domingo, 2 de outubro de 2016

Sandman - Apresentação da nova colecção da Levoir

Mal acabou a série II da colecção Novela Gráfica, eis que surge mais uma colecção Público/Levoir, neste caso dedicado a Sandman, a série de culto de Neil Gaiman, que finalmente vai ser publicado na integra em Portugal. Para a semana, aqui deixarei o texto sobre o 1º volume, mas antes disso, aqui fica o texto de apresentação da colecção e do seu autor.

BEM-VINDO À TERRA DO SONHO, O REINO DE SANDMAN


Para aqueles que, depois de duas séries da colecção Novela Gráfica, ainda têm dúvidas de que a Banda Desenhada possa atingir a qualidade e complexidade da literatura, a série Sandman que o Público e a Levoir vão finalmente publicar na íntegra - depois de uma primeira tentativa, por outra editora, que se ficou apenas pela publicação do primeiro e do terceiro volumes – deve ser suficiente para dissipar de vez essas dúvidas.
Desde os primórdios da Banda Desenhada, com o Little Nemo de Winsor McCkay que o mundo dos Sonhos se revelou um palco privilegiado para a imaginação dos autores de BD. Mas ninguém soube explorar tão bem as infinitas possibilidades do mundo dos sonhos como o britânico Neil Gaiman nesta série.
Pegando num obscuro personagem da DC Comics, a editora de Batman e do Super-Homem, criado nos anos 40 e recriado posteriormente por Jack Kirby e, partindo do universo dos super-heróis e dos contos de terror para muito rapidamente os transcender, Gaiman soube transformar uma série desconhecida, inicialmente ilustrada por desenhadores de segunda linha, numa obra-prima da BD, verdadeiro exemplo de como é possível contar histórias interessantes e bem escritas, em que a temática fantástica não perturba a profunda humanidade das personagens.
O Sandman que Neil Gaiman criou em 1989, a partir de um convite da editora da DC, Karen Berger, e a que deu vida ao longo de mais de 8 anos e 75 números mensais e um número especial que durou a revista, nada tem a ver com o Sandman de Kirby, mesmo que o escritor homenageie as diferentes incarnações da personagem, introduzindo-as, de forma tão hábil como eficaz, na história de Morfeu. O Senhor dos Sonhos é, nas palavras do seu criador, “uma personificação antropomórfica, quase uma ideia”, uma entidade mítica mais poderosa do que os Deuses (que morrem quando os homens deixam de acreditar neles) cujas aventuras têm como palco o Mundo dos Sonhos, onde reina.
Publicada numa editora especializada em super-heróis, por um escritor que sempre abraçou o fantástico nas suas mais variadas formas, Sandman mistura fantasia, mitologia e literatura, numa série protagonizada por criaturas fantásticas, mas que têm qualidades e defeitos muito próximos dos seres humanos cuja vida controlam e influenciam. A série, como refere Neil Gaiman no prefácio à primeira edição portuguesa, é: “um conto acerca dos sonhos, uma história acerca das histórias. É acerca do sentido dos sonhos, da razão pela qual precisamos deles e deles talvez precisarem de nós. E é acerca do Rei dos Sonhos, que é chamado por muitos nomes durante a história.”
E a história começa precisamente com Morfeu, o Rei dos Sonhos, a conseguir libertar-se da redoma mágica onde esteve aprisionado durante décadas. Mas o Mestre dos Sonhos terá de percorrer um árduo caminho para recuperar os símbolos dispersos do seu poder e restaurar o esplendor perdido do Domínio do Sonho e acabará por compreender que as decisões que tomar ao longo desse caminho terão custos elevados, que terá forçosamente de pagar.
Terminada a história de Sandman em 1996, após mais de duas mil páginas de BD, e um total de 26 Prémios Eisner, incluindo 3 de Melhor Série Mensal e 4 de Melhor Argumentista, Gaiman dedicou-se a outros projectos mas, ocasionalmente, acaba por voltar ao Reino dos Sonhos. Foi o que aconteceu com The Dream Hunters, um conto de Sandman ambientado no Japão medieval, ilustrado por Yoshitaka Amano (responsável pela concepção visual do jogo Final Fantasy), com Endless Nights, em que os membros da família dos Eternos são desenhados por grandes nomes da BD mundial, como Milo Manara e Miguelanxo Prado e, mais recentemente com Sandman: Overture, uma história maravilhosamente ilustrada por J. H. Williams III, que funciona simultaneamente como prólogo e epílogo da série e explica como é que Morfeu foi parar na situação de prisioneiro de um grupo de ocultistas ingleses, em que o encontramos no começo da série. Projectos paralelos, que talvez possamos ver um dia editados em Portugal, se o interesse dos leitores assim o justificar.
Mas o que é absolutamente garantido é a publicação integral dos 10 volumes da série principal (que serão 11 na versão portuguesa, já que o volume 9 da edição original será desdobrado em dois, por questões de equilíbrio no número de páginas de cada volume), que chega às bancas e quiosques nacionais já no próximo dia 6 de Outubro. Por isso, aqui fica o convite para viajarem com Morfeu até à Terra do Sonho e descobrirem uma das melhores séries de BD de todos os tempos. Com um guia como Neil Gaiman e as dezenas de artistas que dão vida e cor à sua imaginação, esta vai ser certamente uma viagem inesquecível.

OS ETERNOS E OUTRAS CRIATURAS DO SONHO

Embora dê nome à série, Morfeu, o Oneiromante, Mestre do Sonho, é apenas um de uma vasta galeria de personagens criadas por Neil Gaiman, a partir da mitologia clássica, da literatura, do panteão da editora DC, ou da sua própria imaginação. E, naturalmente o destaque maior vai para a família de Morfeu, os Eternos. Sete entidades que já existiam antes da humanidade sonhar com os Deuses e continuarão a existir depois de o último Deus morrer. Estes sete irmãos, por ordem de idade, são a corporização de conceitos, sentimentos e ideais como o Destino, a Morte (Death, no original) , o Sonho (Dream, no original), a Destruição, o Desejo, o Desespero e o Delírio. Depois do Sonho (Morfeu), o primeiro Eterno a entrar em cena é a Morte, a sua irmã mais velha, a quem Gaiman e os desenhadores que com ele trabalharam deram uma aparência inspirada na cantora Siouxsie Sioux, dos Siouxsie and the Banshees, cujo estilo e indumentária serviram parcialmente de modelo aos góticos, na mesma época em que se publicaram também os primeiros romances de vampiros da Anne Rice. Também por ir de encontro ao Zeitgeist da época, a Morte tornou-se a mais popular personagem da série e a primeira a protagonizar outras histórias, nas mini-séries The High Cost of Living e The Time of Your Life. Os restantes Eternos vão sendo introduzidos lentamente na trama, com Destruição a ser o ultimo a ser apresentado aos leitores.
Interagindo com os Eternos, encontramos personagens mitológicas, como a musa Calíope, com quem Morfeu, tem um filho, Orfeu, cuja trágica e infrutífera descida aos infernos para salvar a sua amada Eurídice, é um dos episódios mais célebres da mitologia clássica, que Gaiman recria na BD.
É também no Inferno que encontramos outra personagem mitológica e literária, que Gaiman vai reinventar: Lúcifer, A Estrela-da-Manhã, o Anjo Caído do poema de Milton que reina nos infernos. Um Lúcifer que, na versão de Gaiman, farto da vida que levava, decide abandonar o Reino das Trevas e gozar a eternidade no mundo da superfície, na companhia dos mortais, vivendo diversas aventuras numa série paralela a Sandman, escrita por Mike Carrey, com a bênção de Gaiman e cujo sucesso fez com que tenha sido recentemente adaptada à televisão.
Mas, para além de outras personagens mitológicas, como Caín e Abel, cuja presença já era recorrente no Universo DC, graças à série House of Secrets, ou do Coríntio, o mais terrível dos pesadelos criado por Morfeu, com dentes no lugar dos olhos, a série vive muito da interacção destas criaturas fantásticas com os humanos.
E aqui, dois humanos se destacam. O primeiro é Hob Gadling, o homem que não queria morrer e a quem Morfeu concede esse dom, para que se possam encontrar de cem em cem anos no mesmo bar. O outro humano em destaque, também obteve a vida eterna, não para si, mas para a sua obra. Falo de William Shakespeare, que em troca da imortalidade das suas criações literárias, se comprometeu a escrever duas peças para Morfeu; Sonho de uma Noite de Verão e A Tempestade. Peças que servem de base a dois dos mais famosos capítulos de Sandman, ilustrados por Charles Vess.

Neil Gaiman
Nascido a 10 de Novembro de 1960, Neil Gaiman é um dos mais importantes nomes da BD de língua inglesa, género em que se estreou em 1987, depois de uma curta carreira como jornalista musical, com Violent Cases, uma novela gráfica feita em colaboração com o seu amigo Dave McKean, com quem voltaria a colaborar em diversas ocasiões, mas foi a série Sandman que o ajudou permitiu atingir o estatuto impar que hoje detém no mundo da Banda Desenhada. Mas a actividade de Gaiman como escritor não se limita à BD, pois o autor inglês tendo espalhado igualmente o seu talento pela literatura, pelo cinema e pela televisão.
Escritor com presença assídua nas listas de Best Sellers do jornal New York Times, Gaiman escreveu contos, romances, livros infantis e ensaios, que lhe permitiram tornar-se num dos mais premiados escritores de sempre, vencendo quatro prémios Hugo, dois Nebulas, seis Locus, quatro Bram Stoker, as medalhas Newberry and Carnegie e muitas outras distinções importantes. Sendo um escritor eminentemente visual; Gaiman escreveu muitas vezes com a transposição para a imagem em mente não só na BD, mas também no cinema e na televisão. O criador britânico viu várias obras suas adaptadas ao cinema (como Coraline e Stardust), ou à televisão (como Neverwhere e American Gods). Além de participar na adaptação dos seus textos a outros meios, Gaiman adaptou os diálogos da versão inglesa do filme Princesa Mononoke, de Myiazaki; escreveu, a meias com Roger Avary (Pulp Fiction) o argumento do filme Beowulf e, com o seu amigo Dave McKean como director, escreveu o guião de Mirror Mask, para os estúdios de Jim Henson, o criador dos Marretas; para além de ter escrito e realizado uma curta-metragem chamada A Short Film About John Bolton, em que transforma o seu amigo e colaborador John Bolton numa personagem de ficção.



Dave McKean
Nascido em Maindenhead, Inglaterra, em 1963, Dave McKean é um extraordinário criador de imagens, um designer de nível mundial, conhecido pela forma harmoniosa (e talentosa) como mistura desenho, fotografia, pintura, colagens e imagens digitais, em ilustrações ou em Banda Desenhada, género pelo qual é mais conhecido em Portugal. Apesar da sua formação em Belas-Artes, o seu principal interesse sempre foi contar histórias e a Banda Desenhada revelou-se o meio ideal para o fazer. Conforme ele próprio confessa: “adoro o suporte (a BD). Adoro contar histórias. Adoro arte narrativa. Nunca me interessei muito em pintar para expor nas galerias de arte: Acima de tudo, o que eu gosto é de contar histórias. E mesmo nas ilustrações isoladas tento sempre que elas contenham uma história. Sempre adorei o cinema, mas acabei por fazer desenhos, pinturas e fotografias. E se juntarmos a arte com a narrativa temos Banda Desenhada. Sempre li BD desde miúdo e à medida que cresci e entrei nas Belas-Artes, continuei a fazê-lo.”

McKean é responsável pelo design e pela totalidade das capas da série Sandman, seja das revistas mensais, seja das várias edições encadernadas, criando uma imagem gráfica extremamente inovadora e imediatamente reconhecível, que rompia com as convenções da época, sendo o primeiro comic book mensal em que, por regra, o protagonista não aparece nas capas, afirmando-se como um elemento distintivo da série. Magníficas ilustrações, em que o design se sobrepõe ao desenho, as capas de Sandman são um exemplo da criatividade e da versatilidade de McKean, que adapta o seu registo, criando um estilo e uma abordagem distinta para cada arco de história, utilizando para isso as mais variadas técnicas artísticas.
Textos publicados originalmente no jornal Público de 01/10/2016

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