domingo, 29 de outubro de 2017

Y o Último Homem 2 - Ciclos


UM HOMEM ENTRE MULHERES

Y, O Último Homem
Vol 2 – Ciclos
26 de Outubro
Argumento – Brian K. Vaughan
Desenhos –Pia Guerra e José Marzan Jr.
Por + 12,90€
As aventuras de Yorick Brown, o último homem vivo à superfície da Terra, prosseguem neste segundo volume de uma das séries mais populares da Vertigo, que chega finalmente a Portugal. Para além de mágico e artista de fugas amador, Yorick é também filho de uma congressista dos Estados Unidos, que com a morte de todos os homens, ascendeu e muito na hierarquia política de Washington, onde a antiga Secretária da Agricultura é agora a Presidente dos Estados Unidos. Uma ascensão meteórica que não é bem recebida pelas viúvas dos políticos republicanos, que reclamam para si os cargos que pertenciam aos maridos.
Mas a situação política é o menor dos problemas de Yorick, que por ser a última esperança da propagação da raça humana, se torna um alvo apetecível para os serviços secretos de Israel, a nação que, por possuir um exército misto, estava mais bem preparada para enfrentar um cenário impensável como este. Precisamente por não haver uma explicação lógica para o facto de estar vivo, Yorick e o seu macaco Ampersand, são imprescindíveis para as pesquisas de Allison Man, uma especialista de clonagem cuja investigação tanto pode estar na origem da misteriosa epidemia, como ser decisiva para impedir a extinção da raça humana.
Quando o laboratório da Dra. Mann em Boston é destruído por uma explosão, Yorick percebe que o seu sonho de se juntar à sua namorada na Austrália terá de ser adiado, pois para ajudar a Dra. Mann a recuperar o backup dos dados e amostras da sua investigação, armazenado num laboratório na Califórnia, terá de acompanhar a cientista e a Agente 355 - a operacional dos serviços secretos que lhes serve de guarda-costas - numa perigosa viagem através dos Estados Unidos. Uma viagem difícil e cheia de obstáculos, que os levará a defrontar ameaças como o grupo radical feminista,  as Filhas da Amazona, de que Hero, a irmã de Yorick, é um dos membros mais fanáticos...
Neste segundo volume, depois de uma movimentada viagem de comboio, marcada por uma paragem forçada no Ohio, Yorick vai parar por acaso na cidade de Marrisville, uma comunidade bem organizada, que parece ter encontrado o segredo para reconstruir uma vida harmoniosa em comunidade, com todos os confortos da civilização, num mundo sem homens. Mas, como veremos, esse não é o único segredo que a  cidade de Marrisville e as suas habitantes encerram...
Uma história fantástica como esta, para ser credível, necessita de um desenho realista e rigoroso, que trate com igual eficácia tanto os cenários e os objectos, como as expressões das pessoas. É exactamente o que Pia Guerra - que com Vaughan assume a co-autoria da criação da série - consegue, graças a um traço tão simples como eficaz e de grande legibilidade, bem servido pela arte-final de José Marzan Jr. e pelas cores de Pamela Rambo. Uma equipa bem oleada que, juntamente com as fantásticas ilustrações de J. G. Jones para as capas, assegura um look muito consistente para uma série absolutamente viciante.
Como a publicação dos restantes volumes de Y, o Último Homem só está prevista para 2018, os leitores vão ter de esperar mais algum tempo para saber o que irá acontecer a Yorick e às suas amigas. Da minha parte, só vos posso garantir que essa espera vai valer a pena!
Publicado originalmente no jornal Público de 21/10/2017

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Elixir da Eterna Juventude: Uma Dança no Mundo de Sérgio Godinho

SÉRGIO GODINHO, 
DE ESCRITOR DE CANÇÕES A HERÓI DE BD

O Elixir da Eterna Juventude – Uma dança no mundo de Sérgio Godinho
Quarta-feira, 25 de Outubro
Argumento – Fernando Dordio
Desenhos – Osvaldo Medina
Por + 12,90€
A relação entre a música e a Banda Desenhada é longa e tem dado resultados bastante interessantes. Basta pensar nas biografias em BD de Johnny Cash e Nick Cave, feitas pelo alemão Reihnard Kleist, ou, no caso português, na colecção BD Pop Rock, em que diferentes desenhadores tentavam uma aproximação gráfica a alguns dos grandes nomes do rock português, com resultados desiguais, mas, em alguns casos, bastante estimulantes, ou nos livros que Nuno Saraiva tem dedicado ao fado.
O próprio Sérgio Godinho já tinha visto as suas canções reinventadas por quarenta ilustradores portugueses, no livro Sérgio Godinho e as 40 Ilustrações, coordenado por Jorge Silva e João Paulo Cotrim, em que cada ilustrador criou uma imagem inspirada por uma canção do escritor de canções. Um processo levado um pouco mais longe por Nuno Saraiva, no livro Caríssimas Quarenta Canções, em que os desenhos de Saraiva entravam em diálogo com os textos de Sérgio Godinho sobre as canções da sua vida.
No caso deste Elixir da Eterna Juventude, a abordagem é diferente e Fernando Dordio e Osvaldo Medina constroem uma história de ficção inspirada nas canções de Sérgio Godinho, de que o próprio é protagonista involuntário, numa aposta inteligente da Kingpin Books numa obra que tem tudo para chegar a um público bem mais alargado do que o núcleo restrito dos leitores habituais de Banda Desenhada.
No centro da história a que Osvaldo Medina dá vida com o dinamismo e a eficácia que lhe conhecemos, está um livro, o Diário do Elixir da Eterna Juventude, do Professor Doutor Barnabé, um personagem que se já sabíamos que era diferente dos outros, aqui ficamos a saber que também tem uma carreira académica… Esse livro mágico, que outros cobiçam, funciona como um McGuffin na melhor tradição hitchcokiana, ou seja, um pretexto narrativo para justificar o percurso do herói ao longo da história. Percurso que, no caso de Sérgio Godinho, implica uma viagem por Portugal, de norte a sul, onde encontra algumas das personagens que criou… mas não só. É o caso do seu amigo Jeremias, o fora-da-lei, descendente por linhas travessas do famigerado Zé do Telhado, que tem as feições de Jorge Palma, o músico, amigo e companheiro de estrada de Sérgio Godinho e que vai ter uma importância crucial no evoluir da trama desta história fantástica, onde também há espaço para o sobrenatural.
História bem construída, cuja leitura proporcionará um prazer acrescido a quem conhecer bem as canções do Sérgio, o Elixir da Eterna Juventude é, claramente, o projecto mais ambicioso de Fernando Dordio, autor que já tinha demonstrado ser uma argumentista bastante eficaz na série Agentes do C.A.O.S, onde colaborou pela primeira vez com Osvaldo Medina. E eficácia é um termo que assenta que nem uma luva ao trabalho de Osvaldo Medina, “o homem que desenha mais rápido do que a própria sombra” e que aqui revela um apurado sentido narrativo e de composição, que ajudam a disfarçar algumas páginas mais apressadas, mas nem por isso menos legíveis, bem servidas pela cor de Joel de Souza.
Já se o Elixir da Eterna Juventude concede mesmo a eternidade a quem o bebe, ou se estava marado, ou mesmo falsificado, é algo que o leitor só irá descobrir ao ler este livro. Mas do que não restam grandes dúvidas de que, com as suas canções, Sérgio Godinho criou personagens que ficaram para a história e que, como se vê, dão uma boa história. Ao dar-lhes oportunidade de protagonizarem esta aventura ao lado do seu criador, Fernando Dordio faz uma bela homenagem a um dos vultos maiores da música portuguesa.
Publicado originalmente no jornal Público de 21/10/2017

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Y O Último Homem 1 - Um Mundo Sem homens

O ÚLTIMO HOMEM SOBRE A TERRA

Y, O Último Homem
Vol 1 – Um Mundo Sem Homens
19 de Outubro
Argumento – Brian K. Vaughan
Desenhos –Pia Guerra e José Marzan Jr.
Por + 12,90€
Depois da série Sandman e de Livros de Magia e Batman: Uma História Verdadeira na última série das Novelas Gráficas, o Público e a Levoir voltam a explorar o vastíssimo catálogo da Vertigo, a linha mais adulta e autoral da DC Comics, dando a descobrir aos leitores portugueses, durante as próximas duas semanas, os dois primeiros capítulos de uma das suas mais importantes séries de culto: Y the Last Man.
Criada por Brian K. Vaughan e por Pia Guerra, a série, que Stephen King considera como a melhor série de BD já leu, foi publicada originalmente entre Setembro de 2002 e Março de 2008 como uma maxi-série mensal de 60 números, posteriormente recolhidos em 10 volumes encadernados e explora, com minúcia e rigor, todas as possibilidades do que aconteceria à humanidade se, de repente, todos os mamíferos detentores do cromossoma Y morressem. Mas neste caso há uma excepção, a do jovem Yorick e do seu macaco Ampersand que, por razões misteriosas sobreviveram à praga que dizimou instantaneamente 48% da população global.
Esta simples premissa, digna de um episódio da série televisiva The Twilight Zone, é muitíssimo bem explorada por Brian K. Vaughan, escritor que os leitores portugueses conhecem da série de banda desenhada Saga, que a G Floy está a publicar em Portugal, e da sua participação, como argumentista e produtor da série televisiva Lost, trabalho que conseguiu precisamente porque Damon Lindelof, um dos criadores de Lost, era um grande fã de Y, O Último Homem
Para além exterminar quase metade da população, uma praga destas dimensões teria consequências imediatas devastadoras, pois só nos Estados Unidos, 95% de todos os camionistas, pilotos aéreos e capitães de navios morreriam, provocando inúmeros desastres, com a consequente perda de vidas e estragos materiais. Estragos, esses, que seriam muito mais complicados de reparar, num mundo em que 99% de todos os mecânicos, electricistas e operários da construção civil estão desaparecidos...
Como refere o próprio Brian K. Vaughan, a melhor maneira de construir uma história credível a partir de uma premissa fantástica como esta, era tentar arranjar respostas para as questões que este cenário levanta. Nas suas palavras: “gosto de pegar num conceito simples e impressionante e realmente explorá-lo até às suas conclusões mais lógicas - o que significava no caso de Y, pesquisar tudo o que poderia acontecer se removêssemos os homens da política global e agricultura e engenharia. Qual o efeito que isso teria no planeta? Por que é que teria esse efeito? Começar por fazer estas perguntas e arranjar respostas para elas, parecia-me uma óptima maneira de criar a história.
Eu adoro fazer pesquisas. Sinto que qualquer história que escreva é uma boa desculpa para aprender mais sobre o mundo. E foi muito divertido. Se esta praga vai atacar e matar todos os homens instantaneamente, quantos mulheres-piloto haverá e o que acontece com os aviões no ar? E já que estamos a falar sobre aviões... e os submarinos? Existem mulheres nos submarinos? Toda porta abriu outra porta, e acabei de cair num buraco sem fundo. Foi um ano interessante de pesquisas exaustivas sobre questões como essas antes mesmo de começar a escrever.”
É neste cenário tão complexo como fascinante que acompanhamos o percurso de Yorick, que apenas quer ir ter com a namorada na Austrália, mas que, quer queira quer não, é a última esperança da humanidade e uma peça valiosíssima no jogo de xadrez pelo domínio deste novo mundo sem homens.
Publicado originalmente no jornal Público em 14/120/2017

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

A Vida de Che em BD, nos 50 Anos da sua Morte

A Vida de Che
08 de Outubro
Argumento –Hector Germán Oesterheld
Desenhos – Alberto Breccia e Enrique Breccia
Por + 11,90€

A PAIXÃO SEGUNDO CHE GUEVARA

Há livros que, pelas circunstâncias que rodeiam a sua história, acabam por adquirir uma carga mítica. Títulos mais falados do que efectivamente lidos. Obras em que a lenda se sobrepõe à história e que, à sua maneira, fazem também história. É o caso desta biografia de Ernesto Che Guevara, ícone da revolução cubana, escrita por Hector German Oesterheld e ilustrada por Alberto e Enrique Breccia, três expoentes máximos da BD argentina e mundial, que conhece finalmente uma edição portuguesa, no preciso momento em que se completam 50 anos sobre a morte do Che, a 9 de Outubro de 1967, quando a sua tentativa de estender a revolução cubana a toda a América Latina, foi parada pelas balas do exército boliviano.
Apenas três meses após a morte de Che Guevara, em Janeiro de 1968, chegava às livrarias argentinas a Vida del Che, a biografia em banda desenhada de Ernesto Guevara de la Serna, o médico argentino que entraria para a história como Che Guevara, o líder revolucionário que ao lado de Fidel Castro, chefiou a revolução cubana. A ideia, plena de oportunidade, partiu do editor Jorge Alvarez, responsável por uma das principais editoras argentinas da época, que, para além de publicar diversos escritores argentinos, foi o primeiro a editar em livro as tiras da Mafalda, de Quino. Poucas semanas após a morte do Che, Alvarez propôs a Oesterheld e a Alberto Breccia – que o magnífico Mort Cinder, que a Levoir publicou na primeira série dedicada à Novela Gráfica tinha mostrado serem  os maiores autores argentinos da época - que contassem a vida (e a morte) de Che Guevara em Banda Desenhada, sugerindo-lhes que o fizessem de forma anónima, tendo em conta a volátil situação política da Argentina de então. Oesterheld, que nunca foi homem de esconder as suas convicções e ideais, respondeu assim ao editor: “uma história com um personagem como o Che não merece ser feita às escondidas. Por isso, não só quero assinar o argumento, como quero o meu nome bem visível na capa”. Face à urgência de ter o livro pronto o mais rápido possível, Alberto Breccia dividiu o trabalho com o seu filho Enrique que, com 22 anos, se estreou em livro precisamente com esta biografia do Che, assinando os dois o desenho.
Apesar do sucesso comercial da edição, com 60.000 exemplares vendidos em poucas semanas, os tempos não se avizinhavam fáceis. Pouco depois do jornal diário La Nación ter alertado num editorial para o perigo da existência de uma BD sobre um personagem revolucionário como o Che, a sede da editora foi invadida e o que restava da edição foi confiscada, juntamente com as pranchas originais dos Breccia, que foram destruídas. Em 1973, com a chegada ao poder da junta militar, o livro é oficialmente proibido e em 1977, o próprio Oesterheld juntamente com as suas quatro filhas, engrossa a vasta lista dos “desaparecidos”.
A Vida do Che só veria a luz do dia novamente em meados da década de 80, em Espanha, numa luxuosa edição da editora basca Ikusager, que durante vários anos, foi a única edição disponível dessa obra. E é a partir daqui que a lenda se vai sobrepondo à história. Primeiro, através da ideia de que a morte de Oesterheld se deveu a ter escrito A Vida do Che. Uma ideia difundida pelo jornalista e escritor italiano Alberto Ongaro - que, com Hugo Pratt, fez parte do famoso Grupo de Veneza, um punhado de autores italianos que foi trabalhar para a Argentina nos anos 50 - e que em 1979, ao tentar descobrir o paradeiro do escritor, encontrou alguém que lhe disse que Oesterheld tinha sido morto por ter escrito “a mais bela biografia de Che Guevara jamais feita”. Depois, com a referência, na edição da Ikusager, de que o livro tinha sido impresso tendo por base um exemplar que o próprio Alberto Breccia teria enterrado no seu quintal. 
Mesmo que a biografia do Che tenha ajudado a pôr Oesterheld debaixo do radar dos militares, foi a sua participação activa na guerrilha Montonera, um movimento rebelde de esquerda, onde também militavam as suas quatro filhas, que fez com que ele e sua família se tornassem um alvo fácil para a Junta Militar, acabando por engrossar a lista de perto de trinta mil “desaparecidos” que mancham com o seu sangue essa página negra da história argentina.
Quanto à lenda do livro enterrado no quintal, o próprio Enrique Breccia não lhe dá grande crédito dizendo: “É verdade que o livro foi confiscado poucos meses depois da sua saída, mas através de Jorge Alvarez ficámos a saber que se vendeu muito bem e que obteve uma boa repercussão geral. Mas ninguém nos perseguiu ou incomodou. Nenhum militar apareceu em minha casa, ou em casa do meu pai. E essa história do meu pai enterrar um exemplar no jardim é algo que desconheço, mas é uma questão de senso comum: porque é que seria preciso enterrar um único exemplar? Os originais foram destruídos, mas não os milhares de exemplares que se venderam, que são os que se continuam a utilizar para as sucessivas reedições do livro. Por outro lado, as nossas vidas nunca correram nenhum perigo, excepto o de morrermos de fome devido à miséria que recebíamos pelo nosso trabalho.” 
A ideia inicial de Oesterheld era fazer duas histórias separadas, com o “Viejo” a contar a vida de Ché, enquanto o seu filho Enrique se ocupava da sua morte na Bolívia, acabando finalmente por optar por uma alternância dos capítulos que dá outra força à narrativa, ao colocar em confronto o homem e o mito em que o Che se tornou ao dar a vida pelo seu ideal revolucionário. Espartilhado pelo peso da documentação e da muita informação a transmitir, Alberto Breccia teve muito menos autonomia do que o seu filho Enrique, que recebeu um argumento apenas com os diálogos e nada mais, o que lhe permitia fazer “aquilo que quisesse”. Mas a verdade é que tanto pai como filho, que tem aqui uma estreia absolutamente fulgurante na BD, dão o melhor de si. O “viejo” Alberto conciliando o rigor quase fotográfico exigido pela documentação, com um uso de colagens e recortes extremamente inovador, enquanto o seu filho Enrique levava ainda mais longe o alto contraste do preto e branco usado pelo seu pai em Mort Cinder, colocando-o ao serviço de um traço expressionista que acentua a dimensão crística do martírio do Che, bem evidente nas últimas páginas, em que a imagem do guerrilheiro morto se aproxima de forma evidente da iconografia do Cristo crucificado.
O resultado, independentemente das questões ideológicas, é um livro intemporal. Um verdadeiro clássico que, tal como Mort Cinder, mantém toda a sua força e modernidade cinquenta anos após a sua publicação inicial. 

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Novela Gráfica III 15 - O Idiota


DAS PALAVRAS DE DOSTOIEVSKI 
AOS DESENHOS DE ANDRÉ DINIZ

Novela Gráfica III – Vol. 15
O Idiota
Sexta-feira, 06 de Outubro
Argumento – Dostoievski e André Diniz
Desenho – André Diniz
Por + 9,99€
Com a publicação na próxima sexta-feira, em estreia mundial, da adaptação de O Idiota, de Fiodor Dostoievski, feita por André Diniz, chega ao fim esta terceira série da colecção Novela Gráfica. E se os autores espanhóis dominaram esta terceira série, o volume final vem mostrar que a Banda Desenhada não tem fronteiras, nem espaciais nem temporais, pois O Idiota é uma adaptação de um romance de um escritor russo do século XIX, feita no século XXI em Portugal por um autor brasileiro.
Se a adaptação à banda desenhada de textos literários é um género com grande tradição, tanto em Portugal como no resto do mundo, não deixa de ser uma aposta arriscada, face às especificidades da linguagem da BD, que são bem diferentes das da literatura. Por isso, a excessiva reverência pelo texto literário original pode levar a um resultado que está mais próximo do texto ilustrado do que da verdadeira banda desenhada. A adaptação de Os Lusíadas, de Luís de Camões, que José Ruy fez nos anos 80, ou o bem mais recente As Aventuras de Fernando Pessoa, Escritor Universal, de Miguel Moreira e Catarina Verdier, são dois bons exemplos de obras que sofrem deste problema, que afecta de forma notória a fluidez da leitura.
Por ter um domínio exímio da linguagem da banda desenhada, André Diniz, um dos mais premiados autores brasileiros da actualidade, que reside em Portugal desde 2016, opta por uma aproximação muito mais arriscada ao romance de Dostoievski, abdicando completamente do texto do escritor russo, para contar a história do Píncipe Liev Michkin recorrendo apenas à arte sequencial.
Este ambicioso projecto de transformar um livro de mais de 700 páginas numa Banda Desenhada maioritariamente muda (das mais de 400 páginas de O Idiota, pouco menos de 30 contém curtos diálogos) teve um parto demorado, com algumas falsas partidas, que não impediram o autor de levar a sua missão a bom termo.
Já em 2012, numa entrevista ao site Omelete.com., André Diniz falava sobre o projecto de adaptação de O Idiota, referindo: “Eu me apaixonei pelo livro, embora ele seja bem verborrágico em muitos momentos, e decidi fazer uma adaptação diferente. A HQ vai no caminho oposto daquele no qual a obra é escrita: serão mais de 300 páginas sem texto, com cores expressionistas e cenários minimalistas. Foi a forma que eu encontrei de me aproximar daquela essência do personagem que tanto me fascinou”
Dessa primeira versão, resultaram pouco mais de 100 páginas, finalizadas e coloridas por Marcela Mannheimer, com quem o autor já tinha colaborado em Negrinho do Pastoreio, que acabaram por ser descartadas. Houve ainda uma versão intermédia, já a preto e branco, que também ficou pelo caminho até que, em Maio de 2016, numa altura em que André Diniz já estava a morar em Portugal, arrancou com a versão final, em que as cores expressionistas dão lugar a um preto e branco contrastado, com o cinzento como segunda cor, a dar textura e profundidade aos desenhos, num registo bastante original que, apesar de ser totalmente digital, evoca a xilogravura.
Tendo desenhado em menos de um ano as mais de 400 páginas que compõem este livro, que então era inteiramente sem palavras, André Diniz não se importou, e bem, de alterar ligeiramente as regras do jogo, introduzindo, com grande parcimónia e de forma judiciosa alguns (poucos) diálogos, que possibilitam ao leitor menos familiarizado com o romance do Dostoievski uma mais fácil compreensão da complexa história imaginada pelo escritor russo.
O resultado é uma adaptação, tão original como conseguida, de um clássico da literatura mundial, publicada em Portugal antes de sair no Brasil e em França, que vem provar que é perfeitamente possível fazer “literatura desenhada” - termo que Hugo Pratt preferia para designar a BD- contando com a força das imagens e com a sua articulação sequencial, para contar uma história (quase) sem palavras.
Publicado originalmente no jornal Público de 30/09/2017