Se os nomes de E.T. Coelho e de Fernando Bento funcionam quase como símbolos das revistas Mosquito e Diabrete, em cujas páginas deixaram o grosso da sua produção, a carreira de Vitor Péon caracteriza-se pela ubiquidade. Nascido em Angola em 1923, Péon foi um dos mais versáteis e indiscutivelmente o mais produtivo autor de BD que este país conheceu, espalhando o seu talento por milhares de histórias feitas ao longo de uma carreira que durou mais de 40 anos, repartida entre a Inglaterra, França e Portugal, de onde partiu e aonde acabou por regressar.
Tendo descoberto a BD aos 13 anos através da revista O Mosquito, seria nas suas páginas que Vitor Péon, que trabalhava na aplicação de cor nas chapas litográficas, se estrearia como autor de BD 6 anos depois, em 1943, com Falsa Acusação, um movimentado western em que o seu desenho acompanha um texto palavroso onde se detecta a mão de Raúl Correia.
Dois anos e algumas histórias como Flibusteiros e o O Neto de Cartouche depois, dar-se-ia um encontro que iria marcar toda a sua carreira. Roussado Pinto, um jovem de 18 anos que se estreava na edição de BD, funda o Pluto, uma revista semanal claramente inspirada no Mosquito, indo buscar o seu mais jovem desenhador. Péon aceita o desafio e sozinho desenha quase toda a revista, adequando o seu traço às características de cada história, dando a ideia de que de diferentes desenhadores se tratava. Do seu lápis saem as ilustrações para os contos de Orlando Marques, uma construção de armar com o pseudónimo de Thomas Deerfoot, para além de BDs dos mais variados géneros, dos westerns como Três Balas e Traidor em Fuga, ao polícial Roubo e Crime, histórias humorísticas (Fitas Sonoras, As Aventuras do Pluto, Felizardo, o Rei do Azar e Aventuras de Zé Nabo e Zé Bolota) e Dick, Terry e Tom no Reino Selvagem, um exemplo da aventura em estado puro, bem na linha do inglês Reg Perrot, em que Péon se mostra tão à vontade a desenhar os aviões como os animais selvagens e uma natureza enfurecida. Mas para além de todas estas séries em que as ilustrações eram acompanhadas por texto didascálico corrido (que no caso de Três Balas corria muito mais devagar do que os desenhos de Péon...), o desenhador faria ainda O Segredo do Oceano e Toyat o Rei dos Macacos, histórias que, para além de serem cópias descaradas de Flash Gordon e Tarzan, mostram que Péon também sabia usar os balões sem que isso afectasse o enorme dinamismo das suas pranchas.
Com o Pluto a ter de fechar as portas ao fim de 25 números, Péon, que nos últimos tempos da revista colaborava simultaneamente com o Diabrete, vai passar a trabalhar mais intensamente para a revista dirigida por Adolfo Simões Muller, publicando inúmeras histórias dos mais variados géneros em três anos de ritmo diabólico, capaz de fazer inveja a um Jack Kirby, o que não o impediu de colaborar também no Papagaio, novamente ao lado de Roussado Pinto, e ainda na Lusitas, revista da Mocidade Portuguesa destinada a um público feminino. Sendo obrigado a desenhar uma média de 40 páginas por mês para poder sustentar a família, Péon viu-se forçado a simplificar o seu estilo, conseguindo ainda assim níveis muito razoáveis de qualidade, bem reveladores do seu talento inato.
Mas seria com o seu regresso ao Mosquito em 1949 que teria lugar um dos pontos mais altos da sua imensa obra de BD. Violenta história de traição e vingança, A Casa da Azenha traduz uma ruptura com a temática habitual da BD portuguesa da época, insuflando-lhe um realismo e uma violência característicos dos romances políciais do outro lado do Atlântico. Na melhor tradição dos romances de Hammett, Chandler e Spillane, esta BD contém todas as características dos romances negros publicados nos "pulp magazines", incluindo gangsters sem escrúpulos, um empresário corrupto e uma "mulher fatal".
Em termos de desenho e planificação das imagens, são bem patentes as influências de Will Eisner e de Alex Raymond, sem que com isso o traço de Péon perca personalidade, dramatismo e eficácia, apesar de algumas falhas em termos de composição das vinhetas. E o desenhador chega mesmo a tentar uma incursão pelo campo do surrealismo, na fabulosa sequência do sonho, em que, como bem assinala A. Dias de Deus, os cenários de Dali para o filme Spellbound de Hitchcock e as capas de Candido Costa Pinto para a colecção Vampiro (onde foram publicados muitos dos romances policiais que Péon homenagea neste álbum) funcionaram como referência.
Mesmo um aspecto claramente datado, como o recurso a uma narração didascálica, em que o texto está separado da imagem, em vez do uso de balões para contar a história, acaba por resistir ao desgaste do tempo. Embora o texto de Raúl Correia que enche as vinhetas seja muitas vezes reduntante (como de resto era habitual no principal argumentista do Mosquito), limitando-se a descrever o que a imagem mostra, adequa-se perfeitamente aos cânones do romance policial "negro" que pretende homenagear, especialmente nos momentos em que é usado para nos transmitir os pensamentos de Ted Kirk, que narra a história na primeira pessoa.
Péon continuará no Mosquito produzindo excelentes trabalhos como o western A Vingança do Jaguar, ao mesmo tempo que se estreia na pintura expondo dois óleos no salão de Outono da Sociedade Nacional de Belas Artes. Em 1950, respondendo a mais um chamamento de Roussado Pinto, contratado pela Agência Portuguesa de Revistas para relançar o Mundo de Aventuras, vai passar a colaborar nessa revista contribuindo decisivamente para a sua fase de maior sucesso.
As páginas do Mundo de Aventuras enchem-se com as ilustrações e histórias de Vítor Péon, a maioria com argumento de Edgar Caygil (um dos vários pseudónimos de Roussado Pinto), abarcando todos os géneros de aventura, incluindo a BD de temática histórica. O traço maduro e dinâmico revelado nestas histórias, valorizado pelos enquadramentos judiciosamente escolhidos mostram um autor com um perfeito domínio da linguagem da Banda Desenhada. No Mundo de Aventuras, para além de heróis como Zama e Frank Savage nascerá o mais célebre personagem de Péon, o cowboy Tomahawk Tom, criado em colaboração com Roussado Pinto, que lhe permitia dar asas ao seu talento para desenhar cavalos, desenvolvido durante o serviço militar cumprido na cavalaria. Um dos pontos altos da colaboração da dupla na publicação da Agência Portuguesa de Revistas, é a história S.O.S. na Idade da Pedra de 1954, em que os próprios autores participam activamente da aventura, viajando no tempo para ajudarem um homem pré-histórico.
Quando em 1954 Roussado Pinto deixa o Mundo de Aventuras, para criar duas revistas de efémera duração; Titã e Flecha, Péon continua a seu lado, desenhando histórias e ilustrações para o Titã e ilustrações e uma construção de armar que ficaria incompleta, para o Flecha. Para a seguinte aventura editorial fracassada de Roussado Pinto, a revista Valente, Péon homenageará em 1956 o seu autor favorito, Reg Perrott, redesenhando um dos seus maiores êxitos, A Flecha de Ouro, publicada no Mosquito, em finais da década de 30. Apesar do empenho e do talento de Péon, que imita na perfeição os enquadramentos arrojados de Perrott, alternando plongées e contra plongées, esta nova versão não consegue atingir o esplendor e o rigor arquitectónico da história original de Perrott.
Como as imposições da censura às publicações juvenis reduzem praticamente a BD realista portuguesa às séries de temática histórica, restringindo drasticamente o campo de trabalho. Péon vê-se assim obrigado a seguir os conselhos de E.T. Coelho, então já a trabalhar em França, e tentar também ele a sua sorte no estrangeiro.
Depois de uma passagem por Dundee, fixa-se em Londres com a família, enquanto produz anonimamente histórias aos quadradinhos para as editoras D.C. Thompson e Fleetway e se começa a interessar seriamente pelo cinema de animação. As séries como Simon Crane e The Laughing Pirate só muito mais tarde seriam parcialmente conhecidas em Portugal, quando, a partir da década de 70, o Mundo de Aventuras reedita essas histórias antigas de Péon.
Durante a sua estadia em Inglaterra, apenas Nos Mares da China é publicado em Portugal, em 1962. Único álbum do Cavaleiro Andante feito por um autor português, esta aventura de temática histórica terá sido feita uns anos antes, quando Péon ainda se encontrava em Portugal, de acordo com A. J. Ferreira.
No regresso a Portugal em 1965, trocará temporariamente a BD pelo cinema de animação e pela pintura, com uma exposição individual na Sociedade Nacional de Belas Artes de grande sucesso crítico, como o demonstram as palavras de Almada Negreiros, que o aconselhou a nunca deixar de pintar.
Em 1968, surge a versão portuguesa da revista Tintin onde as suas histórias, que se incluem nos seus melhores trabalhos de sempre, são as únicas a quebrar a hegemonia franco-belga, mas como o trabalho não era suficiente e o cinema de animação não se revelava economicamente viável, volta a partir, agora para França onde se ocupará dos desenhos da série Yataca, um sub-Tarzan, na linha de Tayat e Zama, de que desenhará uma vintena de episódios.
Acabará por voltar definitivamente a Portugal em 1974 e à BD, ressuscitando para o efeito Tomahawk Tom, o seu mais célebre personagem num álbum inédito, prejudicado por um desenho apressado e por uma péssima cor que empastela completamente o seu traço inimitável. O fracasso comercial de O regresso de Tomahawk Tom compromete outros projectos de auto-edição, impossibilitando os leitores de conhecerem as anunciadas aventuras de Sax, o Flibusteiro e do reverendo Benedict Jr... Mas Péon, que entretanto se envolveu na política, apoiando a candidatura à presidência da República do Almirante Pinheiro de Azevedo, para a qual desenhou alguns cartazes, não desiste e editará em 1976 o Vitor Péon Magazine. Esta revista, onde o autor recuperaria uma série de histórias produzidas nos anos 50 para o Mundo de Aventuras, incluindo pelo menos um episódio de Tomahawk Tom que tinha ficado por publicar, só conseguirá resistir durante três números num mercado já pouco atreito à aventura clássica.
Em Agosto de 1979 voltará ao Mundo de Aventuras para ilustrar O Rei dos Lobos, uma história escrita por Jorge Magalhães que é um dos melhores trabalhos do desenhador, que livre da pressão dos prazos apertados, que sempre condicionaram a sua obra, provou ainda ser capaz de inovar e surpreender. Publicada em formato italiano o que permite a reprodução dos desenhos num tamanho bastante próximo do original, esta lenda viking mostra um desenhador extremamente detalhado e exímio na composição e no tratamento negro dos fundos que ajudam ao clima fantástico da história, do mesmo modo que o realismo com que trata as rudes feições dos personagens as torna reais e credíveis. Nesta última fase, o seu estilo ganha um barroquismo e um pormenor que o aproxima de Burne Hogarth, autor com quem sempre partilhou o dinamismo e agitação das figuras, sempre em permanente tensão.
Se o talento do artista era já abundantemente conhecido, a sua capacidade de reflectir e de transmitir os seus conhecimentos sobre a Banda Desenhada ficaram bem patentes em História da Banda Desenhada e A Banda Desenhada como Arte, dois livrinhos notáveis pela concisão, que não consegue esconder uma grande erudição e amor à BD, editados pelo F.A.O.J., e no curso sobre BD que dará em 1980 no I.A.D.E.
A partir daqui, com excepção de algumas capas para a revista Selecções do Mundo de Aventuras, a sua carreira virar-se-á definitivamente para a BD de temática histórica e para a investigação historiográfica, realizando uma série de trabalhos de grande qualidade. São dessa fase os álbuns Gesta Heróica e A Epopeia dos Descobrimentos Portugueses (livro ilustrado que daria origem a uma colecção de cromos), trabalhos em que o estilo tão característico da fase final de Péon está ao serviço de um argumento bem documentado, onde abundam os arcaismos de linguagem.
Em 1985, pouco depois de ter sido galardoado pelo Clube Português de Banda Desenhada, Péon é acometido por uma trombose que lhe rouba a voz e o movimento da mão direita, vendo-se assim obrigado a renunciar definitivamente à BD. Acabaria por falecer em 5 de Novembro de 1991, ainda a tempo de assistir à justíssima homenagem que lhe foi prestada pelo Clube Português de Banda Desenhada, em Dezembro de 1990 no 9º Festival de Banda Desenhada de Lisboa, onde faz a sua última aparição pública.
Texto originalmente escrito em 1997, para um projecto de um História da BD Portuguesa, coordenado pelo João Paulo Cotrim, que não chegou a bom porto.Publicado pela primeira vez no BD Jornal nº 28, de Outubro de 2011, com algumas pequenas correcções sugeridas pelo Jorge Magalhães, a quem agradeço a leitura atenta.
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