segunda-feira, 9 de outubro de 2017

A Vida de Che em BD, nos 50 Anos da sua Morte

A Vida de Che
08 de Outubro
Argumento –Hector Germán Oesterheld
Desenhos – Alberto Breccia e Enrique Breccia
Por + 11,90€

A PAIXÃO SEGUNDO CHE GUEVARA

Há livros que, pelas circunstâncias que rodeiam a sua história, acabam por adquirir uma carga mítica. Títulos mais falados do que efectivamente lidos. Obras em que a lenda se sobrepõe à história e que, à sua maneira, fazem também história. É o caso desta biografia de Ernesto Che Guevara, ícone da revolução cubana, escrita por Hector German Oesterheld e ilustrada por Alberto e Enrique Breccia, três expoentes máximos da BD argentina e mundial, que conhece finalmente uma edição portuguesa, no preciso momento em que se completam 50 anos sobre a morte do Che, a 9 de Outubro de 1967, quando a sua tentativa de estender a revolução cubana a toda a América Latina, foi parada pelas balas do exército boliviano.
Apenas três meses após a morte de Che Guevara, em Janeiro de 1968, chegava às livrarias argentinas a Vida del Che, a biografia em banda desenhada de Ernesto Guevara de la Serna, o médico argentino que entraria para a história como Che Guevara, o líder revolucionário que ao lado de Fidel Castro, chefiou a revolução cubana. A ideia, plena de oportunidade, partiu do editor Jorge Alvarez, responsável por uma das principais editoras argentinas da época, que, para além de publicar diversos escritores argentinos, foi o primeiro a editar em livro as tiras da Mafalda, de Quino. Poucas semanas após a morte do Che, Alvarez propôs a Oesterheld e a Alberto Breccia – que o magnífico Mort Cinder, que a Levoir publicou na primeira série dedicada à Novela Gráfica tinha mostrado serem  os maiores autores argentinos da época - que contassem a vida (e a morte) de Che Guevara em Banda Desenhada, sugerindo-lhes que o fizessem de forma anónima, tendo em conta a volátil situação política da Argentina de então. Oesterheld, que nunca foi homem de esconder as suas convicções e ideais, respondeu assim ao editor: “uma história com um personagem como o Che não merece ser feita às escondidas. Por isso, não só quero assinar o argumento, como quero o meu nome bem visível na capa”. Face à urgência de ter o livro pronto o mais rápido possível, Alberto Breccia dividiu o trabalho com o seu filho Enrique que, com 22 anos, se estreou em livro precisamente com esta biografia do Che, assinando os dois o desenho.
Apesar do sucesso comercial da edição, com 60.000 exemplares vendidos em poucas semanas, os tempos não se avizinhavam fáceis. Pouco depois do jornal diário La Nación ter alertado num editorial para o perigo da existência de uma BD sobre um personagem revolucionário como o Che, a sede da editora foi invadida e o que restava da edição foi confiscada, juntamente com as pranchas originais dos Breccia, que foram destruídas. Em 1973, com a chegada ao poder da junta militar, o livro é oficialmente proibido e em 1977, o próprio Oesterheld juntamente com as suas quatro filhas, engrossa a vasta lista dos “desaparecidos”.
A Vida do Che só veria a luz do dia novamente em meados da década de 80, em Espanha, numa luxuosa edição da editora basca Ikusager, que durante vários anos, foi a única edição disponível dessa obra. E é a partir daqui que a lenda se vai sobrepondo à história. Primeiro, através da ideia de que a morte de Oesterheld se deveu a ter escrito A Vida do Che. Uma ideia difundida pelo jornalista e escritor italiano Alberto Ongaro - que, com Hugo Pratt, fez parte do famoso Grupo de Veneza, um punhado de autores italianos que foi trabalhar para a Argentina nos anos 50 - e que em 1979, ao tentar descobrir o paradeiro do escritor, encontrou alguém que lhe disse que Oesterheld tinha sido morto por ter escrito “a mais bela biografia de Che Guevara jamais feita”. Depois, com a referência, na edição da Ikusager, de que o livro tinha sido impresso tendo por base um exemplar que o próprio Alberto Breccia teria enterrado no seu quintal. 
Mesmo que a biografia do Che tenha ajudado a pôr Oesterheld debaixo do radar dos militares, foi a sua participação activa na guerrilha Montonera, um movimento rebelde de esquerda, onde também militavam as suas quatro filhas, que fez com que ele e sua família se tornassem um alvo fácil para a Junta Militar, acabando por engrossar a lista de perto de trinta mil “desaparecidos” que mancham com o seu sangue essa página negra da história argentina.
Quanto à lenda do livro enterrado no quintal, o próprio Enrique Breccia não lhe dá grande crédito dizendo: “É verdade que o livro foi confiscado poucos meses depois da sua saída, mas através de Jorge Alvarez ficámos a saber que se vendeu muito bem e que obteve uma boa repercussão geral. Mas ninguém nos perseguiu ou incomodou. Nenhum militar apareceu em minha casa, ou em casa do meu pai. E essa história do meu pai enterrar um exemplar no jardim é algo que desconheço, mas é uma questão de senso comum: porque é que seria preciso enterrar um único exemplar? Os originais foram destruídos, mas não os milhares de exemplares que se venderam, que são os que se continuam a utilizar para as sucessivas reedições do livro. Por outro lado, as nossas vidas nunca correram nenhum perigo, excepto o de morrermos de fome devido à miséria que recebíamos pelo nosso trabalho.” 
A ideia inicial de Oesterheld era fazer duas histórias separadas, com o “Viejo” a contar a vida de Ché, enquanto o seu filho Enrique se ocupava da sua morte na Bolívia, acabando finalmente por optar por uma alternância dos capítulos que dá outra força à narrativa, ao colocar em confronto o homem e o mito em que o Che se tornou ao dar a vida pelo seu ideal revolucionário. Espartilhado pelo peso da documentação e da muita informação a transmitir, Alberto Breccia teve muito menos autonomia do que o seu filho Enrique, que recebeu um argumento apenas com os diálogos e nada mais, o que lhe permitia fazer “aquilo que quisesse”. Mas a verdade é que tanto pai como filho, que tem aqui uma estreia absolutamente fulgurante na BD, dão o melhor de si. O “viejo” Alberto conciliando o rigor quase fotográfico exigido pela documentação, com um uso de colagens e recortes extremamente inovador, enquanto o seu filho Enrique levava ainda mais longe o alto contraste do preto e branco usado pelo seu pai em Mort Cinder, colocando-o ao serviço de um traço expressionista que acentua a dimensão crística do martírio do Che, bem evidente nas últimas páginas, em que a imagem do guerrilheiro morto se aproxima de forma evidente da iconografia do Cristo crucificado.
O resultado, independentemente das questões ideológicas, é um livro intemporal. Um verdadeiro clássico que, tal como Mort Cinder, mantém toda a sua força e modernidade cinquenta anos após a sua publicação inicial. 

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