domingo, 27 de março de 2011

Adèle Blanc-Sec no cinema


Depois da estreia no último FantasPorto, onde arrebatou o Prémio do Público, já chegou às salas de cinema nacionais a adaptação cinematográfica feita por Luc Besson da série “Adèle Blanc-Sec”, de Jacques Tardi. Rebaptizada (vá lá saber-se porquê) “A Maldição do Faraó” no mercado português, o filme adapta elementos dos 2 primeiros e do 4º álbum da série, numa história original, que bebe tanto da obra de Tardi, como da série “Indiana Jones”.
Um dos mais populares cineastas franceses da actualidade, responsável por grandes sucessos como “Leon, O Profissional” (que lançou Natalie Portman) e “O Quinto Elemento”, obras que em termos de meios, filosofia e linguagem, estão mais próximas dos filmes de Hollywood do que do cinema europeu, Besson estreia-se aqui na adaptação de uma Banda Desenhada, mesmo que “O Quinto Elemento”, em que trabalharam autores como Jean-Claude Mèzieres e Moebius, vá beber muito à série “Incal” de Moebius e Jodorowsky.
Filme movimentado e divertido, “As Aventuras de Adèle Blanc-Sec” tem o seu ponto mais forte no trabalho de produção, dos efeitos especiais à maquilhagem, havendo uma grande preocupação de dar aos actores um aspecto que os aproxime o mais possível dos desenhos de Tardi. E, com a excepção da própria Adèle (Louise Bourgoin é bastante mais bonita do que a heroína desenhada por Tardi) a caracterização dos actores que interpretam os papeis de Dieuleveult, Saint-Hubert, Esperandieu e do Inspector Caponi, faz deles cópias vivas das personagens desenhadas por Tardi, que têm uma pequena participação no final do filme, ao lado da sua mulher, a cantora Dominique Granje, como um casal que embarca no Titanic à frente de Adèle.
Carregando mais no humor do que a Banda Desenhada que lhe deu origem, o filme vive muito do excelente desempenho de Louise Bourgoin, que revela um excelente timing para comédia. Veja-se a delirante sequência (que não vem nos livros e mais parece tirada de um desenho animado dos Looney Toons) em que Adèle usa vários disfarces para ajudar Esperandieu a escapar da prisão da Santé.
Mesmo sem ter sido um sucesso estrondoso, o filme vendeu suficientemente bem para que se fale numa trilogia. Com nove álbuns de Adèle Blanc-Sec publicados em França, não falta material para adaptar e, tendo em conta que estes filmes ajudam sempre a puxar as vendas dos livros que lhe servem de inspiração, pode ser que a Asa, que acabou de lançar o 3º volume da série com o jornal "Público", se lembre de lançar os álbuns que faltam em português.
(“A Maldição do Faráo: As Aventuras de Adèle Blanc-Sec”, de Luc Besson, com Louise Bourgoin e Mathieu Almaric, Europa Corp, 2010. Em exibição em Coimbra nos cinemas Zon /Lusomundo Fórum Coimbra)
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 26/03/2011

segunda-feira, 21 de março de 2011

O regresso do Gambuzine


Prova viva de que há edição independente de autores portugueses, fora do círculo de influência da distribuidora Chili com Carne, o fanzine/revista “Gambuzine” regressou com o 2º número desta segunda série, distribuído em finais de 2010.
Articulando os autores portugueses, com uma forte presença de autores do norte da Europa, fruto dos contactos que a editora Teresa Câmara Pestana criou durante o tempo que viveu na Alemanha, este novo “Gambuzine” tem como destaque principal o alemão Wittek, objecto de uma entrevista e da publicação de cinco histórias, que mostram bem a grande versatilidade do seu traço, tão à vontade no realismo, como na caricatura. Na 1ª história, “A Ilha da Cura”, um conto fantástico na linha das histórias da E.C: Comics, ambientado no Japão medieval, Wittek vai beber à gravura japonesa, com excelente resultados, enquanto que nas histórias de temática autobiográfica, opta por um registo mais caricatural, muito expressivo e divertido.
Dos mais de 20 artistas cujos trabalhos enchem as 100 páginas deste “Gambuzine”, um pouco menos de metade são portugueses, com destaque para Teresa Câmara Pestana, que assina 4 histórias (uma delas a partir de um texto do seu primo, Vasco Câmara Pestana) e parece ter criado escola, a avaliar pela influência do seu traço, detectável nos trabalhos de Fruzzie e Schmicko. Além desse núcleo duro que colabora habitualmente com Teresa Câmara Pestana, há também autores nacionais vindos de outros lados, como Pedro Rocha Nogueira, que já tem trabalhos editados pelas Bedetecas de Lisboa e Beja, e Álvaro, presença habitual no catálogo da Pedranocharco, que se estreia no “Gambuzine” com “Aula de Educação Sexual”, uma divertida história protagonizada por uma professora, cujas semelhanças fisionómicas com a anterior Ministra da Educação, devem ser mais do que mera coincidência…
Para além de dar a conhecer autores alemães e austríacos pouco conhecidos em Portugal, como Ulli Lust, vencedora de um dos Prémios do último Festival de Angoulême, que foi publicada em Portugal pela primeira vez no “Gambuzine”, o fanzine de Teresa Câmara Pestana é também um espaço de liberdade para os autores portugueses, que é importante manter. Cabe aos leitores, através da compra do “Gambuzine”, que em Coimbra se encontra à venda na Livraria Dr. Kartoon, contribuir para a sobrevivência deste belo projecto, só possível graças ao grande dinamismo da sua responsável.
(“Gambuzine” nº 2, Vários Autores, ed. Teresa Câmara Pestana, 100 pags, 8,0 €. Mais informações aqui)
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 19/03/2011

quarta-feira, 16 de março de 2011

O Gato de Sfar


Tal como aqui referi na semana passada, há que estar atento à colecção “Os Incontornáveis da Banda Desenhada”, actualmente em distribuição nos quiosques. A prová-lo está este 2º volume, que recolhe 3 álbuns da série “O Gato do Rabino”, de Joann Sfar.
Um dos mais prolíficos criadores da BD europeia, Sfar tem uma produtividade inacreditável, acumulando uma vasta actividade como argumentista e desenhador, com incursões ocasionais noutras áreas, como o cinema, onde se estreou com o magnífico “Gainsbourg, Vie Heroique”, uma biografia em tom de fábula do cantor francês Serge Gainsbourg, que passou de forma discreta nos cinemas portugueses (em Coimbra, passou apenas durante a Festa do Cinema Francês), estando a trabalhar neste momento num filme de animação baseado precisamente nesta série “O Gato do Rabino”, de que já circulam algumas imagens.
Com excepção da série “Donjon”, escrita a meias entre Sfar e Trondheim, e dos álbuns “O Principezinho” e “A Filha do Professor”, não há muita coisa de Sfar editada em Portugal, o que dá uma importância ainda maior a esta edição, que recolhe os 3 primeiros álbuns de uma das séries mais emblemáticas de Joann Sfar, que se devia chamar, não o gato do rabino, mas “o Gato da Filha do Rabino”, pois a dona do gato é a bela Zlabya, filha do Rabino.
Ambientada na comunidade judia sefardita da Argélia dos inícios do século XX e protagonizada por um gato que ganha o dom da palavra depois de comer um papagaio, a série é uma divertida e sensível análise às questões da religião, servida por diálogos deliciosos (veja-se a conversa entre o gato, que quer fazer o “Bar-Mitzvá”, e o rabino do rabino). Sfar desenha tão depressa como escreve, mas o seu traço, mais caligráfico do que ilustrativo, é de uma eficácia surpreendente, sendo excelente em termos de criação de ambientes e na forma como retrata as poses do gato (o que nem deve ter sido difícil, pois foi um dos gatos de Sfar que serviu de modelo para o gato do Rabino).
O único problema desta edição, é que deixa de fora, os 2 últimos álbuns da série: “Le Paradis Terrestre” e “Jerusalém d’Afrique”, em que, depois de uma viagem a Paris, que não entusiasmou o Rabino, a família regressa a África. O que, não havendo garantias de que a Asa prossiga a série, deixa os leitores que queiram saber o que acontece a seguir, condenados a recorrer às edições de língua francesa ou inglesa.
(“Os Incontornáveis de Banda Desenhada 2: O Gato do Rabino”, de Joann Sfar, Edições Asa/Público, 144 pags, 7,40 €)
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 12/03/2011

sexta-feira, 11 de março de 2011

Lovecraft na Banda Desenhada


Um dos mais importantes escritores de terror de língua inglesa, Howard Philips Lovecraft influenciou diversas gerações de criadores, desde escritores como Jorge Luís Borges, Stephen King, Clive Barker e Umberto Eco, a cineastas como John Carpenter, Stuart Gordon e Guillermo Del Toro. Mas é na Banda Desenhada que a sua influência se tem feito sentir de forma mais notória e, mais do que no cinema, que os terrores inomináveis, mais descritos do que sugeridos por Lovecraft nos seus textos, encontraram a correspondência visual adequada. O texto que se segue propõe-se traçar uma panorâmica, que está longe de ser exaustiva, da forma como os criadores de Banda Desenhada, tem traduzido, recriado e homenageado a obra do mestre do terror fantástico.


DA LITERATURA À BD

Desde os anos 50, com a adaptação pouco fiel de Cool Air, feita por Al Feldstein e Graham Ingels, para a revista VAULT OF HORROR, da Editora EC, que não faltam exemplos de adaptações, mais ou menos livres, de contos de Lovecraft à Banda Desenhada. Mas julgo que não haverá grandes dúvidas que o ponto mais alto da transposição da literatura fantástica de Lovecraft para a linguagem da BD, acontece com Los Mitos de Cthulhu, de Alberto Breccia. Partindo de uma adaptação, feita por Norberto Buscaglia, de vários contos de H.P. Lovecraft, Breccia vai conseguir algo que vários desenhadores, antes e depois dele (como o francês Druillet ou os americanos Berni Wrightson e Richard Corben, e mesmo o seu próprio filho, Enrique) tentaram sem grande sucesso, que é representar o irrepresentável e descrever o indescritível, conseguindo uma tradução visual criativa para os horrores que Lovecraft apenas insinua...
Claro que não estaremos perante uma banda desenhada perfeita, pois Buscaglia mostra demasiada reverência pelo texto de Lovecraft, mantendo-o quase na integra. No entanto, as ilustrações, em que Breccia utiliza todas as técnicas ao seu alcance, desde a colagem, aguada, guache, aparo e carvão, conseguem captar de forma soberba o espírito perturbador dos textos de Lovecraft, de tal forma que nem o excelente trabalho do seu filho, Enrique Breccia em Lovecraft, consegue ultrapassar o do pai, três décadas antes.
E a ligação entre Breccia e Lovecraft não se ficou por Los Mitos de Cthulhu, pois em 1981 o desenhador argentino volta a pegar na obra do escritor de Providence, desta vez a cores, com uma adaptação de The Terrible Old Man no álbum Pesadillas, que inclui também adaptações, ou “notas de leitura”, como Brecia lhes prefere chamar, de outros clássicos da literatura fantástica como O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de Stevenson.
Traduzindo a importância dos trabalhos de Alberto Breccia a partir de Lovecraft, o próprio “El Viejo” (tal como era tratado por muitos dos seus colegas desenhadores) surge como personagem em El Outro Necronomicon, uma série de António Segura e Brocal Remohi, em que Breccia narra aos dois autores, uma série de histórias que Lovecraft teria escrito, mas nunca teve coragem de publicar. A sombra tutelar de Breccia também está presente na adaptação de The Call of Cthulhu, feita por Horacio Lalia, um desenhador argentino que serviu de modelo a Breccia para a personagem de Mort Cinder. Menos conseguido, é o trabalho de outro argentino, Hernán Rodríguez, que no livro Visiones, adapta um punhado de contos de H.P.L.
Bem mais interessante, é o trabalho do alemão Reinhard Kleist (mais conhecido pela sua biografia em BD do músico Johnny Cash) em Les Rats dans les Murs et autres Nouvelles, álbum que reúne quatro adaptações de outros tantos contos de Lovecraft. Mais livre, mas menos interessante, é a adaptação do poema Nyarlathotep, feita por Julien Noirel, num álbum editado em França em 2007.
O italiano Dino Battaglia, falecido em 1983, foi outro fantástico desenhador que ilustrou vários contos de Lovecraft para a revista LINUS, tal como tinha feito com outros escritores como Poe, Melville, Stevenson, ou Maupassant. Tal como Battaglia, outro autor que tem trabalhado bastante a partir da obra de Lovecraft, é Richard Corben que, depois de ter adaptado The Rats in the Wall para a revista CREEPY, em 1972, voltou a pegar na obra do escritor de Providence, adaptando um punhado de contos na mini-série Haunt of Horror, publicada em 2008 pela Marvel.
Além disso, a influência de Lovecraft é bem evidente em outros trabalhos de Corben, como a série Den, em que um feiticeiro invoca uma criatura tentacular, chamada… Uluhtc. Colega e amigo de Corben, Bernie Wrightson também adaptou o trabalho de Lovecraft nas páginas da revista CREEPY, com a história Cool Air, bem reveladora do seu grande talento de desenhador, que levou a que Stuart Gordon o convidasse mais tarde para director artístico de umas adaptação cinematográfica de The Shadow over Innsmouth, que nunca chegou a ser filmada.


EXPLORANDO O UNIVERSO LOVECRAFTIANO

Mesmo que nunca tenham adaptado directamente nenhum texto de Lovecraft, há um sem números de criadores cujo trabalho revela claramente a influência da obra de H. P.L. Mike Mignola é talvez o caso mais óbvio, sendo a influência de Lovecraft facilmente perceptível, e perfeitamente assumida, na série Hellboy. Basta ver "Semente de Destruição, a primeira mini-série de Hellboy, em que há uma expedição ao ártico, claramente inspirada na expedição descrita por Lovecraft em At the Mountains of Madness. E Mignola é também autor de um excelente retrato do escritor, feito para a capa da revista DARK HORSE PRESENTS, provavelmente inspirado por uma ilustração anterior de Moebius, feita para um número espacial da revista METAL HURLANT, dedicado a Lovecraft.
Moebius, que aproveita o facto “da mitologia lovecraftiana ser suficientemente conhecida para ser usada como referência”, para construir uma história de crítica social, em que o Presidente francês faz um acordo com Lovecraft para se poder dedicar à caça de Cthulhus. Uma história que, como o autor refere numa entrevista, foi inspirada numa notícia que leu sobre o Presidente Giscard D’Estaing que utilizou os privilégios do seu cargo para ir caçar animais selvagens em África. Outro destaque deste número da Metal Hurlant, em que todos os desenhadores prestaram a sua homenagem ao escritor é o trabalho de Druillet, grande fã de Lovecraft, que aqui cria a sua própria versão do Necronomicon.
Necronomicon, o livro maldito que está no centro de uma aventura de Martin Mystére, outro célebre herói da editora Bonelli, criado por Alfredo Castelli, em que o detective do impossível evoca o trágico destino de Abdul Alhazred, o árabe louco que compilou o Necronomicon.
Mais inesperado e ainda menos conhecido, é Mar de Tenieblas, o primeiro trabalho profissional de Miguelanxo Prado, publicado em 1981 na edição espanhola da revista CREEPY, em que o criador de Traço de Giz, na sua única incursão pelo terror, transporta o ambiente de contos como Dagon e The Shadow over Innsmouth para a costa da Galiza, banhada pelo Atlântico, o mar das trevas.
Deste lado da fronteira, uma série de jovens desenhadores portugueses, actualmente reunidos na Associação Tentáculo, prestou a sua homenagem a Lovecraft, em Murmúrios das Profundezas, uma colectânea que recolhe uma série de histórias curtas de inspiração lovecraftiana.
Dois dos maiores argumentistas de BD de língua inglesa, Neil Gaiman e Alan Moore, têm prestado várias homenagens à obra de Lovecraft. E se os trabalhos lovecraftianos de Gaiman, são todos no campo da literatura, em contos como os premiados A Study in Emerald e I Cthulhu, ou o divertido Shoggoth’s Old Peculiar, que podemos aqui ouvir, lido pelo próprio Gaiman, já Alan tem textos seus de inspiração lovecraftiana adaptados à BD, como é o caso de The Courtyard, um conto escrito em 1994 para a colectânea The Starry Wisdom: A Tribute to H. P. Lovecraft e adaptado à BD em 2003, por Antony Johnston, com desenhos de Jacen Burrows. O mesmo Jacen Burrows que está a ilustrar Neonomicon, uma sequela escrita por Moore, que é o seu mais recente trabalho em BD e, a acreditar nas entrevistas recentes do escritor de Northampton, poderá muito bem ser o último...
Se Neonomicon for mesmo o último argumento de BD escrito por Moore, vai ser uma despedida memorável para os fãs de Lovecraft, a avaliar pelas palavras do escritor, que diz: “Eu queria escrever uma história que modernizasse Lovecraft – que não se apoiasse na atmosfera dos anos 30 – e que o fizesse de uma forma bem sucedida. Suponho que também pensei que seria interessante se pudesse trazer alguns do naturalismo que encontramos em séries de televisão como “The Wire” para uma intriga naturalmente fantástica. Porque aquela série era tão realista e tão credível, que me pareceu que seria uma excelente maneira de abordar algo tão intrinsecamente fantástico e inacreditável como o universo de Lovecraft.
Esse foi um dos pontos de partida. Outro foi colocar na história alguns dos elementos mais questionáveis que o próprio Lovecraft censurou, e que as pessoas que têm escrito pastiches de Lovecraft também optaram por deixar de fora. Elementos como o racismo, o anti-semitismo, o sexismo, as fobias sexuais que eram mais ou menos aparentes em todos os viscosos monstros lovecraftianos, de formas fálicas e vaginais. Há uma ausência da parte física em Lovecraft, um horror ao físico, que eu quis corrigir.”
Com a mini-série a começar a sair agora nos EUA, ainda é cedo para avaliar se Alan Moore consegue ou não concretizar de forma eficaz tão arriscada mistura, mas pelo que pude ler até agora, a coisa promete…


LOVECRAFT, HERÓI DE BANDA DESENHADA

Quase tão numerosas como as adaptações à BD de histórias de H. P. L., são as histórias em que o próprio Lovecraft é protagonista, transformando o próprio escritor em personagem de Banda Desenhada. O melhor exemplo desta terceira tendência, é Lovecraft, editado em Portugal pela Vitamina BD, com tradução de Fernando Ribeiro, vocalista dos Moonspell e fã assumido de Lovecraft. Escrito originalmente como um guião para cinema por Hans Rodionoff, adaptado à BD pelo veterano Keith Giffen e desenhado por Enrique Breccia, Lovecraft parte de uma premissa tão simples como genial: e se o escritornão tivesse inventado os indescritíveis horrores que enchem as páginas dos seus livros, mas os tivesse vivido? Assim, a vida e a obra de Lovecraft fundem-se nesta história, que concilia os dados históricos da biografia com as personagens saídas dos seus livros, como o terrível Cthulhu, cuja presença pode ser invocada pela leitura do Necronomicon, o livro maldito escrito pelo Sheik Abdul Alharazed que, segundo este relato, não foi inventado por Lovecraft, mas já existia na biblioteca do seu pai.
Mas, para além da forma hábil como combina os dados históricos com a ficção lovecraftiana, este livro tem o seu maior trunfo no desenho de Enrique Breccia. Filho de Alberto Breccia, Enrique não vai tão longe como o pai, mesmo que a forma como o seu estilo se altera para marcar a distinção entre o que é real e o que Lovecraft imagina, seja notável. Vejam-se as cenas oníricas, em que Enrique se revela um pintor extremamente inspirado e de paleta vibrante.
Também Andréas e Riviere fazem de Lovecraft um dos personagens de Revelations Posthumes, livro que recolhe uma série de histórias curtas, protagonizadas por escritores. E o mesmo Lovecraft é também protagonista de The Strange Adventures of H. P. Lovecraft, de Mac Carter e Tony Salmons, uma abordagem bastante livre da vida do escritor de Providence, aqui quase transformado num herói de acção. Igualmente livre, mas mais divertida é a abordagem de José Oliver e Bartolo Torres em El joven Lovecraft, uma série de tiras nascidas na internet em que o universo de Lovecraft se encontra com o de Tim Burton e Roman Dirge.
O próprio Lovecraft empresta também as feições a uma personagem de um episódio de Dylan Dog, a série de culto da editora Bonelli, em que Tiziano Sclavi homenageia o mestre da literatura fantástica, cuja influência é bem perceptível nas aventuras do detective do oculto. Neste campo, uma das mais inesperadas homenagens a H. P.L., é feita pelo espanhol Max, numa história em que Walt Disney encontra Lovecraft, um encontro tão inesperado como o promovido pelo ilustrador inglês Murray Groat, que escolhi para terminar este texto, numa série de ilustrações que simulam capas de álbuns da série Tintin, aventuras apócrifas em que o repórter da poupa loura mergulha no universo lovecraftiano, como aconteceria se Lovecraft fosse o argumentista das histórias que Hergé desenhou.
Texto originalmente publicado no nº 9 da revista Bang!, em Fevereiro de 2011




segunda-feira, 7 de março de 2011

Asa e Público lançam os Incontornáveis da BD

As edições Asa prosseguem a sua colaboração com o jornal Público, lançando uma nova colecção de Banda Desenhada, “Os Incontornáveis da BD”, cujo primeiro volume chegou às bancas, esta quarta-feira, dia 2 de Maio. Depois de uma última colecção centrada numa única série, de um só autor - o genial “Gaston Lagaffe”, de Franquin – voltamos às antologias colectivas, na linha de edições como “Grandes Autores de BD”, ou Clássicos da revista Tintin”.
No caso desta nova colecção, composta por 12 álbuns duplos, nem todos os títulos escolhidos merecerão o epíteto de “incontornáveis”, mas há vários volumes a não perder, começando já na próxima semana, com “O Gato do Rabino”, de Sfar.
“Gato do Rabino” que, com “IRS”, de Desberg e Vrancken, “O Buda Azul”, de Cosey e, parcialmente, “Max Fridman” (o episódio publicado nesta colecção, embora inédito em álbum, já tinha saído no “Jornal da BD”), de Giardino e “XIII Mystery”, representam séries que se estreiam em Portugal nesta colecção, sendo a maioria dos títulos constituídos por episódios inéditos de séries de que já foram publicados em Portugal alguns volumes, seja pela Asa, seja pelas extintas Meribérica e Booktree.
Ou seja, sendo uma grande misturada - de géneros, de autores, de estilos - esta colecção tem ainda assim, o grande mérito de permitir aos leitores portugueses continuar algumas colecções de séries de interesse, que tinham ficado paradas, algumas há mais de 2 décadas, como é o caso de “O Vagabundo dos Limbos”, de Godard e Ribera. E aí, há coisas bastante recomendáveis, como “Murena”, de Dufaux e Delaby, “Em Busca do Pássaro do Tempo”, “O Assassino”, de Jacamon e Matz, “Largo Winch”, de Francq e Van Hamme (que já tinha sido publicada pela Bertrand e Gradiva, sem grande continuidade) e “Adèle Blanc-Sec”, de Tardi, cujo 3º álbum surge nesta colecção acompanhado por “O Demónio dos Gelos”, uma história solta de Tardi, com uma ligação bastante mais ténue com a série “Adéle Blanc-Sec” do que, por exemplo, “Adieu Brindavione”, esse sim, uma escolha bastante mais lógica, tanto mais que Brindavoine é personagem recorrente das aventuras de Adèle, a partir do 5º álbum da série.
O 1º álbum da colecção, dedicado à série “Valerian e Laureline”, também é paradigmático das peculiaridades da edição em Portugal, pois recolhe os volumes 19 e 21 da série, que assim fica completa em Portugal. Se há que louvar a Asa por corrigir um erro antigo, quando lançou 0 20º volume, “A Ordem das Pedras”, sem que o volume anterior tivesse sido alguma vez publicado em Portugal, a verdade é que, quem comprar este 1º álbum, terá que forçosamente comprar a “Ordem das Pedras”, de modo a perceber os capítulos finais da saga cósmica de Christin e Mèzieres…
Um pouco o que acontece com o volume dedicado á série “XIII Mystery”, que dá destaque a personagens secundários da série “XIII”, remetendo para álbuns da série principal, que nunca saíram em Portugal. Ou seja, apesar de uma selecção discutível (no geral como no particular), há que estar atento a esta nova colecção de Banda Desenhada que durante 12 semanas vai invadir as tabacarias e quiosques.
(“Os Incontornáveis de Banda Desenhada 1: Valerian e Laureline”, de Christin e Mézières Edições Asa/Público, 72 pags, 7,40 €. Todas as semanas em distribuição conjunta com o jornal "Público", entre 2 de Março e 18 de Maio de 2011)
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 5/03/2011