domingo, 29 de janeiro de 2012

Blankets finalmente em português

Quase ao mesmo tempo que "Habibi", o seu último livro saia nos Estados Unidos, chegava finalmente às livrarias nacionais, a edição de “Blankets”, a obra que deu fama a Craig Thompson, aquando da sua publicação original em 2003.
Como mais vale tarde do que nunca, Blankets aqui está em português, numa bela edição em capa dura da Devir, que assim abre da melhor maneira a colecção “Biblioteca de Alice”, dedicada à Banda Desenhada de Autor.
Belíssimo livro de quase 600 páginas, “Blankets” é uma história de amor e um relato autobiográfico sincero de uma infância vivida no Wisconsin, no seio de uma família fundamentalista cristã, em que o peso da religião e a noção de pecado estão sempre presentes, condicionando a vocação artística do autor, que chegou a queimar todos os seus desenhos de infância, por achar que a sua arte o afastava de Deus e da salvação…
Mas, mais do que a infância de Thompson num meio ultra-conservador, na América profunda, “Blankets” gira em torno da sua história de amor com Raina, uma rapariga que conheceu numa colónia de férias e que lhe oferece a manta de retalhos (blanket) dá nome ao livro. É esse primeiro amor, sempre inesquecível, que Thompson recorda em belíssimas sequências, muito bem contadas e magnificamente desenhadas. Mais do que um grande narrador, Thompson é um formidável desenhador, que alterna com elegância entre os registos realista e caricatural, explorando muito bem todas as potencialidades do preto e branco, através de um traço de grande dinâmica e elegância.
A vontade de homenagear Deus e as suas criações (pois como bem lembra, Roger Vadim, num filme com Brigitte Bardot, “Deus criou a mulher”…) fazem com que Thompson gaste quase 600 páginas a contar uma história que podia perfeitamente contada em menos de 100, caso se abdicasse do ritmo contemplativo e da hábil gestão dos silêncios que ajuda a que nos concentremos na contemplação do desenho. E a verdade é que estas quase 600 páginas se lêem de um fôlego e com grande prazer! Vencedor de vários Prémios Eisner e Harvey nos Estados Unidos, aquando da sua publicação original, “Blankets” é, (a par com “Emigrantes”, de Shaun Tan) o melhor livro de BD publicado em Portugal em 2011 e, naturalmente, um livro altamente recomendável para todos os leitores.
(“Blankets”, de Craig Thompson, Devir, 594 pags, 35 €)
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 28/01/2012
PS - Para terminar, aqui fica o belo desenho que Craig Thompson me fez no Festival de Beja de 2009.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Miguelanxo Prado na TV espanhola

Miguelanxo Prado, o genial autor galego esteve em destaque no programa Ofícios de Cultura da TVE, com uma reportagem em que explica a um jovem desenhador o seu método de trabalho. Esta reportagem, além de revelar algumas pranchas e a capa do novo álbum de Prado, Ardalén,uma novela gráfica de 180 páginas, e nos dar a descobrir o estúdio onde o artista trabalha, tem também várias cenas filmadas na última edição do Festival Viñetas desde el atlântico, de que Prado é um dos directores.
Mesmo para quem não percebe o espanhol, vale muito a pena pelas imagens e pela oportunidade de ver Miguelanxo Prado (mas também Emile Bravo e Carlos Pacheco) a desenhar ao vivo.



sábado, 21 de janeiro de 2012

Cartografias da Memória e do Quotidiano inaugura hoje em Guimarães

Na programação da Capital Europeia da Cultura, Guimarães 2012, também há espaço para a BD e a ilustração, através da exposição Cartografias da Memória e do Quotidiano, que hoje inaugura. Esta exposição, coordenada pela ESAP-Guimarães para a Capital da Cultura conta com trabalhos de 6 ilustradores, 3 portugueses (João Fazenda, Marco Mendes e Nuno Sousa) e 3 estrangeiros, que regressarão a Portugal para o Festival MAB Invicta (Denis Deprez, Anke Feuchtenberger e Ulli Lust) realizados no âmbito de uma residência artística na cidade de Guimarães. As imagens (da terra, das gentes, da memória de Guimarães) resultantes destas residências foram ampliadas e espalhadas por vários espaços da cidade, em outdoors e na fachada dos prédios, mas os originais e os estudos preparatórios dos seis autores estão desde hoje expostos na Sociedade Martins Sarmento, até dia 4 de Março.
No dia 3 de Março, haverá uma mesa redonda com os autores presentes e será lançado o catálogo bilingue, que conta com um texto deste vosso escriba sobre a exposição. Mas até lá, aqui fica a sugestão para passarem por Guimarães, uma bela terra, onde nunca faltam motivos de interesse, especialmente nesta altura, como podem ver aqui

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

As 10 Melhores BDs que li em 2011 - Parte II


6 - Parker: The Outfit, de Darwyn Cooke e Richard Stark, IDW

Segunda adaptação feita por Darwyn Cooke dos romances de Richard Stark (pseudónimo usado por Donald Westlake quando escrevia policiais) com o personagem Parker, The Outfit mostra um Cooke cada vez mais à vontade com o universo de Stark e sem qualquer receio de fazer experiências. Vejam-se as sequências do livro 3, apresentadas como um artigo numa revista, ou como um desenho animado da UPA, bem demonstrativas do talento narrativo de Cooke. Graficamente, mantêm-se a estilização e a elegância a que Darwyn Cooke nos habituou, com um trabalho bitonal que assenta como uma luva ao tom "retro" da história, passada nos anos 50.


7 - Polina, de Bastien Vivès, Casterman

Depois do magnífico Dans Mes Yeux, Bastien Vivés assina outro grande livro com Polina, a história da relação de uma jovem bailarina com o seu mestre, contada com um traço a preto e branco de extraordinária leveza, que parece flutuar na página, graças a um inteligente uso dos fundos cinzentos.Tão novo como talentoso, Vivès afirma-se cada vez mais como a grande revelação da BD franco-belga dos últimos anos.


8 - Portugal, de Cyril Pedrosa, Dupuis

Ficção autobiográfica sobre um autor que descobre as suas origens, Portugal tem conquistado a unanimidade da crítica e dos leitores franceses. O último trabalho de Cyril Pedrosa, autor francês de ascendência portuguesa, é uma belíssima viagem (a portugal, mas também interior) de quase 300 páginas, que se lêem de um fôlego. Integrando de forma harmoniosa os croquis do seu caderno de viagem, no meio das páginas de BD, Pedrosa constrói um belo livro, cheio de sensibildade e humor, mas que, infelizmente, dificilmente teremos oportunidade de ler em português...


9 - Stargazing Dog, de Takashi Murakami, Nbm

Esta bela capa transmite uma imagem de felicidade enganadora, pois esconde a história mais triste que li nos últimos anos. Os japoneses têm tradição nas histórias de fazer chorar as pedras da calçada (basta pensar num filme como Grave of the Fireflies, de Isao Takahata) e este Stargazing Dog é um bom exemplo. Uma história tão bela quanto triste, que Murakami conta de uma forma rigorosa, conseguindo (quase sempre) evitar cair na lamechice.


10 - Tex: Na Trilha do Oregon, de Manfredi e Gomez, Mythos Editora

Mais do que uma agradável surpresa, este Na Trilha do Oregon é, provavelmente o melhor "Texone" que já li. Para além de uma história interessante, muito bem construída por Gianfranco Manfredi que dá às personagens femininas um destaque pouco habitual numa história de Tex, há o desenho espectacular de Carlos Gomez. Verdadeira estrela em Itália, graças à série Dago, mas praticamente desconhecido no resto da Europa, este argentino é um desenhador de mão cheia, com um traço tão dinâmico como pormenorizado e que dá aos rostos uma grande expressividade que faz lembrar Buzzelli, embora o traço de Gomez seja mais elegante.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

As 10 Melhores BDs que li em 2011 - Parte I

Nesta altura do ano, é quase inevitável fazer as listas das melhores leituras do ano que terminou, e eu, mais uma vez, não fujo à tradição. Como das outras vezes, o critério de escolha foi os livros que li pela primeira vez em 2011, independentemente do local, ou data de publicação original. Daí que as mais importantes edições nacionais de 2011, Blankets e Emigrantes, não estejam nesta lista, pois já as tinha lido na edição original, há já alguns anos. O mesmo se aplica às excelentes reedições que estão a ser lançadas no mercado francês, de séries como Philemon, de Fred, Jerry Spring, de Jijé, Theodore Poussin, de Frank Le Gal e La Dynastie Donald Duck, de Carl Barks, que teriam certamente entrado nesta lista, caso as tivesse lido em 2011 pela primeira vez. Do mesmo modo, fica fora desta lista o Agência de Viajes Leming de José Carlos Fernandes, pois embora só em 2011 tenha sido publicado em livro pela Astiberri, tive ocasião de o ler pela primeira vez em 2006, ainda em fotocópia e, mais tarde, cheguei a ver provas da edição da Devir que nunca chegou a ser publicada.
Explicados os critérios de escolha, aqui vai a primeira parte da lista, ordenada por ordem alfabética:



1 - 36-39: Malos Tiempos, de Carlos Gimenez, De Bolsillo


Este livro, previamente publicado em 5 volumes pela Glenat España é mais uma viagem de Carlos Giménez ao seu passado, na linha de Paracuellos. Uma ficção autobiográfica, que mistura momentos vividos pelo próprio, com depoimentos recolhidos por Gimenez. O retrato que Giménez traça da vida em Madrid durante a Guerra Civil espanhola, é impressionante e a forma como o conta, mostra todo o talento de um grande autor de BD, que há muito atingiu a maturidade.


2 - Criminal: The Last of the Innocent, de Ed Brubaker e Sean Philips, Marvel/Icon

Com a série Criminal, Ed Brubaker e Sean Philips assinaram alguns dos melhores policiais negros dos últimos anos, com personagens à beira do abismo, diálogos afiados como um bisturi e um desenho de uma eficácia extraordinária, que recria no papel a ambiência do melhor film noir. Neste The Last of the Innocent, Brubaker e Philips arranjaram um processo narrativo tão simples como genial para tratar os flash-backs da adolescência de Riley Richards, apresentando-os num estilo gráfico diferente, que remete para as revistas da Archie Comics, estabelecendo assim um óbvio contraste entre um passado tranquilo e feliz e um presente sombrio. Brubaker diz que este livro é capaz de ser a melhor coisa que ele já fez e não sou eu que o vai desmentir!


3- Dog Mendonça na Dark Horse, de Filipe Melo e juan Cavia, Dark Horse Presents nºs 4 a 7

A estreia de Dog Mendonça no mercado americano deu-se com estas quatro histórias de 8 páginas publicadas na revista Dark Horse Presents com o intuito de apresentar o lobisomem português aos leitores americanos, antes da Dark Horse lançar o primeiro álbum da série. Na realidade, estamos perante uma história em 3 partes, que relata a origem de Dog Mendonça e que termina precisamente onde começa o primeiro livro, e uma 2ª história solta,com os nossos heróis num Festival de BD. Para além do humor e das referências cinematográficas que são habituais na série, estes episódios introduzem uma nova dimensão metalinguística, ao colocar os personagens a falar directamente com os leitores, perfeitamente conscientes de que estão nas páginas da revista. Também em termos gráficos, é evidente o progresso de Juan Cavia, com as cores de Santiago Villa a serem reproduzidas, pela primeira vez, na perfeição. Um óbvio passo em frente para a mais popular BD portuguesa dos últimos anos.


4 - Dylan Dog: La Pequeña Muerte, de Sclavi, Ruju e Roi, Aleta ediciones


Desde que a Mythos deixou de publicar a série Dylan Dog, tenho tido grandes dificuldades em manter o contacto com o peculiar detective criado por Tiziano Sclavi. Até que descobri as edições espanholas da Aleta Ediciones, impressas no formato original e com um papel bastante superior ao usado pela Mythos. Entre as mais de 20 aventuras de Dylan Dog que li em 2011, La Pequeña Muerte, história desenvolvida por Pasquale Ruju a partir de uma ideia de Tiziano Sclavi, foi um dos melhores. O facto da história ser desenhada por Corrado Roi, o meu desenhador favorito de Dylan Dog e um grande desenhador em qualquer parte do mundo, como se pode ver por aqui, claro que também ajudou à escolha...


5 - Habibi, de Craig Thompson, Pantheon


Sete anos depois de Blankets, o tão aguardado novo livro de Craig Thompson aí está. E graficamente, não há qualquer dúvida que valeu a espera, com o magnífico traço de Thompson cada vez mais apurado e com um excelente uso das potencialidades decorativas da caligrafia árabe. Obra monumental e de grande ambição, Habibi acaba por ser um pouco vítima desse excesso de ambição, pois a necessidade de abordar tantos temas (a escravatura, a ecologia, o amor, a religião, etc) acaba por perturbar um pouco o fluir da narrativa. O que não impede que Habibi seja um livro belíssimo e uma leitura altamente recomendável!

Continua...

domingo, 8 de janeiro de 2012

Palavras para quê?: Os Emigrantes, de Shaun Tan

Apesar da crise, 2011 foi um bom ano no que se refere à edição em português de obras fundamentais que permaneciam inéditas no nosso país há demasiado tempo. Para além de “Blankets”, de Craig Thompson, que será brevemente objecto de análise neste espaço, foi também lançado “The Arrival”, o mais emblemático trabalho de Shaun Tan, editado em Portugal pela Kalandraka, com o título “Emigrantes”.
Editado originalmente em 2006 e vencedor do Prémio da Melhor Banda Desenhada no Festival de Angoulême de 2007, “Emigrantes” é uma obra difícil de classificar, uma história sem palavras, na fronteira entre a Banda Desenhada e o livro ilustrado, supostamente dirigido a um público infantil, mas que possui vários níveis de leitura e é uma fabulosa metáfora sobre o drama de quem tem de deixar a sua terra para procurar uma vida melhor noutro lugar, com uma língua e uma cultura diferentes. No fundo, um cenário que nestes tempos difíceis se depara a muitos (demasiados) portugueses…
Inspirando-se na própria experiência do seu pai, que emigrou da Malásia para a Austrália, misturando-a com histórias e imagens dos emigrantes europeus que chegaram aos Estados Unidos para fugir à fome e à guerra, na primeira metade do século XX, Tan constrói uma belíssima fábula, onde as palavras são supérfluas e a comunicação se faz através do desenho, com os desenhos que o anónimo protagonista desta história utiliza para comunicar com os habitantes do país para onde emigrou, a funcionarem como espelho da comunicação de Shaun Tan com os leitores.
Apesar dos elementos fantásticos, tanto arquitectónicos, como animais, e uso de símbolos que não correspondem a nenhuma linguagem conhecida, é fácil para o leitor estabelecer uma ligação com a realidade concreta dos judeus fugidos ao nazismo em finais dos anos 30, ou dos emigrantes irlandeses e italianos que chegavam a Nova Iorque de barco, tendo a Estátua da Liberdade (aqui substituída por duas estátuas que se cumprimentam) a recebê-los. O tom sépia usado nos (fabulosos) desenhos de Shaun Tan, que remete para as fotografias amarelecidas pelo tempo, também contribui para essa identificação.
Além de ser um livro belíssimo, maravilhosamente desenhado a grafite, “Emigrantes” é também um belo exemplo de como é possível contar uma história complexa sem palavras. Veja-se a imagem que escolhi para ilustrar este texto, em que o emigrante ao abrir a mala, vê não as roupas que lá estão, mas a família que deixou para traz. Em termos narrativos, Shaun Tan também dá cartas alternando imagens espectaculares de dupla página, ou página inteira, com pequenos quadrados cheios de pormenores, criando diferentes ritmos de leitura.
Lido “Emigrantes”, há que descobrir outros trabalhos de Tan, também editados em Portugal, como “A Árvore Vermelha” (também pela Kalandraka) ou “Contos dos Suburbios”, editado pela Contraponto, com a capa invertida em relação à edição original, sem que se perceba muito bem porquê…
Agora, só falta editar em português o fabuloso “Lost Thing”, cuja adaptação cinematográfica valeu a Shaun Tan o Óscar de Hollywood para a melhor curta de animação em 2011.
(“Emigrantes”, de Shaun Tan, Kalandraka,136 pags, 22 €)
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 7/01/2012

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Vítor Péon, o Desenhador Incansável

Se os nomes de E.T. Coelho e de Fernando Bento funcionam quase como símbolos das revistas Mosquito e Diabrete, em cujas páginas deixaram o grosso da sua produção, a carreira de Vitor Péon caracteriza-se pela ubiquidade. Nascido em Angola em 1923, Péon foi um dos mais versáteis e indiscutivelmente o mais produtivo autor de BD que este país conheceu, espalhando o seu talento por milhares de histórias feitas ao longo de uma carreira que durou mais de 40 anos, repartida entre a Inglaterra, França e Portugal, de onde partiu e aonde acabou por regressar.
Tendo descoberto a BD aos 13 anos através da revista O Mosquito, seria nas suas páginas que Vitor Péon, que trabalhava na aplicação de cor nas chapas litográficas, se estrearia como autor de BD 6 anos depois, em 1943, com Falsa Acusação, um movimentado western em que o seu desenho acompanha um texto palavroso onde se detecta a mão de Raúl Correia.
Dois anos e algumas histórias como Flibusteiros e o O Neto de Cartouche depois, dar-se-ia um encontro que iria marcar toda a sua carreira. Roussado Pinto, um jovem de 18 anos que se estreava na edição de BD, funda o Pluto, uma revista semanal claramente inspirada no Mosquito, indo buscar o seu mais jovem desenhador. Péon aceita o desafio e sozinho desenha quase toda a revista, adequando o seu traço às características de cada história, dando a ideia de que de diferentes desenhadores se tratava. Do seu lápis saem as ilustrações para os contos de Orlando Marques, uma construção de armar com o pseudónimo de Thomas Deerfoot, para além de BDs dos mais variados géneros, dos westerns como Três Balas e Traidor em Fuga, ao polícial Roubo e Crime, histórias humorísticas (Fitas Sonoras, As Aventuras do Pluto, Felizardo, o Rei do Azar e Aventuras de Zé Nabo e Zé Bolota) e Dick, Terry e Tom no Reino Selvagem, um exemplo da aventura em estado puro, bem na linha do inglês Reg Perrot, em que Péon se mostra tão à vontade a desenhar os aviões como os animais selvagens e uma natureza enfurecida. Mas para além de todas estas séries em que as ilustrações eram acompanhadas por texto didascálico corrido (que no caso de Três Balas corria muito mais devagar do que os desenhos de Péon...), o desenhador faria ainda O Segredo do Oceano e Toyat o Rei dos Macacos, histórias que, para além de serem cópias descaradas de Flash Gordon e Tarzan, mostram que Péon também sabia usar os balões sem que isso afectasse o enorme dinamismo das suas pranchas.
Com o Pluto a ter de fechar as portas ao fim de 25 números, Péon, que nos últimos tempos da revista colaborava simultaneamente com o Diabrete, vai passar a trabalhar mais intensamente para a revista dirigida por Adolfo Simões Muller, publicando inúmeras histórias dos mais variados géneros em três anos de ritmo diabólico, capaz de fazer inveja a um Jack Kirby, o que não o impediu de colaborar também no Papagaio, novamente ao lado de Roussado Pinto, e ainda na Lusitas, revista da Mocidade Portuguesa destinada a um público feminino. Sendo obrigado a desenhar uma média de 40 páginas por mês para poder sustentar a família, Péon viu-se forçado a simplificar o seu estilo, conseguindo ainda assim níveis muito razoáveis de qualidade, bem reveladores do seu talento inato.
Mas seria com o seu regresso ao Mosquito em 1949 que teria lugar um dos pontos mais altos da sua imensa obra de BD. Violenta história de traição e vingança, A Casa da Azenha traduz uma ruptura com a temática habitual da BD portuguesa da época, insuflando-lhe um realismo e uma violência característicos dos romances políciais do outro lado do Atlântico. Na melhor tradição dos romances de Hammett, Chandler e Spillane, esta BD contém todas as características dos romances negros publicados nos "pulp magazines", incluindo gangsters sem escrúpulos, um empresário corrupto e uma "mulher fatal".
Em termos de desenho e planificação das imagens, são bem patentes as influências de Will Eisner e de Alex Raymond, sem que com isso o traço de Péon perca personalidade, dramatismo e eficácia, apesar de algumas falhas em termos de composição das vinhetas. E o desenhador chega mesmo a tentar uma incursão pelo campo do surrealismo, na fabulosa sequência do sonho, em que, como bem assinala A. Dias de Deus, os cenários de Dali para o filme Spellbound de Hitchcock e as capas de Candido Costa Pinto para a colecção Vampiro (onde foram publicados muitos dos romances policiais que Péon homenagea neste álbum) funcionaram como referência.
Mesmo um aspecto claramente datado, como o recurso a uma narração didascálica, em que o texto está separado da imagem, em vez do uso de balões para contar a história, acaba por resistir ao desgaste do tempo. Embora o texto de Raúl Correia que enche as vinhetas seja muitas vezes reduntante (como de resto era habitual no principal argumentista do Mosquito), limitando-se a descrever o que a imagem mostra, adequa-se perfeitamente aos cânones do romance policial "negro" que pretende homenagear, especialmente nos momentos em que é usado para nos transmitir os pensamentos de Ted Kirk, que narra a história na primeira pessoa.
Péon continuará no Mosquito produzindo excelentes trabalhos como o western A Vingança do Jaguar, ao mesmo tempo que se estreia na pintura expondo dois óleos no salão de Outono da Sociedade Nacional de Belas Artes. Em 1950, respondendo a mais um chamamento de Roussado Pinto, contratado pela Agência Portuguesa de Revistas para relançar o Mundo de Aventuras, vai passar a colaborar nessa revista contribuindo decisivamente para a sua fase de maior sucesso.
As páginas do Mundo de Aventuras enchem-se com as ilustrações e histórias de Vítor Péon, a maioria com argumento de Edgar Caygil (um dos vários pseudónimos de Roussado Pinto), abarcando todos os géneros de aventura, incluindo a BD de temática histórica. O traço maduro e dinâmico revelado nestas histórias, valorizado pelos enquadramentos judiciosamente escolhidos mostram um autor com um perfeito domínio da linguagem da Banda Desenhada. No Mundo de Aventuras, para além de heróis como Zama e Frank Savage nascerá o mais célebre personagem de Péon, o cowboy Tomahawk Tom, criado em colaboração com Roussado Pinto, que lhe permitia dar asas ao seu talento para desenhar cavalos, desenvolvido durante o serviço militar cumprido na cavalaria. Um dos pontos altos da colaboração da dupla na publicação da Agência Portuguesa de Revistas, é a história S.O.S. na Idade da Pedra de 1954, em que os próprios autores participam activamente da aventura, viajando no tempo para ajudarem um homem pré-histórico.
Quando em 1954 Roussado Pinto deixa o Mundo de Aventuras, para criar duas revistas de efémera duração; Titã e Flecha, Péon continua a seu lado, desenhando histórias e ilustrações para o Titã e ilustrações e uma construção de armar que ficaria incompleta, para o Flecha. Para a seguinte aventura editorial fracassada de Roussado Pinto, a revista Valente, Péon homenageará em 1956 o seu autor favorito, Reg Perrott, redesenhando um dos seus maiores êxitos, A Flecha de Ouro, publicada no Mosquito, em finais da década de 30. Apesar do empenho e do talento de Péon, que imita na perfeição os enquadramentos arrojados de Perrott, alternando plongées e contra plongées, esta nova versão não consegue atingir o esplendor e o rigor arquitectónico da história original de Perrott.
Como as imposições da censura às publicações juvenis reduzem praticamente a BD realista portuguesa às séries de temática histórica, restringindo drasticamente o campo de trabalho. Péon vê-se assim obrigado a seguir os conselhos de E.T. Coelho, então já a trabalhar em França, e tentar também ele a sua sorte no estrangeiro.
Depois de uma passagem por Dundee, fixa-se em Londres com a família, enquanto produz anonimamente histórias aos quadradinhos para as editoras D.C. Thompson e Fleetway e se começa a interessar seriamente pelo cinema de animação. As séries como Simon Crane e The Laughing Pirate só muito mais tarde seriam parcialmente conhecidas em Portugal, quando, a partir da década de 70, o Mundo de Aventuras reedita essas histórias antigas de Péon.
Durante a sua estadia em Inglaterra, apenas Nos Mares da China é publicado em Portugal, em 1962. Único álbum do Cavaleiro Andante feito por um autor português, esta aventura de temática histórica terá sido feita uns anos antes, quando Péon ainda se encontrava em Portugal, de acordo com A. J. Ferreira.
No regresso a Portugal em 1965, trocará temporariamente a BD pelo cinema de animação e pela pintura, com uma exposição individual na Sociedade Nacional de Belas Artes de grande sucesso crítico, como o demonstram as palavras de Almada Negreiros, que o aconselhou a nunca deixar de pintar.
Em 1968, surge a versão portuguesa da revista Tintin onde as suas histórias, que se incluem nos seus melhores trabalhos de sempre, são as únicas a quebrar a hegemonia franco-belga, mas como o trabalho não era suficiente e o cinema de animação não se revelava economicamente viável, volta a partir, agora para França onde se ocupará dos desenhos da série Yataca, um sub-Tarzan, na linha de Tayat e Zama, de que desenhará uma vintena de episódios.
Acabará por voltar definitivamente a Portugal em 1974 e à BD, ressuscitando para o efeito Tomahawk Tom, o seu mais célebre personagem num álbum inédito, prejudicado por um desenho apressado e por uma péssima cor que empastela completamente o seu traço inimitável. O fracasso comercial de O regresso de Tomahawk Tom compromete outros projectos de auto-edição, impossibilitando os leitores de conhecerem as anunciadas aventuras de Sax, o Flibusteiro e do reverendo Benedict Jr... Mas Péon, que entretanto se envolveu na política, apoiando a candidatura à presidência da República do Almirante Pinheiro de Azevedo, para a qual desenhou alguns cartazes, não desiste e editará em 1976 o Vitor Péon Magazine. Esta revista, onde o autor recuperaria uma série de histórias produzidas nos anos 50 para o Mundo de Aventuras, incluindo pelo menos um episódio de Tomahawk Tom que tinha ficado por publicar, só conseguirá resistir durante três números num mercado já pouco atreito à aventura clássica.
Em Agosto de 1979 voltará ao Mundo de Aventuras para ilustrar O Rei dos Lobos, uma história escrita por Jorge Magalhães que é um dos melhores trabalhos do desenhador, que livre da pressão dos prazos apertados, que sempre condicionaram a sua obra, provou ainda ser capaz de inovar e surpreender. Publicada em formato italiano o que permite a reprodução dos desenhos num tamanho bastante próximo do original, esta lenda viking mostra um desenhador extremamente detalhado e exímio na composição e no tratamento negro dos fundos que ajudam ao clima fantástico da história, do mesmo modo que o realismo com que trata as rudes feições dos personagens as torna reais e credíveis. Nesta última fase, o seu estilo ganha um barroquismo e um pormenor que o aproxima de Burne Hogarth, autor com quem sempre partilhou o dinamismo e agitação das figuras, sempre em permanente tensão.
Se o talento do artista era já abundantemente conhecido, a sua capacidade de reflectir e de transmitir os seus conhecimentos sobre a Banda Desenhada ficaram bem patentes em História da Banda Desenhada e A Banda Desenhada como Arte, dois livrinhos notáveis pela concisão, que não consegue esconder uma grande erudição e amor à BD, editados pelo F.A.O.J., e no curso sobre BD que dará em 1980 no I.A.D.E.
A partir daqui, com excepção de algumas capas para a revista Selecções do Mundo de Aventuras, a sua carreira virar-se-á definitivamente para a BD de temática histórica e para a investigação historiográfica, realizando uma série de trabalhos de grande qualidade. São dessa fase os álbuns Gesta Heróica e A Epopeia dos Descobrimentos Portugueses (livro ilustrado que daria origem a uma colecção de cromos), trabalhos em que o estilo tão característico da fase final de Péon está ao serviço de um argumento bem documentado, onde abundam os arcaismos de linguagem.
Em 1985, pouco depois de ter sido galardoado pelo Clube Português de Banda Desenhada, Péon é acometido por uma trombose que lhe rouba a voz e o movimento da mão direita, vendo-se assim obrigado a renunciar definitivamente à BD. Acabaria por falecer em 5 de Novembro de 1991, ainda a tempo de assistir à justíssima homenagem que lhe foi prestada pelo Clube Português de Banda Desenhada, em Dezembro de 1990 no 9º Festival de Banda Desenhada de Lisboa, onde faz a sua última aparição pública.

Texto originalmente escrito em 1997, para um projecto de um História da BD Portuguesa, coordenado pelo João Paulo Cotrim, que não chegou a bom porto.Publicado pela primeira vez no BD Jornal nº 28, de Outubro de 2011, com algumas pequenas correcções sugeridas pelo Jorge Magalhães, a quem agradeço a leitura atenta.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

London Caling: O regresso do Menino Triste

Depois de ter falhado os Festivais da Amadora de 2010 e 2011 por motivos vários, eis que chega finalmente às livrarias "Punk Redux", a tão aguardada aventura punk do Menino Triste
Alter-ego do seu criador, João Mascarenhas, o Menino Triste, apesar do nome e da própria imagem da personagem (num registo caricatural cada vez mais próximo do mangá na estilização), não é propriamente o herói de histórias dirigidas ao público infantil, mas antes o nosso guia para as memórias e reflexões de Mascarenhas. Depois de em “Os Livros” ter partilhado com os seus leitores as obras que o influenciaram, enquanto homem e enquanto artista, e ter-nos feito reflectir sobre os mecanismos da criação artística, numa viagem simbólica entre Coimbra e Veneza., no álbum "A Essência", Mascarenhas transporta-nos agora até à cidade de Londres nos meados dos anos 70, em pleno despertar da revolução Punk, adaptando para o universo do Menino Triste as memórias de um Verão que o autor passou em Londres, em 1976.
Uma Londres onde os caminhos do Menino Triste (ou Sad Boy, como lhe chamam os seus amigos ingleses) se cruzam com ícones da música e da cultura Punk, como Sid Vicious, Malcon McLaren, Siouxsie Sioux, Vivienne Westwood, ou Soo Catwoman, que assina o prefácio do livro.
A capa do livro, cujas cores e grafismo remetem para "Never Mind the Bollocks", o mítico primeiro disco dos Sex Pistols, dá um ponto de partida perfeito para esta verdadeira viagem no tempo. Um tempo em que se acreditava que era possível mudar o mundo através da música e em que saber cantar ou tocar um instrumento estava longe de ser condição indispensável, ou até necessária, para se formar uma banda.
Conforme refere a editora na nota de imprensa: “O punk foi muito mais do que os clichês dos cabelos em crista, das pulseiras de picos e da obscenidade. Há uma essência criadora e uma energia vital que foram esquecidas e que este livro tenta recuperar: o seu grito inconformista, a sua luta contra o convencional, a ousadia de afirmar...” Grito de revolta de uma geração que contestava os valores tradicionais da sociedade britânica, o Punk estava de longe de ser um movimento homogéneo, como o prova a discussão entre Malcom McLaren e Soo Catwoman, na loja “Sex” da Vivienne Westwood. Uma discusão provavelmente inventada, mas que sintetiza bem o carácter transversal do movimento Punk.
Misturando cenas que viveu, com outras que assistiu ou lhe contaram, Mascarenhas constrói uma ficção autobiográfica muito bem documentada do que foi o movimento punk e do impacto que bandas como os Sex Pistols, ou os Clash tiveram na juventude da época. Colocando o grafismo ao serviço da história, o registo mais “Linha clara” dos livros anteriores, dá aqui lugar a um profuso uso de tramas (em mais uma aproximação ao mangá) para criar efeitos de sombra, e a própria disposição dos quadrados na página não podia ser mais punk, com vinhetas coladas com fita-cola, ou presas por alfinetes, numa bem conseguida tradução visual do espírito “do it yourself” que caracterizou o Punk.
Regressado a Portugal depois destas férias inesquecíveis, o Menino Triste deparou-se com a realidade bem diferente do Portugal pós-25 de Abril. Mas, apesar em vez de cristas e pulseiras de picos, haver cabelos compridos e barba, a música também era importante. Não por acaso, numa das últimas imagens do livro vemos o Menino Triste defronte de uma parede onde estão um grafitti do Zeca Afonso e um cartaz do FMI, do José Mário Branco. Uma boa maneira de Mascarenhas nos lembrar que, também neste país de brandos costumes, a cantiga é uma arma.
(“O Menino Triste: Punk Redux”, de João Mascarenhas, Qual Albatroz, 48 pags, 10 €.
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 30/12/2011