quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Evocando Bernie Wrightson


Como já tive ocasião de referir aqui, no nº 22 da revista Bang!, que chegou às lojas FNAC em Julho, tive oportunidade de homenagear Bernie Wrightson, o mestre do terror falecido a 18 de Março.
Aqui vos deixo o texto que publiquei na Bang!, com uma série de ilustrações que acabaram por não entrar na revista. Boa leitura!

EVOCANDO BERNIE WRIGHTSON

No passado dia 18 de Março, faleceu, vítima de um tumor cerebral, o desenhador americano Bernie Wrightson, co-criador de Swamp Thing, o Monstro do Pântano, entre muitas outras coisas. Apesar de, como infelizmente é habitual em Portugal, não haver praticamente nada deste autor publicado em edição nacional, com a excepção de alguns episódios de Swamp Thing publicados nos anos 80 no Mundo de Aventuras, isso em nada diminui a importância do seu trabalho, dividido entre a Banda Desenhada e a ilustração, com ligações à literatura e ao cinema. Um trabalho fantástico e de grande impacto visual, muito centrado no terror e no fantástico, que este artigo procura dar a descobrir aos leitores da revista Bang!

AS RAÍZES DE UMA CARREIRA

Nascido em 1948, na semana de Halloween, em Baltimore, Mariland, na mesma cidade onde nasceu o escritor Edgar Alan Poe, não admira que Wrightson se tenha tornado, também ele, um Mestre do Terror. A sua atracção pelo género fantástico veio desde cedo, e foi alimentada pelas revistas de terror da editora EC Comics e por programas radiofónicos, como The Lights Out, que encenava, em versão de teatro radiofónico, pequenos contos de terror na linha dos publicados na revista Tales From the Crypt, da EC Comics, que o pequeno Bernie lia às escondidas.
Com o fecho das revistas de terror da EC, provocado pela instauração do Comics Code, um código de autocensura que vinha impor restrições concretas às publicações de Banda Desenhada, Wrightson só voltaria a ter oportunidade de ler histórias de terror em BD em meados dos anos 60, quando o editor James Warren lança a revista Creepy, que recuperava a tradição das histórias de terror da EC Comics. Dono de um império editorial iniciado em 1958 com a revista Famous Monsters of Filmland, dedicada ao cinema de terror, em que a BD estava ausente, Warren estreia-se na BD em 1964, com o primeiro número da revista Creepy, uma publicação a preto e branco em formato magazine - ligeiramente superior ao tradicional formato comic book e, por isso mesmo, livre das restrições do Comics Code, que se aplicava apenas às publicações em formato comic book - que reunia artistas do calibre de um Frank Frazetta, Al Williamson, Angelo Torres e Gray Morrow, ilustrando argumentos de escritores como Archie Goodwin e Bruce Jones.

E foi precisamente nas páginas do nº 9 da revista Creepy que o jovem Bernie Wrightson se estreou, com uma ilustração publicada no correio dos leitores em 1966, ainda antes de começar a colaborar como ilustrador no jornal The Baltimore Sun. Mas o acontecimento que mudou a sua vida ocorreu um ano depois, em 1967. Foi a World Science Fiction Convention, em Nova Iorque, que tinha Hall Foster e Frank Frazetta como convidados e onde Bernie conheceu Al Williamson (um dos grandes desenhadores da EC), Dick Giordano (desenhador e editor da DC Comics) e dois jovens autores que se tornariam seus grandes amigos: Jeffrey Jones e Michael Kaluta. Através deles, Wrightson conheceu Carmine Infantino, o director editorial da DC, que gostou do trabalho dele e o convidou a colaborar na revista House of Secrets, uma publicação antológica que recolhia histórias de fantasia e policiais, mas que os editores pretendiam encaminhar mais para o registo do terror.
Foi para o nº 92 dessa revista que Wrightson, que entretanto já estava a morar em Nova Iorque, desenhou Swamp Thing, uma história de oito páginas, escrita por Len Wein. Wrightson, que teve apenas uma semana para desenhar a história,  teve de recorrer bastante a referências fotográficas (com Jeffrey Jones a tirar as fotos e a sua mulher Louise, Mike Kaluta e o próprio Wrightson a servirem como modelos) e precisou ainda da ajuda de Jones no desenho e na passagem a tinta de algumas páginas, para acabar a história a tempo. Embora não seja dos melhores trabalhos de Wrightson, longe disso, a história teve um sucesso incrível e nesse mês a House of Secrets foi o título da DC mais vendido, suplantando as revistas do Batman e do Superman.

Perante tal sucesso, não admira que a editora tenha decidido explorar o filão e, cerca de um ano depois, em 1972, o Monstro do Pântano regressava finalmente numa nova encarnação contemporânea (a história original passava-se no século XIX) como cabeça de cartaz de uma nova revista mensal, escrita por Wein e desenhada por Wrightson. Ao longo de dez números, publicados a cada dois meses, os dois criadores exploraram os diferentes nichos do terror literário e cinematográfico e houve ainda espaço para um memorável encontro entre o Batman e o Monstro do Pântano. Até que Wrightson se fartou e decidiu abandonar a série, sendo seguido três números depois por Len Wein, que só voltaria à série como editor, quase dez anos depois, sendo então responsável pela escolha de um jovem escritor inglês chamado… Alan Moore, para argumentista. Mas isso já é uma outra história…


A ÉPOCA WARREN

Uma das razões que levou Wrightson a abandonar a revista do Monstro do Pântano no auge da sua popularidade, para além de um certo cansaço criativo, foi a desilusão do desenhador orgulhoso do seu trabalho, ao ver as suas histórias mal impressas, com uma cor empastelada que escondia os detalhes do seu traço pormenorizado. Daí que tenha aceitado imediatamente o convite do editor James Warren para colaborar nas revistas Creeepy e Eerie, da Warren.
Aí, para além de ver o seu trabalho publicado a preto e branco, em revistas muito bem impressas, num formato maior do que o dos comics tradicionais, Wrightson foi receber 110 dólares por página, bem acima dos 65 dólares que recebia na DC, podendo ainda recuperar os seus desenhos originais, algo que os contratos da DC e Marvel ainda não contemplavam. Foi nestas condições, rodeado de alguns dos desenhadores que mais admirava, como All Williamson, Frank Frazetta, Richard Corben e Carmine Infantino, cujos desenhos passou a tinta em algumas histórias, que Wrightson assinou alguns dos seus melhores trabalhos, entre 1974 e 1982, seja adaptando clássicos da literatura como The Black Cat de Edgar Alan Poe, ou Cool Air, de Lovecraft, seja ilustrando argumentos de Bill Dubay e Bruce Jones, como em Jenifer, uma história memorável que seria adaptada à televisão por Dario Argento, para a série Master of Horror.


FRANKENSTEIN E O THE STUDIO

Entre a dúzia de histórias que desenhou para a Warren, está The Muck Monster, uma das raras histórias que também escreveu e que seria publicada no nº 68 da revista Eerie, numa versão a cores contra a vontade do próprio Wrightson. Para além do extraordinário trabalho gráfico de Wrightson, esta variação sobre a história do Dr. Frankenstein contada na perspectiva do monstro, pode ser vista como um ensaio para o trabalho da sua vida, as ilustrações para o Frankenstein de Mary W. Shelley. Quase cinquenta ilustrações, realizadas ao longo de sete anos, que o próprio autor considera muito justamente como o seu melhor trabalho de sempre. Com um estilo evocativo da gravura, influenciado pelas ilustrações de Franklin Booth, as ilustrações de Wrightson para o Frankenstein são um assombro de detalhe, qualidade de composição e dramatismo. Imagens tão belas como espectaculares, que conquistaram coleccionadores como os cineastas Guillermo Del Toro e George Lucas, que compraram vários dos originais.

Publicado originalmente pela Marvel em 1982, o Frankenstein de Bernie Wrightson, seria reeditado pela Underwood-Miller em 1994 e pela Dark Horse em 2008, numa luxuosa edição comemorativa do 25º aniversário da publicação original, mas todas estas edições estão completamente esgotadas atingindo preços proibitivos no EBay.
Foi nesse período, em que começava privilegiar a ilustração em relação à BD, realizando uma série de ilustrações para posters e portfolios para a Cristopher Entreprises, incluindo ilustrações sobre obras de Edgar Alan Poe e um livro de monstros para colorir, que Wrightson decidiu procurar um espaço de trabalho fora de casa.
Tudo começou a partir de uma conversa com Barry Windsor-Smith, o desenhador de Conan, que andava à procura de um espaço para instalar o seu atelier e que acabou por encontrar um excelente local num sótão amplo e cheio de luz, num prédio no bairro de Chelsea, no centro de Manhattan. Como a renda do espaço, que servia de arrecadação para uma tipografia, era de 400 dólares, e nenhum dos artistas conseguia pagar mais de 100 dólares por mês, convidaram Jeff Jones e Mike Kaluta para dividir o espaço e (sobretudo) a renda.
Nascia assim, em 1976, por motivos puramente pragmáticos, o Studio. Um espaço que era essencialmente um local de trabalho de quatro artistas que procuravam transcender o mundo dos comics, e também um espaço de encontro e de convívio (as festas no Studio ficaram famosas no meio da BD), mas que adquiriu uma dimensão quase mítica, face à incrível concentração de talento debaixo do mesmo tecto, que um livro/catálogo da Paper Tiger, a editora que publicava os livros com as ilustrações de Roger Dean para as capas dos discos dos Yes, registou para a posteridade.
Tudo começou quando um representante da editora, que estava em Nova Iorque para preparar um livro sobre os dez melhores ilustradores americanos de fantasia acabou por ir parar ao Studio e descobrir fascinado o espaço e o trabalho dos quatro autores. Mas deixemos que seja o próprio Bernie Wrightson a contar como tudo se passou: “o espaço era grandioso. Tínhamo-lo decorado como os salões de Paris na viragem do século. Sabíamos que era um espaço fantástico. Sabíamos que quando se entrava ali, era como entrar na caverna de Aladino, cheia de tesouros. Então falámos com o tipo, acho que saímos para jantar e, no fim do dia, ele tinha modificado os seus planos de um livro sobre os dez melhores artistas de fantasia, para um livro só sobre nós os quatro. Ao longo daquela tarde, passámos de quatro gajos que precisavam de um espaço maior para trabalhar, para os Beatles da Arte Fantástica.”
Curiosamente, quando o livro saiu em 1979, o Studio já não existia e os quatro artistas estavam cada um para seu lado, mas isso não impediu que a memória do Studio continue a influenciar artistas um pouco por todo o lado, como acontece ainda agora em Portugal com o Lisbon Studio.


DE STEPHEN KING AO CINEMA

Entre as capas e algumas BDs ocasionais que fez para a Marvel e DC e outros trabalhos mais inesperados, como uma capa para o disco Dead Ringer de Meatloaf, Wrightson iniciou uma colaboração com o escritor Stephen King, que começou com um calendário que se transformou em livro, The Cycle of the Werewolf e que incluiu ilustrações para romances de King como The Stand e The Dark Tower, passando pela adaptação à BD de um filme que homenageava precisamente as BDs de horror da EC e da Warren que marcaram a vida de Wrightson. O filme chamava-se Creepshow e juntou King a George Romero (o inventor dos zombies no cinema com The Night of the Living Dead ) e Wrightson teve apenas três meses para desenhar as 64 páginas da adaptação à BD que a sua mulher, Michelle, coloriu. Um desafio arriscado, que venceu com sucesso assinalável.
Essa não foi a única experiência de Wrightson no cinema, pois além de ter trabalhado como artista conceptual nos filmes Ghostbusters I e II, Firefly, The Green Mile, Dark Country, The Mist e no primeiro Spider-Man de Sam Raimi, Captain Stern, uma história curta que fez para a revista Heavy Metal, foi adaptada directamente num dos capítulos do filme de animação com o mesmo nome.


O REGRESSO À BANDA DESENHADA

Apesar do seu trabalho como ilustrador, Wrightson nunca cortou completamente com a BD tendo desenhado diversas histórias ao longo das últimas três décadas, com destaque para o Batman, que desenhou na mini-série The Cult, de 1987, uma história sombria sobre um culto religioso em que o estilo do desenhador encaixa como uma luva, e voltaria a desenhar no primeiro encontro entre o Cavaleiro das Trevas e os monstros do filme Alien de Ridley Scott. 
Mas foi com o escritor Steve Niles, criador da série 30 Dias da Noite, que Wrightson colaborou mais directamente nos últimos anos, assinando livros como The Ghoul, City of Others (em que as cores de José Villarubia foram impressas directamente sobre o desenho a lápis de Wrightson, com excelentes resultados) e sobretudo Frankenstein Alive, Alive!, obra que assinalou o regresso do desenhador à obra de Mary Shelley e que valeria o prémio da National Cartonist Society para a Melhor BD de 2013.
Um regresso simbólico ao local onde foi mais feliz e que funcionaria como o canto de cisne do artista, cuja influência é visível em desenhadores como o alemão Andreas, ou americano Kelley Jones, entre outros.
Publicado originalmente na revista Bang! nº 22, em Julho de 2017

Sem comentários: