quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Poderosos Heróis Marvel 6 - Justiceiro: A Ressurreição de Ma Gnucci


Mais uma vez, o texto editorial que abre este volume, é da minha autoria. Razão porque o aqui publico, em vez do texto do Público, que pode facilmente ser lido, bastando carregar na respectiva imagem.


O FIM DA VIAGEM

O protagonista deste volume da colecção Poderosos Heróis Marvel dificilmente se encaixa no título desta colecção, pois Frank Castle, o Justiceiro não tem qualquer poder e está claramente naquela fronteira difusa que separa os heróis dos vilões. Mas, apenas com a sua vontade indómita, um treino militar apurado e um impressionante arsenal bélico, o Justiceiro tornou-se rapidamente num dos mais carismáticos personagens da Marvel.
A primeira aparição do Justiceiro, teve lugar em 1974, na revista do Homem-Aranha, numa história escrita por Gerry Conway e desenhada por Ross Andru, que se inspirou em Clint Eastwood para criar a imagem do vigilante. Uma referência visual lógica, pois o Justiceiro, enquanto caçador impiedoso de criminosos, deve muito ao Dirty Harry, de Clint Eastwood e ao executor interpretado por Charles Bronson nos filmes da série Death Wish, que passaram em Portugal como o Justiceiro Implacável.
Depois de diversas aparições em histórias do Homem-Aranha e do Demolidor (onde chegou a ser desenhado por Frank Miller, que lhe deu grande destaque) o arranque a solo do Justiceiro dá-se em 1986, numa mini-série escrita por Steven Grant e desenhada por Mike Zeck, cujo sucesso levou à criação de uma revista mensal. Personagem perfeitamente enquadrada no espírito belicista da época (estávamos em plena administração Reagan e o Rambo, interpretado por Silvester Stallone era um dos símbolos da América) o Justiceiro viu a sua presença desdobrar-se por uma série de novos títulos, como Punisher War Journal, escrito por Carl Potts e desenhado por um jovem Jim Lee, cujo primeiro arco de histórias pudemos acompanhar a primeira colecção que a Levoir e o Público dedicaram à Marvel, e Punisher War Zone (com desenhos de John Romita Jr.). Já para não falar de versões do Justiceiro como anjo, ou como criatura de Frankenstein, nem das inúmeras mini-séries em que o Justiceiro enfrenta os mais variados heróis, desde Batman, Wolverine e até ao adolescente Archie, na mais inesperada das cross-overs...
Logicamente, esta superexposição levou a que o público se desinteressasse da personagem, que efectuou uma travessia do deserto até ser ressuscitado por Garth Ennis na linha Marvel Knights, no ano 2000. Uma escolha que não foi inocente, pois Ennis tinha assinado em 1995 a mais estranha e uma das mais populares das aventuras do Justiceiro, Punisher Kills the Marvel Universe, uma história cujo título fala por si…
O regresso de Ennis às histórias do Justiceiro faz-se com Welcome Back, Frank, uma série de doze números, ilustrada por Steve Dillon, que a Devir publicou em Portugal em 2004, numa edição em dois volumes, com o título O Regresso do Justiceiro, aproveitando o impacto mediático do filme de Jonathan Einsleigh, com Thomas Jane no papel de Frank Castle (o Justiceiro), que chegou às salas de cinema nesse ano. A BD de Garth Ennis e Steve Dillon acabou por ser justamente uma das principais fontes de inspiração do filme da Marvel, mas neste caso, o filme não soube estar à altura da BD original, numa adaptação falhada que nem o esforço de Thomas Jane, nem John Travolta (deliciosamente cabotino no papel de mau da fita) conseguem salvar...
Entre outros méritos, O Regresso do Justiceiro permitiu voltar a juntar Garth Ennis e Steve Dillon, a dupla responsável pela série de culto Preacher, numa história que alia o humor politicamente incorrecto a que Ennis habituou os seus leitores em Preacher, na sua passagem na série Hellblazer, ou em obras como a Pro, a uma intriga repleta de acção, em que os mortos em combate se contam às centenas.
Um dos mais famosos argumentistas de origem britânica a trabalhar nos EUA, o irlandês Garth Ennis iniciou a sua carreira em Inglaterra na revista 2000 AD, mas seria na Vertigo que o mundo descobriria o seu talento narrativo, em séries como Hellblazer, Preacher, ou Hit Man. O Justiceiro foi o seu primeiro trabalho para a Marvel, editora para onde também escreveu duas séries protagonizada por Nick Fury, duas mini-séries do Motoqueiro Fantasma e uma mini-série do Poderoso Thor, ilustrada por Glen Fabry, o autor das ilustrações de capa de Preacher.
Nascido em Londres em 1962, Steve Dillon estreou-se nos comics americanos como ilustrador da série Hellblazer, escrita por Garth Ennis, com quem voltou a colaborar na série de culto Preacher. Conhecido sobretudo pela eficácia com que os rostos que desenha conseguem transmitir todo o tipo de emoções, Dillon revelou-se igualmente à vontade nas violentas cenas de acção que enchem as histórias do Justiceiro.
Depois desta primeira história, Garth Ennis continuou a escrever as aventuras do Justiceiro durante mais oito anos, mas desta vez sem Steve Dillon do seu lado, sendo especialmente memoráveis os 60 números da série Max que escreveu para desenhadores como Leandro Fernandez e Goran Parlov, entre outros.
A história que vão ler a seguir, significa o adeus definitivo de Garth Ennis ao Justiceiro, reunindo para o efeito toda a equipa de Preacher, incluindo o colorista Matt Hollingsworth. Lançada em 2008, como uma mini-série em 6 números com o título Punisher War Zone, que remete para o filme de Lexi Alexander com o mesmo nome, que nesse ano trouxe o Justiceiro de regresso ao grande ecrã, esta era uma história que já estava escrita há mais de 3 anos, mas a que o lançamento do filme deu o empurrão decisivo para sair da gaveta.
Como referiu o próprio Ennis na altura do lançamento: “Joe Quesada tinha-me pedido para escrever esta história há cerca de três anos e meio. Ele achava que as pessoas queriam ver a Ma Gnucci e todas aquelas coisas delirantes outra vez. Eu estava algo relutante e não me interessava muito voltar a pegar naquelas personagens, mas o meu cérebro tem o hábito de me servir histórias mesmo sem eu querer.” Outra das dificuldades de Ennis era como fazer regressar Ma Gnucci, a mafiosa protagonista de O Regresso do Justiceiro, de que esta história é uma continuação directa? Ma Gnucci tinha sido lançada para a jaula de um urso polar, perdeu os braços e as pernas e o seu corpo foi atirado para uma casa a arder, estando indiscutivelmente morta. Mas, como poderão ver nas páginas seguintes, Ennis arranjou uma maneira engenhosa de a fazer regressar, bem como à detective Molly Von Richtofen, da Polícia de Nova Iorque.
Este regresso de Ennis e Dillon às histórias do Justiceiro resulta num cocktail único e inebriante de humor negro e hiperviolência, onde o politicamente correcto não tem lugar e, tratando-se de Ennis, não faltam também as referências cinematográficas, seja a O Bom, o Mau e o Vilão, de Sergio Leone, seja ao Segredo de Brokeback Mountain de Ang Lee, cujos diálogos mais emblemáticos, um mafioso simpático, que tem uma relação muito especial com uma abóbora, cita com frequência.
Steve Dillon, que Garth Ennis considera como “simplesmente o melhor narrador a trabalhar no mundo dos comics”, voltaria a desenhar o Justiceiro anos mais tarde, desta vez ao lado do argumentista Jason Aaron. Mas para o escritor irlandês, a Ressureição de Ma Gnucci significou o canto do cisne de um percurso incontornável de oito anos, trilhado em conjunto por Garth Ennis e Frank Castle.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Poderosos Heróis Marvel 5 - Homem-Aranha: Tormento


HOMEM-ARANHA DE TODD MCFARLANE 
NA COLECÇÃO PODEROSOS HERÓIS MARVEL

Poderosos Heróis Marvel Vol. 5
Homem-Aranha: Tormento
Argumento E Desenhos – Todd Mcfarlane
Quinta, 20 de Agosto + 8,90 €

O quinto volume desta colecção, mais do que o regresso do Homem-Aranha, assinala a estreia nas colecções que o Público e a Levoir têm dedicado aos super-heróis americanos, de um dos maiores populares autores dos comics das últimas três décadas: Todd McFarlane.
Nascido em 1961 em Alberta, no Canadá, McFarlane começou a trabalhar profissionalmente em meados dos anos 80 para a DC Comics, em títulos como Infinity Inc. e Batman, onde substituiu Alan Davis e Paul Neary nos desenhos de Batman: Year Two, a continuação oficial, escrita por Mike W. Barr, do clássico Batman: Ano Um de Frank Miller e David Mazzucchelli. Da DC seguiu para a Marvel, onde assegurou a série Incredible Hulk, com argumentos de Peter David, entre 1987 e 1988. Foi o sucesso como ilustrador das aventuras do gigante verde que lhe garantiu o lugar de desenhador do Homem-Aranha a partir do número 298 de Amazing Spider-Man, de Março de 1988, ilustrando os argumentos de David Michelinie. O seu trabalho com o Homem-Aranha durante os dois anos seguintes, transformou-o, de jovem artista em ascensão, numa verdadeira superestrela dos comics.
Para essa rápida ascensão contribuiu, e muito, o seu inovador estilo gráfico. Um estilo barroco, marcado por uma planificação dinâmica e criativa, em explosão permanente de tensão e movimento, com uma quantidade cada vez maior de linhas cinéticas a acumularem-se em páginas de grande impacto visual. Também a forma de desenhar o Homem-Aranha era profundamente inovadora, com o herói a surgir em posições contorcidas e angulosas, com as teias figuradas com um pormenor e um detalhe inesperados, completamente diferentes do que até então se vira.
Depois de conseguir chamar a si a tarefa de passar a tinta os seus desenhos a lápis, assegurando assim a arte-final, o passo seguinte da afirmação de McFarlane como autor, foi conseguir assinar também o argumento das histórias que desenhava. Foi assim que, em Agosto de 1990 nasceu mais uma nova revista mensal do Homem-Aranha, intitulada apenas Spider-Man, cujos cinco primeiros números recolhem a história Tormento, que assinala a estreia de McFarlane como autor completo. Mas, conforme o próprio autor confessou numa entrevista, a sua estreia como argumentista deveu-se mais a uma vontade de controlar todas as etapas do processo criativo, do que a uma necessidade imperiosa de dar a conhecer as histórias que tinha para contar: “o desejo, o desejo criativo de escrever, nesta fase ainda não era tão forte, que me quisesse transformar um escritor. Então, apenas queria desenhar. Mas queria ter o máximo de controlo sobre aquilo que desenhava e a única maneira de conseguir esse controlo, era inventar as histórias que queria desenhar.”
E essa primeira história é uma narrativa mais próxima das histórias de terror do que das aventuras tradicionais do Homem-Aranha, em que o herói enfrenta o Lagarto, mas um Lagarto extraordinariamente violento e sanguinário, como os leitores nunca tinham visto. Em termos narrativos, McFarlane vai beber bastante ao trabalho de Frank Miller na série Demolidor, tanto em termos de divisão da página, marcada por estreitas vinhetas verticais, como de narração, com o recurso a pequenas caixas de texto, que dão um ritmo sincopado à narrativa, ajudando à criação do ambiente opressivo e de grande tensão.
Com mais de dois milhões e meio de cópias vendidas, só do primeiro número, Tormento marcou a carreira do seu autor e o mercado dos comics na década de 90. É esse livro histórico, que os leitores portugueses poderão ler no volume da colecção Poderosos Heróis Marvel que chega às bancas na próxima quinta-feira.
Publicado originalmente no jornal Público de 14/08/2015

sábado, 15 de agosto de 2015

Poderosos Heróis Marvel 4 - Viúva Negra: O Manto da Viúva


Como geralmente acontece quando o editorial do volume é da minha autoria, o que nesta colecção acontece com um terço dos quinze volumes, opto por publicar aqui o editorial, em vez do texto do Público que anuncia o volume. Quem o quiser ler, basta carregar na imagem já aqui em baixo, para o ampliar. Boas leituras!


A ESPIA QUE VEIO DO FRIO

Espia soviética, refugiada no Ocidente, assassina profissional, agente da S.H.I.E.L.D. e Vingadora, a Viúva Negra é tudo isso e muito mais, mas para quem a descobriu através dos filmes da Marvel, onde é encarnada pela actriz Scarlett Johansson, Natasha Romanoff é apenas uma agente da S.H.I.E.L.D. que, apesar da ausência de superpoderes, ganhou por direito próprio um lugar de destaque nos Vingadores, o grupo que reúne os mais poderosos heróis da Marvel.
Criada originalmente por Stan Lee, Don Rico e Don Heck em 1964, em plena Guerra Fria, nas páginas da revista Tales of Suspense #52, onde enfrenta o Homem de Ferro, a Viúva Negra é Natasha Romanova - ou Romanoff, a grafia do nome vai variando, sem deixar nunca de evocar um eventual parentesco com os Romanov, a família real russa, encabeçada pelo Czar Nicolau II, executada em 1918, na sequência da Revolução de Outubro, que levou os bolcheviques ao poder - uma espia soviética, que tinha a capacidade de sedução como arma principal para conseguir os seus objectivos. Objectivos que, neste caso, passavam por roubar os segredos industriais de Tony Stark.
Vestida “à civil”, com um vestido colante, saltos altos e uma estola de pele, Natasha (o apelido não é relevado nessa primeira história, em que é tratada apenas por Madame Natasha) está bem mais próxima de outras mulheres fatais da BD, como a Dragon Lady da série Terry e os Piratas, de Milton Caniff, ou a Sand Saref, do Spirit, de Will Eisner, do que dos vilões tradicionais da Marvel. Estes confiam mais no armamento sofisticado, ou em estranhos poderes, para conseguirem o seu objectivo, nas Natasha não precisa de nenhum outro poder, para além do seu poder de atracção, e é precisamente a sua capacidade de sedução que lhe permite, cinco números depois, recrutar temporariamente para a causa de Moscovo o Gavião Arqueiro, outra personagem que começou como um vilão para se tornar um herói.
Mas não seria preciso esperar mais de dois anos para que Natasha abandonasse os seus antigos patrões e pedisse asilo no Ocidente e se juntasse, tal como o entretanto regenerado Gavião Arqueiro, aos Vingadores, de que é um membro regular, tanto na BD como no cinema. E é precisamente a sua presença ao lado dos heróis, seja pela sua filiação nos Vingadores, seja pelas relações amorosas que estabelece com alguns heróis como o Gavião Arqueiro, o Demolidor, ou até mesmo Hércules, que faz com que o leitor se esqueça que a Viúva Negra é, antes de tudo, uma espia.
Como geralmente acontece no mundo da contra-espionagem, nada do que parece, é. Por isso, a origem da Viúva tem sido reescrita ao longo do tempo, para acentuar o peso da sua presença no universo Marvel. Assim, a versão inicial que mostrava a Viúva Negra como uma bailarina do Bolshoi, que decide trocar os palcos iluminados pelo mundo sombrio da espionagem depois da morte do marido, Alexei Shostakov, um piloto de testes, que era na realidade o herói soviético Guardião Vermelho, revela-se falsa, sendo o resultado de memórias implantadas pelos serviços secretos soviéticos.
A verdadeira origem da Viúva Negra só será contada anos mais tarde, na série Wolverine: Origins, onde o argumentista Daniel Way desenvolve o passado desconhecido do mais famoso mutante da Marvel. Aí, descobrimos que Natasha foi retirada ainda bebé de um edifício destruído de Estalinegrado, em 1928, por Ivan Petrovich, que a criou durante 10 anos, até ser obrigado pelo próprio Estaline a entregar a criança nas mãos de Taras Romanoff, um importante espião russo, que a criou como se fosse sua filha, dando-lhe o nome de Natalia (Natasha é um diminutivo de Natalia) Romanova, e a iniciou nas artes da espionagem. É nessa altura que ela conhece Wolverine, então a treinar na escola de espiões de Taras Romanoff, e que se vai ocupar de Natasha, ensinando-a a combater e a seguir pistas. Embora tenha criado uma boa relação com Wolverine, a quem tratava carinhosamente por “Tio Logan”, essa relação vai-se quebrar quando Logan é forçado a matar Taras Romanoff, o homem que Natasha considerava como o seu pai.
No entanto, Natasha e Wolverine vão lutar juntos ao lado do Capitão América, na ilha de Madripoor, em 1941, para eliminar Jonin, o líder do clã ninja do Tentáculo. Um acontecimento relatado inicialmente em 1990, na revista X-Men, por Chris Claremont e Jim Lee, e que Daniel Way e Steve Dillon mostram noutra perspectiva.
Terminada a Segunda Guerra Mundial, Natasha vai ser integrada na Sala Vermelha, um programa secreto do KGB que pretendia transformar jovens órfãs em agentes de elite, as Viúvas Negras. A grande longevidade de Natasha é explicada pelo uso de um equivalente russo da fórmula do super-soldado, a fórmula que esteve na origem da transformação de Steve Rogers no Capitão América e que lhe teria sido injectada durante a sua passagem pela Sala Vermelha.
É precisamente a Sala Vermelha e o Programa Viúva Negra, que se mantém activos, apesar da queda do Império soviético e o fim da Cortina de Ferro, que estão em destaque nas duas histórias que compõem este volume, em que Natasha Romanoff cede o protagonismo à jovem Yelena Belova, a sua sucessora no programa Viúva Negra.
A primeira dessas histórias é uma mini-série publicada originalmente em 2002, centrada no passado de Yelena Belova, e que mostra a forma como ela foi manipulada pelos serviços secretos russos ao longo do seu treino na Sala Vermelha. A escrever esta história está Greg Rucka, argumentista e escritor americano, cuja capacidade de escrever personagens femininas fortes já é bem conhecida dos leitores, graças à sua colaboração com J. H. Williams III no volume dedicado à Batwoman numa anterior colecção, e que aqui conta com a arte do ilustrador croata Igor Kordey, cujo estilo sombrio se revela perfeito para uma história passada no submundo de Moscovo, com uma carga erótica pouco habitual no Universo Marvel.
A completar este volume, outra mini-série, publicada originalmente em 1999, assinada por Devin Grayson, uma escritora americana conhecida pelo seu trabalho para a DC, nas revistas do Batman, que se estreou na Marvel precisamente com esta aventura da Viúva Negra. Nesta movimentada história de espionagem, cuja acção decorre entre Moscovo, Nova Iorque e um país fictício do Médio Oriente, a presença do Universo Marvel está limitada a uma breve participação de Matt Murdock, que apenas surge como Demolidor numa página ou duas, não tendo qualquer interferência na acção, e a uma ainda mais breve presença da S.H.I.E.L.D. que, essa sim, se revela decisiva para o desenrolar da história que se centra no confronto entre as duas Viúvas.
A dar vida ao texto de Grayson está o traço elegante, rigoroso e sensual de J. G. Jones. Também para o desenhador americano, conhecido sobretudo pelo seu trabalho como ilustrador de capas e desenhador da mini-série Wanted, de Mark Millar, que deu origem ao filme do mesmo nome com Angelina Jolie, este foi o primeiro trabalho para a Marvel, pois antes disso tinha apenas colaborado na série Shi, de Bill Tucci, sendo provável que a forma simultaneamente realista e espectacular como Jones desenhou a sensual protagonista tenha levado Joe Quesada e Jimmy Palmiotti, os editores da linha Marvel Knights, a verem nele o desenhador ideal para este confronto de Viúvas.
Natasha Romanova e Yelena Belova, a nova e velha Viúva Negra, voltariam a defrontar-se noutra mini-série, escrita a meias por Grayson e Rucka, em que a forma como as duas Viúvas funcionam como reflexos distorcidos uma da outra é desenvolvida. Mas, como se costuma dizer, isso já é outra história.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Oesterheld e o fantástico


OESTERHELD E O FANTÁSTICO

Este post é dedicado à memória de Elsa Sanchez Oesterheld, que no dia 22 de Junho de 2015 se juntou ao marido e às filhas, encontrando finalmente a paz.

A recente publicação em Portugal, integrada na colecção Novela Gráfica, de Mort Cinder, obra maior de Alberto Breccia e Hector Oesterheld, surge como o pretexto ideal para dar a conhecer aos leitores da revista BANG! um pouco mais sobre a vida e obra do maior argumentista de língua espanhola e sobre a forma como o fantástico, seja através do terror ou da ficção científica, está bem presente nessa obra.
Nascido em Buenos aires em 1919, de uma família onde se cruzavam as ascendências basca e alemã, Hector German Oesterheld (HGO) formou-se em geologia, mas isso não diminuiu o seu interesse pela leitura e pela escrita. Aos 23 anos, quando já estava a trabalhar numa empresa de exploração petrolífera, publica o seu primeiro conto no suplemento literário dominical do jornal LA PRENSA, jornal em que começou a trabalhar como revisor, até ir trabalhar no laboratório de mineração do Banco de Crédito Industrial. Nos anos seguintes, vai tentando conciliar a escrita com a actividade de geólogo, até acabar por se dedicar inteiramente à escrita, em meados da década de 40, escrevendo sobretudo livros de divulgação e contos infantis.
Em 1951, o dono da Editora Abril propôs-lhe escrever para Banda Desenhada, género que Oesterheld não lia nem apreciava especialmente, mas onde tentou fazer “o melhor que sabia”, com os resultados que conhecemos… O primeiro argumento que escreveu foi para Ray Kitt, uma série policial ilustrada por Hugo Pratt, o criador de Corto Maltese, então radicado na Argentina. Embora as colaborações com Pratt, que disse “aprendi muito com Oesterheld. Do ponto de vista da técnica narrativa, aprendi mais do que com qualquer outro” sejam em histórias realistas, como Sgt Kirk, um western, ou Ernie Pike, uma história de guerra, rapidamente o seu nome aparece associado à ficção científica, estando ligado, como editor, tradutor e autor, à revista MAS ALLÁ, publicação pioneira da FC na Argentina, que deu a descobrir naquele país autores como Ray Bradbury, ou Isac Asimov, em traduções de Oesterheld.
Para a revista DRAGON BLANCO, lançada em 1955, HGO escreve cinco séries, duas quais, Chas Erikson e Lobo Nuncan, são de FC, tal como acontece com Uma Uma, história ilustrada por Solano Lopez, que escreve para a revista RAYO ROJO, sobre uma ilha do Pacífico invadida por extraterrestres. O tema desta sua primeira colaboração com Solano López é desenvolvido em outros trabalhos que farão juntos dois anos depois, a série Rolo, el Marciano Adoptivo e, sobretudo, El Eternauta, considerada como a mais importante BD argentina de todos os tempos, de tal maneira que o dia 4 de Setembro, em que chegou às bancas a revista HORA CERO com o primeiro capítulo de El Eternauta, é considerado oficialmente desde 2005 como o Dia Nacional da BD (Historieta) na Argentina.
Publicada ao longo de dois anos na revista HORA CERO SEMANAL entre 1957 e 1959, El Eternauta é o relato da invasão da cidade de Buenos Aires por forças extraterrestres, relato que é feito por um dos sobreviventes, Juan Salvo, a um escritor de BD que, embora nunca seja nomeado, tudo indica que seja o próprio autor, pois é a casa onde vivia o escritor que Solano López desenha aparecendo assim Oesterheld como personagem da sua própria história, num exercício de meta-ficção.
Tudo começa com a queda de uma estranha neve fluorescente que mata ao contacto com a pele, neve essa que abre o caminho para uma invasão extraterrestre comandada pelos Ellos, seres que nunca veremos, e executada por tropas de assalto compostas por seres de outros planetas, como os Cascarudos, animais de grande porte parecidos com escaravelhos gigantes, e os Manos, semelhantes aos humanos, com a excepção das mãos com imensos dedos, povos conquistados pelos Ellos e usados como carne para canhão na invasão ao planeta Terra.
Depois de uma série de peripécias, em torno do combate desigual dos sobreviventes contra os invasores, Juan Salvo entra acidentalmente numa máquina dos invasores que o transporta para outras dimensões, para longe da sua família, transformando-o “num peregrino através dos séculos, um viajante na eternidade, um ETERNAUTA”.
Uma dessas muitas viagens pelo espaço e pelo tempo trá-lo finalmente de volta a Buenos Aires, em 1959, onde encontra um escritor a quem conta o que se irá passar anos depois (a acção da história decorre em 1963) para que este, através da Banda Desenhada, avise os leitores para o que está para acontecer.
Se as histórias de invasões extraterrestres não eram propriamente novidade, muito menos na obra de HGO, o que já era novidade, era uma invasão que tivesse como cenário a cidade de Buenos Aires, onde viviam a maioria dos leitores de HORA CERO, que reconheciam com facilidade os cenários desenhados com rigor fotográfico por Solano Lopez e se identificavam com Juan Salvo e os seus amigos, grupo heterogéneo na sua composição social que representava os vários extractos da sociedade argentina e que é o verdadeiro herói da história, como salienta Oesterheld: “O verdadeiro herói de El Eternauta é um herói colectivo, um grupo de homens. Isso reflecte, embora sem intenção prévia, as minhas convicções: o único herói válido é o herói “em grupo”, nunca o herói individual, o herói solitário”.
Para além da dimensão espectacular da aventura, e de algumas cenas fortíssimas, como a sequência inicial com a neve mortal, ou a forma como é gerida a entrada em cena dos Gurbos, de quem vemos primeiro as pegadas e depois o rasto de destruição que causam, antes de os vermos finalmente, esta história de um grupo de indivíduos normais colocados numa situação excepcional, tem momentos de pura poesia, como é o caso da magnífica cena em que um dos Manos (seres pacíficos, obrigados a combater pelos Ellos, que lhes infiltraram uma “glândula de terror”, que liberta uma substância que os mata caso sintam medo) se despede da vida cantando uma estranha canção.
Ainda El Eternauta estava em publicação quando o escritor cria para a revista EL TONY, da editorial Columba, a série Star Kenton, uma saga espacial, ilustrada por Walter Casadei e protagonizada por um cientista e piloto que, depois de salvar a terra de uma invasão extraterrestre, se assume como um vigilante espacial
Em 1959, ao mesmo tempo que continua a desenvolver outras séries, de diversos géneros, com diferentes desenhadores, HGO inicia a sua colaboração com Alberto Breccia em Sherlock Time, uma história policial com toques de ficção científica e de fantástico, protagonizado por um detective que podia viajar no tempo, história que serviu ponto de partida para Mort Cinder, série igualmente protagonizada por um personagem com capacidade de viajar no tempo, mas neste caso, através das memórias que a descoberta de um objecto lhe trazem de vidas passadas.
Série em que o fantástico e o terror convivem com uma visão profundamente humana da história, Mort Cinder é um marco na história da BD mundial, muito por força do extraordinário trabalho gráfico de Breccia, cuja importância Oesterheld reconhece ao referir: “Há sofrimento, tormento em Mort Cinder. Isso reflecte talvez o meu estado de alma particular, mas o essencial dessa atmosfera vem de Breccia. Há uma quarta dimensão no seu desenho, uma capacidade de sugestão que o distingue da maioria dos desenhadores que conheço. É essa força constantemente aplicada, que dá ao seu desenho todo o seu valor e inflama a imaginação dos argumentistas.”
Entre as dezenas de séries que o escritor cria nos anos seguintes, ressaltam dois super-heróis, Bird Man e Future Man. Um advogado americano que decide combater o crime depois de encontrar um punhal que lhe dá superpoderes e um cientista e explorador nascido no século XXV que consegue viajar no tempo, que vão ter direito cada um à sua própria revista.
Em 1969, HGO vai recuperar, agora com arte de Alberto Breccia, El Eternauta. Publicada agora na GENTE, uma revista semanal de informação, esta ficção apocalíptica protagonizada por um indivíduo que, tal como Sherlock Time e Mort Cinder, não está sujeito às leis do tempo, podendo, ao atravessar um portal dimensional, aparecer num outro local ou época, não teve a aceitação que merecia e os autores esperavam.
Talvez devido às mudanças na própria história (nesta nova versão, em vez de uma invasão global, as grandes potências fazem um acordo com os invasores extraterrestres, entregando-lhes a América do Sul) algo perturbador para as consciências ociosas dos leitores da revista GENTE, ou ao grafismo de Breccia, a milhas do estilo mais convencional de Solano López e demasiado abstracto para o gosto do público, que tem dificuldade em reconhecer a cidade de Buenos Aires nas colagens de Breccia, choveram as cartas de protesto e o editor decidiu acabar com a série, pedindo desculpas aos leitores. Isto permite perceber o final circular da história (a melhor maneira que Oesterheld encontrou de concluir rapidamente a narrativa) e o desequilíbrio dos capítulos finais, em que o escritor condensou em quatro ou cinco páginas, repletas de texto, uma acção inicialmente prevista para ocupar quinze ou vinte páginas.
De qualquer modo, e apesar deste final inglório, estamos perante um trabalho graficamente inovador, em que Breccia, aqui claramente seduzido pela arte contemporânea, visível nas inúmeras referências à "Op Art" e à "Pop Art", começava a utilizar a técnica da colagem, abrindo caminho para o que iria ser uma característica marcante da sua produção na década seguinte.
Conforme refere HGO: “A versão de El Eternauta publicada na GENTE foi um fracasso. E fracassou porque não era para essa revista. Eu era outro, não podia escrever o mesmo. E Breccia, por seu lado, também era outro. Este Eternauta tinha as suas virtudes e também os seus defeitos. Por um lado, a mensagem literária, por outro, a mensagem gráfica. Quanto à mensagem literária, apercebi-me, muito mais tarde, que me tinham suprimido parágrafos inteiros. (…) Em relação à parte gráfica, o verdadeiro final foi quando chamaram o Breccia e lhe explicaram que havia um desfasamento com o que o público queria e lhe pediram que suavizasse a coisa. Avisaram-no mais duas ou três vezes, mas ele nunca fez caso. Não aceitou fazer modificações e então decidiram acabar com El Eternauta”.
Se o escritor iria voltar ao tema da invasão extraterrestre logo no ano seguinte com La Guerra de los Antartes, uma história publicada inicialmente em 1970 na revista 2001, com desenhos de Léon Napoo, que teve direito a uma nova versão em 1974, com desenhos de Gustavo Trigo, no jornal NOTICIAS, El Eternauta regressaria numa segunda aventura desenhada por Solano López, cuja publicação se iniciou em 1976, na revista SKORPIO. Escrita por HGO então já na clandestinidade, devido à sua ligação activa ao movimento Montonero, a história terminou a sua publicação numa altura em que Oesterheld já tinha “desaparecido” às mãos da ditadura militar argentina e provavelmente já nem estaria vivo, tal como as suas quatro filhas, que também eram militantes activas da guerrilha montonera.
Nesta história, passada num futuro próximo, em que a invasão extraterrestre tinha sido bem-sucedida, Oesterheld não se limita a escutar as aventuras de Juan Salvo, o Eternauta, mas participa activamente nelas como membro da resistência, pois o escritor que nos episódios anteriores não tinha nome, surge agora identificado como German, o nome do meio de HGO e também o nome que ele usava enquanto militante montonero na clandestinidade. Ou seja, o personagem, tal como o seu criador, abandona uma postura passiva e assume uma opção clara pela acção directa.
Apesar do traço de Solano López mostrar uma grande evolução, o carácter marcadamente panfletário da história, faz com que esta continuação seja bastante menos interessante. Juan Salvo, em vez de um homem normal, preocupado em recuperar a sua família, surge aqui como um líder revolucionário implacável, disposto a tudo sacrificar à sua causa.
Uma mudança radical no comportamento do herói que Solano López não aceitou bem, pondo mesmo em causa que tivesse sido o próprio Oesterheld a escrever toda a história, sugerindo que o escritor poderá ter utilizado a história para passar mensagens cifradas à guerrilha montonera, no meio dos diálogos da história. De qualquer modo, o caracter panfletário desta continuação, é coerente com a forma como a obra de HGO reflecte as suas opções políticas e ideológicas. Conforme refere Carlos Trillo: “não é preciso ser um grande caçador de metáforas para associar os Ellos com os militares que tomaram o poder”. Impressão que o facto das três versões já referidas do Eternauta terem sido publicadas na sequência de golpes de estado militares, só vem reforçar.
Juan Salvo, o Eternauta, viveria ainda outras aventuras pelas mãos de Solano López. Já a memória de Oesterheld, tal como Juan Salvo, viaja para a eternidade através de obras como Mort Cinder ou El Eternauta. 
Publicado originalmente no nº 18 da revista BANG!, de Junho de 2015

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Recordando Barefoot Gen, nos 70 anos de Hiroshima


O facto de hoje se cumprirem 70 anos sobre o bombardeamento americano a Hiroshima, onde pela primeira vez foi utilizada um bomba atómica, com os efeitos que se conhecem, pareceu-me o pretexto ideal para recuperar neste espaço um texto que escrevi em 1997 para o fanzine Nemo, publicação superiormente dirigida por Manuel Caldas, onde me estreei a escrever sobre BD em 1993, já lá vão mais de 20 anos! Esse texto é sobre Barefoot Gen, um manga autobiográfico de Keiji Nakasawa, um sobrevivente de Hiroshima, que passou as suas memórias para o papel. Deixo-vos com esse texto.

DESCALÇO EM HIROSHIMA

Um dos muitos méritos de Maus de Art Spiegelman, é o de demonstrar a capacidade da BD para transmitir com eficácia todo o horror e o absurdo de situações limite da história da humanidade, como foi o caso do Holocausto. Mas, antes de Maus, já uma BD japonesa (cuja influência no seu trabalho, o próprio Art Spiegelman reconhece de forma implícita) tinha revelado essa mesma capacidade de descrever o indescritível e representar o irrepresentável, ao captar de forma notável o drama das vítimas do bombardeamento nuclear que arrasou Hiroshima. Barefoot Gen (Hadashi no Gen no original) de Keiji Nakazawa é essa obra pioneira.
Publicado entre 1972 e 1973 nas páginas da revista SHUKAN SHONEN JAMPU, a mais popular revista semanal japonesa, com uma tiragem superior a dois milhões de exemplares, Barefoot Gen foi o primeiro manga a chegar ao Ocidente, graças ao esforço de um grupo de jovens de Tóquio, que incluía vários não japoneses, entre os quais o americano Fredrik Schodt (um dos maiores especialistas mundiais em BD japonesa), que considerou a mensagem da obra de Nakazawa demasiado importante para que o Ocidente a pudesse continuar a desconhecer. Nascia assim em 1976 o Project Gen, organização não lucrativa e constituída exclusivamente por voluntários, que procedeu à tradução da série, conseguindo a sua edição integral em quatro volumes nos EUA e em Inglaterra, para além da tradução do primeiro volume em francês, alemão, esperanto, norueguês e sueco. Distribuído essencialmente no circuito de livrarias, Barefoot Gen acabou por passar praticamente despercebido à maioria dos leitores de comics, que só descobririam os manga anos mais tarde, graças à publicação em meados de 80, pela First Comics, de Lone Wolf and Cub (Kozure Okami no original), de Kojima e Koike, uma das séries favoritas de Frank Miller, que assegurou as capas e a introdução dos doze primeiros números.
É caso para se dizer que esses leitores menos atentos não sabem o que perderam, pois se, conforme referiu Domingos Isabelinho, alma é "o lugar de reencontro com o vivido, as cicatrizes deixadas em nós pela realidade", não há dúvida que Barefoot Gen "tem alma até Almeida".
A série é baseada na experiência pessoal de Keiji Nakazawa e a maioria das personagens e situações são reais ou inspiradas em experiências presenciadas ou mesmo vividas pelo autor. Tal como Gen, o protagonista da sua história, Nakazawa tinha sete anos quando rebentou a bomba atómica sobre Hiroshima, tendo apenas sobrevivido graças a um muro de cimento que o protegeu da explosão. Também ele perdeu o pai e dois irmãos no inferno nuclear e viu morrer a irmã de quatro meses, nascida logo após o bombardeamento, devido a má nutrição. Tendo conseguido sobreviver ao inferno que o rodeava, a sua principal preocupação, como o próprio refere, foi tentar esquecer os horrores da bomba atómica:
"Quando me tornei autor de manga, a última coisa que queria fazer era escrever sobre os horrores da bomba A. Odiava a simples menção da palavra. Acreditando que a BD deve ser divertida e fazer as pessoas felizes, dediquei a minha carreira a desenhar histórias de ficção científica e de baseball.
Mas, em Outubro de 1966 — vinte e um anos após a bomba —, a minha mãe morreu. Sofrendo de uma série de maleitas, a sua vida após a bomba tinha sido cheia de sofrimento. Quando o seu corpo foi cremado, descobri algo que me fez tremer de raiva: nada restou dos seus ossos! Normalmente os ossos resistem à cremação, mas a radioactividade do césio comeu os ossos da minha mãe, reduzindo-os a cinza. A bomba A roubou-me tudo, incluindo os preciosos ossos da minha mãe. A raiva fervia dentro de mim, e pela primeira vez confrontei a Bomba. Senti então a necessidade de escrever sobre a tragédia que nos atingiu a todos. Senti como se a minha mãe me dissesse para revelar ao mundo toda a verdade sobre a bomba que destruiu Hiroshima".
Convém esclarecer os leitores menos familiarizados com a cultura oriental, que o culto dos antepassados e dos seus restos mortais é um costume profundamente enraizado na tradição religiosa japonesa, sendo natural a existência nas casas de família de pequenos altares familiares onde se veneram os restos dos entes queridos, o que explica o choque e a revolta de Nakazawa, privado de qualquer vestígio da sua mãe. Por isso, Barefoot Gen, para além de um poderoso grito contra o esquecimento, é também um doloroso exercício catártico, única forma encontrada pelo autor para exorcizar o fantasma da sua família, cuja memória ao ser evocada nas páginas de Barefoot Gen encontrou finalmente a paz.
Ainda antes de Barefoot Gen, Nakazawa começa em 1968 a abordar o trágico acontecimento que marcou toda a sua vida, primeiro com duas histórias de estilo didáctico e meramente informativo, Kuroi Amé ni Utareté (Sob a Chuva Negra) e Aru Hi Totsuzen (Subitamente um Dia) e em seguida com Ore Wa Mita (Eu vi!), relato autobiográfico que em apenas quarenta e seis páginas condensa os acontecimentos mais tarde desenvolvidos nas nove centenas de páginas de Barefoot Gen.
Para desempenhar o papel de seu alter-ego na que seria a sua obra definitiva sobre os horrores de Hiroshima, Nakazawa escolheu o jovem Gen Nakaoka, cujo nome em japonês significa "raiz", ou "fonte". Nome com uma elevada carga simbólica, como o próprio autor explica: "Dei o nome de Gen ao meu personagem na esperança de que ele se torne uma raiz ou fonte de força para uma nova geração da humanidade — aquela que pisa descalça o martirizado solo de Hiroshima, sentindo a terra debaixo dos pés, com força para dizer não às armas nucleares... Eu próprio gostaria de viver com a força de Gen — é esse o meu ideal e vou continuar a persegui-lo através do meu trabalho."
O primeiro dos quatro volumes que compõem a série é dedicado essencialmente à caracterização do Japão durante a guerra. Retrato realista e sem maniqueísmo de uma época de carência e privações, em que o espírito militarista incentivado pelas autoridades japonesas e a fé cega na invencibilidade das tropas japonesas, guiadas pelo Imperador Deus, são duramente criticados.
Neste poderoso libelo anti-militarista, Nakazawa revela-se extremamente eficaz na descrição do histerismo bélico que invadia a população japonesa e que levou, uma vez consumada a derrota, ao suicídio colectivo de centenas de mulheres e crianças, que escolhiam essa "morte honrosa" em vez de se renderem aos "demónios americanos". Num ambiente de furor patriótico habitual em época de guerra, Gen e a sua família são segregados e discriminados, devido às posições pacifistas do seu pai. Hostilizado pelos colegas de escola, ignorado pelos vizinhos, Gen vê o seu pai ser preso e espancado, a irmã publicamente humilhada e a colheita da família destruída, tudo isto perante o olhar indiferente e muitas vezes hostil dos vizinhos, com excepção de Pak, um coreano também ele ostracizado devido à sua origem e que será o único a apoiar a família Nakaoka.
Perante este ambiente hostil e insustentável, Koji, o irmão mais velho de Gen, que não tinha a mínima vontade de morrer pelo Imperador, alista-se como voluntário na marinha, procurando assim evitar que a família fosse marginalizada por não querer participar ainda mais no esforço de guerra. Essa decisão de Koji, que lhe permitiu confrontar a dura realidade da guerra, representada por personagens como o piloto kamikaze que tenta desertar por não se sentir preparado para a sua missão suicida, muito provavelmente acabaria por lhe salvar a vida, pois de outro modo estaria em Hiroshima no fatídico dia 6 de Agosto de 1945, em que uma única bomba riscou a cidade do mapa, matando dezenas de milhar de pessoas e marcando para sempre a vida dos sobreviventes.  
A forma como o lançamento e a explosão da bomba atómica são contadas em apenas três das quase novecentas páginas que compõem esta saga semi-autobiográfica (muito longe do espectáculo pirotécnico do Akira de Otomo, onde uma única explosão chega a ocupar 15 páginas), alerta-nos para outro aspecto importante da obra de Nakazawa: a questão da manipulação do tempo, que se contrai ou dilata de uma forma perfeitamente articulada às necessidades narrativas, evitando a espectacularidade gratuita, mas sem abdicar dos efeitos dramáticos.
A passagem dos dias é dada pelo sol nascente, um sol ardente e estilizado, símbolo ao mesmo tempo dos ciclos naturais da vida que se renovam, do deserto em que Hiroshima se tornou e da própria bandeira japonesa.
Claro que os leitores menos habituados à estética e aos mecanismos narrativos dos manga (como parece ser o caso de Harvey Pekar, a avaliar pelas observações que fez à série) sentirão alguma estranheza perante o desenho caricatural e quase disneyano de Nakazawa, claramente na linha do grafismo de Osamu Tezuka, o mestre incontestado da BD japonesa. Do mesmo modo, a forma exagerada como os personagens exprimem os seus sentimentos, desde a raiva e tristeza à alegria, estão dentro dos padrões habituais da BD japonesa, e tem a sua origem na mímica do teatro Kabuki, uma das influências reconhecidas dos manga.
Algo de semelhante sucede com a representação da violência doméstica, apresentada de um modo exagerado, mais próximo dos desenhos animados (uma simples estalada do pai projecta Gen contra a parede; de cada vez que um personagem leva um murro na cabeça, nasce-lhe imediatamente um galo de grandes dimensões, etc.) do que seria de esperar numa obra de grande intensidade dramática, inspirada em factos reais. Embora nos pareça bizarro, tudo isto é perfeitamente natural em termos da BD japonesa, onde o irrealismo das cenas de acção é algo extremamente comum, e onde a fronteira entre os diferentes géneros (humor, acção, terror, romance, drama, erotismo) não é tão rígida como no Ocidente.
Vencidas essas ténues barreiras culturais, o leitor descobre uma história notável e ao mesmo tempo terrível. Apesar do seu aspecto caricatural, o traço de Nakazawa consegue-nos transmitir perfeitamente a angústia de Gen ao ver os seus pais soterrados nos escombros; o sofrimento dos moribundos que arrastam as carnes derretidas pela bomba; o desespero daqueles que perderam tudo e para quem continuar vivo significa apenas o prolongar da agonia; a impotência dos que, tendo escapado aparentemente ilesos, vêem a radiação corroer-lhes o corpo; o comportamento mesquinho das pessoas, quando as necessidades básicas da sobrevivência se sobrepõem aos valores morais, como a caridade e amizade; o ridículo de um grupo de sobreviventes que apedreja o cadáver de um americano, como se isso lhes permitisse vingar a destruição das suas vidas... Enfim, todos os cambiantes de um quadro complexo, mas terrivelmente real, estão nesta história, bem reveladora da capacidade da BD para transmitir de forma compreensível toda a dimensão de uma tragédia impensável, mas que não pode ser esquecida.
Contudo, no meio de todo o sofrimento e dor, onde surgem os inevitáveis abutres, dispostos a ganhar dinheiro com o mercado negro e o contrabando de víveres, ainda há espaço para a esperança, simbolizada por Gen. É ele que evita o suicídio de uma jovem bailarina, desfigurada pelas queimaduras provocadas pela radiação, do mesmo modo que é também graças a Gen que Seiji, um jovem pintor a quem a explosão mutilou e desfigurou (o que permite a Nakazawa abordar o problema dos mutilados e inválidos, quase marginalizados pelas famílias para quem a sua presença é uma lembrança constante de acontecimentos que querem a todo o custo esquecer) acabará por encontrar forças para voltar a pintar, agora com a boca, pois as mãos estavam inutilizadas, arranjando assim uma forte motivação para se manter vivo.
E a história termina com um gesto pleno de simbolismo, através do qual Gen exorciza o espectro de horror e destruição da bomba atómica: a plantação de sementes na terra calcinada do que antes tinha sido a sua casa. Para que do solo martirizado de Hiroshima a vida volte a nascer!
Publicado originalmente no fanzine Nemo nº 28, de Dezembro de 1997

Poderosos Heróis Marvel 3 - Homem de Ferro: Semente de Dragão

O HOMEM DE FERRO ENFRENTA O MANDARIM 

Poderosos Heróis Marvel
Vol. 3
Homem de Ferro: Semente de Dragão
Argumento – John Byrne
Desenhos – Paul Ryan e Bob Wiacek
Quinta, 06 de Agosto
Por + 8,90 €

O regresso do Homem de Ferro às colecções que o Público e a Levoir dedicam aos poderosos heróis da “Casa das Ideias” está marcado já para a próxima quinta-feira, numa aventura que o leva à China comunista, logo após o massacre de Tiananmen, onde tem de enfrentar dois vilões clássicos ainda desconhecidos dos leitores portugueses: o Mandarim e o dragão Fin Fang Foom.
Embora o Mandarim fosse uma das personagens do terceiro filme do Homem de Ferro, não se pode dizer que o vilão interpretado no cinema por Ben Kingsley fosse particularmente fiel ao Mandarim original da BD. Este é o típico vilão oriental, na linha do Fu Manchu de Sax Rohner, ou do Imperador Ming, da série Flash Gordon, de Alex Raymond, cujos anéis de poder de origem alienígena fazem dele um inimigo à altura do Homem de Ferro e presença recorrente nas suas histórias, desde a sua primeira aparição em 1964, no nº 50 da revista Tales of Suspense, pelas mãos de Stan Lee e Don Heck
Já o dragão Fin Fang Foom é anterior mesmo ao próprio Universo Marvel, sendo um dos inúmeros monstros criados por Stan Lee e Jack Kirby na revista Strange Tales, em 1961, ou seja, numa época em que as histórias de monstros eram extremamente populares e dois anos antes do Quarteto Fantástico trazer os super-heróis de novo para a ribalta, dando início à Silver Age (era de Prata), também conhecida como Era Marvel.  

São estes dois personagens clássicos, que surgem aqui actualizados pelo talento de John Byrne, que assegura o argumento desta saga marcada pelo confronto entre Oriente e Ocidente, em que o poder do dinheiro acaba por ser mais importante do que as ideologias. Se os leitores conhecem Byrne sobretudo como desenhador de clássicos incontornáveis dos X-Men, publicados em anteriores colecções, como A Saga da Fénix Negra, ou Dias de um Futuro Esquecido, aqui podem descobrir outra faceta do autor, que entrega a arte ao profissionalismo de Paul Ryan e Bob Wiacek, dois veteranos da Marvel que se revelam perfeitamente à altura do desafio.
Publicado originalmente no Jornal Público de 31/07/2015