kirby, correspondendo ao gosto da época, que preconizava que os heróis deviam contar com o apoio de um sidekick, um ajudante juvenil, com o qual os jovens leitores se pudessem mais facilmente identificar, tal como acontecia em relação ao Batman e ao Robin, Bucky foi o fiel companheiro do Capitão América durante a Segunda Guerra Mundial acompanhando o herói na sua luta contra os inimigos da nação americana. Mesmo com o fim da guerra, e a consequente perda de popularidade do Capitão América, que levou ao cancelamento da revista que lhe era dedicada, Bucky manteve-se ao seu lado, quando os dois regressaram à BD em finais de 1953, no auge da Guerra Fria E em pleno macarthismo, como caçadores de comunistas, num curto regresso quase sem história e completamente sem glória, de que Simon e Kirby não têm qualquer responsabilidade.
Quando em 1964, já em plena era Marvel, Stan Lee e Jack Kirby decidem recuperar o Capitão América na revista dos Vingadores, Bucky já não o acompanha, pois Stan Lee, que nunca foi muito entusiasta dos jovens sidekicks, achava que só um super-herói completamente irresponsável é que iria colocar em risco a vida de um menor, obrigando-o a combater criminosos adultos e impiedosos. Assim, ficou estabelecido que Bucky perdeu a vida no final da Segunda Guerra Mundial, na sequência do acidente que deixou o Capitão América em estado de hibernação suspensa num bloco de gelo durante décadas, e assim se manteve morto durante largas décadas.
Se nas histórias de super-heróis a morte raramente é permanente, a persistência com que Bucky se manteve ausente das histórias do Capitão América, excepto nas cenas de flashbacks passadas na Segunda Guerra Mundial, mostrou ser tão notável, que até deu origem a um aforismo, célebre entre os leitores de histórias de super-heróis, que ficou conhecido como a Cláusula Bucky. Segundo essa cláusula, nos comics de super-heróis “ninguém permanece morto, excepto o Bucky, Jason Todd e o Tio Ben”. A verdade, é que, até ver, apenas o Tio Ben, cuja morte levou Peter Parker a transformar-se no Homem-Aranha, se mantém morto, pois Jason Todd, que tinha combatido ao lado do Batman como o segundo Robin, também vai sofrer um processo muito semelhante ao de Bucky, regressando ao mundo dos vivos como inimigo do homem que foi o seu mentor.
É esse confronto entre o Capitão América e o homem que foi o seu maior amigo durante a Segunda Guerra Mundial, que está no centro deste segundo volume, em que descobrimos como o exército soviético resgatou Bucky dos braços da morte e manipulou o seu corpo e a sua mente, até o transformar numa fria e eficiente máquina de matar, o Soldado do Inverno. Mas esse é apenas um dos elementos de uma complexa história de espionagem, em que Steve Rogers, o Capitão América, descobre ser um mero pião de uma conspiração mais vasta, urdida de forma maquiavélica por um velho inimigo que todos julgavam morto.
Publicado originalmente no jornal Público de 11/07/2014

terça-feira, 15 de julho de 2014

O Regresso do Transperceneige... como Snowpiercer


“Percorrendo a branca imensidão de um inverno eterno e gelado de uma ponta à outra do planeta, roda um comboio que nunca pára. É o trespassa-neve das mil e uma carruagens. É o último bastião da civilização!”




Assim começa Le Transperceneige, a Banda Desenhada de culto de Jacques Lob e Jean-Marc Rochette que, mais de 30 anos após a sua publicação original, conhece uma segunda vida graças ao cineasta coreano Bong Joon-Ho que a usou como ponto de partida do seu filme Snowpiercer.
Publicado originalmente em 1982 na revista (A Suivre) a partir do nº. 57, o percurso do Transperceneige iniciou-se 5 anos antes, em 1977, quando Jean-Paul Mougin, o carismático chefe de redacção, convidou Lob a estar presente desde o primeiro número da nova revista, com uma história a preto e branco, de grande fôlego, na linha do conceito do romance em BD que a revista ajudou a lançar.
Primeiro (e até agora, único) argumentista a vencer o Grande Prémio de Angoulême, Jacques Lob era um talentoso e prolífico escritor, com colaborações com alguns dos maiores desenhadores franco-belgas, como Pichard (Blanche Epiphanie), Druillet (Delírius), Baudoin (Carla) e Jijé (Jerry Spring), entre outros, no seu currículo e que para Le Transperceneige decidiu trabalhar com Alexis, um dos principais desenhadores da revista Fluide Glacial, na qual Lob também participou escrevendo a meias com Gotlib alguns episódios de Superdupont.
Infelizmente, a colaboração dos dois autores em Le Transperceneige seria rapidamente interrompida pela morte de Alexis, aos 31 anos, devido à ruptura de um aneurisma, quando apenas tinha desenhado 16 páginas da história, páginas essas que nunca veriam a luz do dia.

Passado o choque causado pelo brutal desaparecimento do jovem e talentoso desenhador, tanto o argumentista como o editor acharam que a história de Le Transperceneige não devia terminar aqui e começaram as buscas para encontrar um novo desenhador. Entre os desenhadores convidados a realizar duas páginas de teste estavam Michel Rouge (que haveria de substituir Hermann em Comanche e William Vance em Marshall Blueberry), Regis Loisel (o desenhador de La Quête de L'Oiseau du Temps e Peter Pan) e François Schuiten, então com apenas 20 anos. Curiosamente, apesar do extraordinário talento gráfico de Schuiten e das suas afinidades com os comboios, evidentes em livros como Le Rail, ou no mais recente 12 La Douce, a verdade é que as páginas apresentadas pelo criador da série As Cidades Obscuras, tal como o estudo para o comboio que podem ver aqui,  não convenceram Lob e os leitores perderam assim a oportunidade de lerem essa história desenhada por Schuiten.
O artista escolhido para suceder a Alexis seria finalmente Jean-Marc Rochette, um jovem desenhador de 21 anos que começava a dar nas vistas com a série Edmond Le Cochon, escrita por Martin Veyron, que os leitores portugueses mais atentos puderam ler nos finais dos anos 80 nas páginas da saudosa revista brasileira Animal. Está série humorística, com animais antropomorfizados e influências de Robert Crumb, estava longe de tornar evidente a escolha de Rochette para ilustrar um drama sombrio e claustrofóbico como Le Transperceneige, mas o futuro viria dar razão a Jacques Lob, e a colaboração entre os dois criadores deu origem a uma das mais inesquecíveis séries publicadas na revista (A Suivre).
Ambientada num futuro pós-apocalíptico, em que a Terra está assolada por uma nova Idade do Gelo, a história de Le Transperceneige reflecte as angústias com o futuro do planeta que a Guerra Fria ajudou a alimentar e que está patente em muita ficção da época, seja em BDs como Simon Du Fleuve, de Auclair, ou Jeremiah de Hermann, ou em filmes como a série Mad Max, de George Miller. Há também uma dimensão política bem evidente, na estratificação social que impera no comboio, com os ricos luxuosamente instalados nas carruagens da frente e o povo amontoado sem quaisquer condições nas carruagens da retaguarda.
Gerindo o espaço fechado e claustrofóbico do comboio, em contraste com a imensidão gelada que o envolve, Lob cria uma história de amor trágica entre Prolof e Adeline, dois passageiros de classes sociais diferentes, ambientada num futuro distópico, que esteticamente remete para o regime soviético, sendo provável que o Transiberiano, onde a companheira de Lob viajou, tenha servido de inspiração para o Transperceneige. Concebido como uma história fechada, como era regra na revista (A Suivre), o Transperceneige foi recolhido em álbum em 1984, com grande sucesso crítico e comercial. Apesar desse sucesso, a continuação da história nunca esteve em equação, até porque Rochette decidiu trocar a BD pela pintura e Jacques Lob morreria em 1990, vítima de cancro.
Só que Rochette, entretanto regressado à BD, tinha vontade de voltar ao universo do Transperceneige e em 1998 convenceu o escritor Benjamin Legrand, vindo do cinema, mas que já tinha mostrado o seu talento para a BD ao assinar o argumento de Tueur de Cafards, para Tardi, a acompanhá-lo nesta nova viagem. A missão de Legrand não era fácil, pois a história original não dava a azo a continuações, até que Legrand se lembrou de inventar um segundo comboio, ainda maior, que percorria os mesmos carris, sem notícias sobre o destino do Transperceneige original, com quem se arriscava a chocar. Este segundo ciclo deu origem a dois álbuns, L'Arpenteur e La Traversée, publicados em 1999 e 2000, cuja carreira comercial acabou por ser prejudicada pelo fim da revista (A Suivre) e pela crise que à época afectava a editora Casterman, inviabilizando a ideia de Rochette e Legrand de um terceiro volume que fechasse este segundo ciclo.
No início do século XXI parecia que esta série mítica tinha caído finalmente no esquecimento, até que, já em 2005, curiosamente no mesmo dia em que recebeu um mail da editora a avisar que as sobras dos livros iam ser destruídas, Rochette recebe também um telefonema do editor a contar-lhe que havia alguém na Coreia interessado em adquirir os direitos do Transperceneige para o levar ao cinema. Esse alguém era o realizador Bon Joon-Ho, fã de Banda Desenhada, que descobriu o livro numa livraria de Seul, quando estava a preparar as filmagens de The Host e que, mal o leu, soube que estava ali o seu próximo projecto cinematográfico. A descoberta da BD por Bong Joon-Ho foi ainda mais inesperada, porque o livro oficialmente nem sequer tinha edição coreana (a editora coreana tinha contactado a Casterman para adquirir os direitos para a Correia do Sul, mas como a editora francesa nunca lhes respondeu, decidiram publicar o livro mesmo assim...).

Embora tenha adquirido os direitos do livro em 2005, Bong Joon-Ho só começou a trabalhar verdadeiramente no filme em 2010, começando por se ocupar do argumento. Um argumento que, mais do que adaptar directamente os livros, retém o cenário e a ideia da personagem que atravessa o comboio, para além de um ou outro pormenor, como o engenheiro aprisionado numa gaveta como se estivesse na morgue, ou o passageiro de uma das últimas carruagens que, como prenda de anos, pede para ser deixado sozinho na sua carruagem por alguns minutos. Esses elementos das BDs são usados como ponto de partida para uma história original, com novas personagens, como Curtis, o protagonista do filme, que inicia a revolta que lhe permitirá percorrer o comboio e confrontar Wilford, o inventor do Snowpiercer, que vive recluso na carruagem da frente. Um percurso que não pode deixar de evocar o do personagem de Martin Sheen no filme Apocalipse Now, que sobe o rio para enfrentar o Coronel Kurtz, como Curtis percorre o comboio para chegar a Wilford, comparação que o próprio realizador não renega.

Produzido por Park Chan-Wook, o realizador de Old Boy, o filme com um orçamento considerável (para os padrões coreanos) de 40 milhões de dólares, reúne um surpreendente elenco internacional, com destaque para Tilda Swinton, John Hurt, Ed Harris, Jamie Bell e Chris Evans, o Capitão América que, para grande espanto de Bong Joon-Ho apresentou-se no casting por sua própria iniciativa, decidido a lutar pelo papel principal, que desempenha de forma muito convincente. Visualmente espectacular, com cenas de acção viscerais, extraordinariamente coreografadas (pensem na célebre cena do martelo e do corredor em Old Boy, elevada à quinta potência) e uma história cativante e muito bem contada, Snowpiercer conheceu um êxito estrondoso na Coreia do Sul e em França, onde estreou em 2013. Infelizmente, Harvey Weinstein, o produtor dos filmes de Quentin Tarantino, que comprou os direitos de exibição de Snowpiercer para os mercados de língua inglesa, pretendia impor cortes de mais de meia hora no filme, contra a vontade do realizador, que sempre teve o “final cut” das suas obras. Em consequência disso, a estreia de Snowpiercer no mercado americano foi sendo sucessivamente adiada e, finalmente, após muitas discussões, estreará nos Estados Unidos em Junho de 2014, sem cortes, mas numa distribuição limitada a um número reduzido de salas de cinema.
Quanto a Portugal, o filme cegou às salas na passada quinta-feira, 24 de Julho, apesar do trailler já estar a passar nos cinemas nacionais, com o subtítulo "expresso do amanhã", mas para além da excelente edição em DVD da Wild Side, pejada de extras, que está disponível na Amazon francesa, é relativamente fácil encontrar o filme nos sites de partilha de ficheiros na Internet.
Para os autores da BD ainda vivos, para além da participação no filme como figurantes e, no caso de Rochette, de emprestar as mãos e o talento ao personagem que no filme desenha o dia-a-dia do comboio, Snowpiercer permitiu a redescoberta do seu trabalho, praticamente caído no esquecimento, por um público muito mais alargado, até porque, graças ao filme, os livros tiveram finalmente edição em língua inglesa.
Como refere Rochette: “O Transperceneige é neste momento a BD francesa mais conhecida no mundo. O Tintin não é francês e o Asterix vende sobretudo em França e na Alemanha, enquanto que o Transperceneige está actualmente disponível em 167 países. É delirante!”
Texto publicado no nº 16 da revista Bang!, de Junho de 2014.

domingo, 6 de julho de 2014

Apresentação da colecção Universo Marvel


Saiu na edição de hoje do jornal Público o destacável de apresentação da terceira colecção que a Levoir e o Público dedicam à Marvel, que chega às bancas e quiosques a partir da próxima quinta-feira, 10 de Julho. Como de costume, os textos do destacável são da minha autoria e aqui os recupero para os leitores do blog que não compraram o Público. 

EXPLORANDO O UNIVERSO MARVEL

Os maiores heróis da Marvel aliam-se para combater o crime por toda a Galáxia na nova colecção que o Público dedica à maior editora de super-heróis do mundo, a Marvel. Uma colecção de histórias a não perder, que exploram a imensidão do Universo Marvel, através das sagas épicas que marcaram a sua evolução.
Face ao sucesso das anteriores colecções, os super-heróis regressam ao Público, numa nova colecção de 20 volumes, que a partir de 3 de Julho, vão chegar às bancas, todas as 5as feiras com o seu jornal.
Uma nova colecção dedicada aos heróis da Marvel, a mais popular editora americana do género, mas que obedece a uma filosofia diferente da das colecções anteriores, mais centradas nas aventuras individuais dos principais heróis. Desta vez, o destaque vai para o Universo Marvel, entendido como um todo, ancorando-se a colecção nas grandes sagas que vão colocar lado a lado, e muitas vezes em confronto, os principais heróis da “Casa das Ideias”.
Desde a sua criação em inícios da década de 60, por Stan Lee e Jack Kirby, que o universo Marvel se destacou pela sua unidade e coerência, que fez com que o que acontecia a um herói numa revista, se reflectisse naturalmente na realidade dos outros heróis que povoavam o mesmo universo ficcional e o mesmo espaço real - a cidade de Nova Iorque.
Perante o estrondoso sucesso da primeira saga global, as Guerras Secretas, que os leitores do Público tiveram oportunidade de ler nos volumes 12 e 13 da primeira colecção dedicada à Marvel, estas sagas épicas, ou crossovers, nome dado pelos americanos a estas história que juntam vários heróis, cujas consequências afectam a globalidade do universo Marvel, têm-se multiplicado com uma frequência cada vez maior, servindo para matar alguns heróis e vilões e introduzir novas personagens. A abrir e a fechar a segunda série dedicada à Marvel, tivemos precisamente duas dessas sagas: Dinastia de M e Guerra Civil, e agora, na terceira colecção que o Público e a Levoir dedicam à Casa das Ideias, estas grandes sagas vão servir precisamente de principal eixo condutor da nova colecção. 
Sagas como a Invasão Secreta, o Cerco, A Essência do Medo, ou Vingadores Versus X-Men. Histórias épicas cujas consequências alteraram profundamente o universo Marvel e que o leitor português vai poder ler pela primeira vez, em cuidadas edições, na sua esmagadora maioria inéditas em Portugal, com a qualidade a que estas colecções já o habituaram. Mas este não é o único motivo de interesse desta nova colecção, que recupera grandes clássicos, como o incontornável Marvels, de Kurt Busiek e Alex Ross, Homem-Aranha: A Última Caçada de Kraven, Homem de Ferro: Demónios, Hulk: Cinzento, de Jeph Loeb e Tim Sale, Capitão América: Soldado do Inverno, de Ed Brubaker, Guardiões da Galáxia: Legado e o clássico dos clássicos, X-Men: Dias de um Futuro Esquecido, de John Byrne e Chris Claremont, com estes três últimos títulos a servirem de base aos mais recentes sucessos da Marvel no cinema.
E, confirmando a diversidade de abordagens que o Universo Marvel possibilita, temos um volume que recolhe as principais histórias que Mike Mignola, o criador de Hellboy ilustrou para a Marvel, uma série de contos de fadas tradicionais adaptados ao universo Marvel por C. B. Cebulsky, num volume ilustrado maioritariamente por desenhadores portugueses, como João Lemos, Nuno Plati e Ricardo Tércio, ou a estreia na Marvel de um dos monstros sagrados da BD europeia, o italiano Milo Manara, ilustrando como só ele sabe, um volume dedicado, naturalmente, às Mulheres da Marvel, onde também brilha o traço dos portugueses Filipe Andrade e Nuno Plati,
Agora, resta o leitor esperar pelas próximas quintas-feiras, para juntar à sua coleção quase duas dezenas de grandes histórias, com os maiores heróis da Marvel, protagonizando as mais épicas sagas que o Universo Marvel já viu.

 CINCO MOTIVOS PARA NÃO PERDER
A NOVA COLECÇÃO UNIVERSO MARVEL


Para além do prazer de (re)encontrar os principais heróis da Marvel, em histórias emocionantes, escritas e ilustradas pelos maiores autores mundais a trabalhar no mercado americano, esta nova colecção tem características próprias, que a distinguém das anteriores e a tornam ainda mais imperdível.

1 – Grandes Sagas 

As histórias épicas, que reuném diferentes heróis e vilões e que exploram em profundidade a dimensão cósmica do Universo Marvel, vão servir de fio condutor a esta colecção, começando com a Invasão Secreta, uma história escrita por Brian Michael Bendis, em que os principais heróis da Marvel têm que deter uma invasão dos Skrulls, uma raça alienigena com uma capacidade mimética que lhes permite assumir assumir a aparência e os poderes dos super-heróis terrestres e assim inflitrarem-se no meio deles. Segue-se Cerco, em que Asgard, a mítica terra dos Deuses Nórdicos, transportada para os céus da América profunda, é atacada pela H.A.M.M.E.R., a mais poderosa força de segurança do mundo, comandada por Norman Osborn, que substitui a S.H.I.E.L.D., depois desta ter sido dissolvida na sequência dos acontecimentos da Invasão secreta. Uma história épica, que opõe os heróis da Terra aos Deuses de Asgard e que funciona como capítulo final de uma saga mais vasta, iniciada com a Guerra Civil, já publicada numa anterior colecção. Do mesmo modo, os acontecimentos de Cerco, vão estar na origem de A Essência do Medo, em que Thor e o Capitão América tem que se aliar contra Odin, que pretende destruir a Terra para salvar Asgard.
Finalmente, a fechar a colecção, teremos Vingadores Vs X-Men, história que coloca de lados diferentes da barricada os dois principais grupos de super-heróis da Marvel, num combate do qual depende o futuro do Universo Marvel.

2 – Clássicos Incontornáveis 

Do mítico Marvels, que reúne os talentos de Kurt Busiek e Alex Ross, para contar a história dos primeiros anos do Universo Marvel, na perspectiva do cidadão comum, até ao Hulk: Cinzento, da premiada dupla Jeph Loeb e Tim Sale, não faltam clássicos nesta colecção. Clássicos como A última Caçada de Kraven, considerada pela crítica como a melhor história do Homem-Aranha de sempre, ou Demónios, história em que o Homem de Ferro tem que enfrentar um inimigo invulnerável aos seus vastos recursos, o alcoolismo, ou Vingadores para Sempre, história tão épica que são precisos dois volumes para contar e que reúne os talentos de Kurt Busiek e do espanhol Carlos Pacheco, para não falar do clássico dos clássicos, os Dias de um Futuro Esquecido, uma das mais conhecidas e populares aventuras dos X-Men, que nos leva a outra razão para não perder esta colecção...

3 – Da BD para o cinema 

Os mais recentes filmes da Marvel estreados, ou a estrear neste Verão, têm por base histórias que estão incluídas nesta colecção. É o caso, logo a abrir, de O Soldado do Inverno, história do Capitão América escrita por Ed Brubaker, que serve de ponto de partida para o segundo filme do Capitão América, dirigido por Anthony e Joe Russo, que desde a sua estreia em fins de Março, tem conquistado as bilheteiras de todo o mundo. Também o filme dos Guardiões da Galáxia, dirigido por James Gunn e que chega aos cinemas de todo o mundo em 1 de Agosto, tem por base Legado, a mini-série de Andy Lanning, Dan Abnett e Paul Pelletier, que chega aos quiosques no preciso dia em que o filme estreia. E há ainda o clássico incontornável dos X-Men de Chris Claremont e John Byrne, Dias de um Futuro Esquecido, que para além de ter influenciado o filme Terminator, de James Cameron está na origem do mais recente filme de Bryan Singer, que reúne duas gerações diferentes de mutantes numa história épica.

4 – Made in Portugal 

Se os desenhadores portugueses já tinham dado um primeiro ar da sua graça na anterior colecção, com duas histórias curtas assinadas por Filipe Andrade e Nuno Plati, no volume dedicado ao Homem de Ferro, nesta nova colecção eles são o destaque principal do volume dedicado aos Contos de Fadas Marvel, em que contos de fadas tradicionais, como Peter Pan, O Capuchinho Vermelho, ou Pinóquio são transpostos para o Universo Marvel. Um volume, escrito por C. B. Cebulsky, que inclui quatro histórias ilustradas pelos desenhadores portugueses, Ricardo Tércio (que ilustra duas histórias), João Lemos e Nuno Plati. Mas os ilustradores nacionais estão também presentes no volume dedicado ás Mulheres da Marvel, onde Nuno Plati e Filipe Andrade, brilham ao lado de uma super-estrela como Milo Manara.

5 – Autores a descobrir
Milo Manara, o mestre europeu do erotismo na BD, que colabora com Chris Claremont numa história protagonizada pelas heroínas do grupo X-Men, não é o unico grande autor que aparece pela primeira vez a trabalhar numa história da Marvel nesta colecção. Desenhadores como o popular Alex Ross, que conquistou o mundo dos comics com o seu realismo épico em Marvels; Mike Mignola, o criador de Hellboy, que ilustra o improvável encontro entre o Doutor Estranho e o Dr. Destino; o virtuoso italiano Simone Bianchi, que colabora com Jeph Loeb numa espectacular aventura de Wolverine; a premiada dupla Jeph Loeb e Tim Sale, que dão o seu toque pessoal aos primeiros anos do Hulk, ou o grande argumentista J. M. De Matteis, responsável, com o desenhador Mike Zeck, por uma das melhores histórias do Homem-Aranha de todos os tempos, todos emprestam o seu talento às histórias inesquecíveis que vão poder ler com o jornal Público nas próximas vinte semanas. 

Textos originalmente publicados no jornal Público de 06/07/2014