sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010
O cinema de Jodorowsky
Conhecido em Portugal essencialmente pelo seu trabalho na série de Banda Desenhada, O Incal, ilustrada por Moebius, e em todo o universo que dela emanou (como A Casta dos Metabarões), ou por Bouncer, o western que criou com François Boucq, Alejandro Jodorowsky é muito mais do que um mero argumentista de Banda Desenhada. Considerado como um guru por personalidades do mundo da música tão diferentes como John Lennon e Yoko Ono, que ajudaram a financiar os seus filmes El Topo e La Montaña Sagrada e Marilyn Manson, que cita abertamente La Montaña Sagrada no vídeo de The Dope Show e a quem Jodorowsky casou em 2005 com a modelo Dita Von Teese, em nome dos Quatro Elementos, Jodorowsky revela-se uma personagem tão ou mais fascinante do que a sua própria obra, a qual reflecte as suas vivências e crenças místicas.
Verdadeiro homem do Renascimento, este filho de judeus emigrantes russos, nascido no Chile em 1929, foi actor, mimo (discípulo de Etienne Decroux, que foi também mestre de Marcel Marceau, com quem Jodorowsky colaborou em diversos espectáculos), tarólogo de renome, responsável, com Philipe Camoin pela restauração do Tarot de Marselha, criador de uma nova técnica terapêutica chamada psicomagia, poeta, escritor, dramaturgo, encenador, fundador do grupo surrealista Panique (com Fernando Arrabal e Roland Topor) e realizador de cinema.
É precisamente a faceta de Jodorowsky enquanto realizador de cinema que esteve em destaque na edição do Imago de 2006, através de três dos seus filmes mais importantes: Fando e Lis, a controversa versão cinematográfica de uma peça de Arrabal encenada por Jodorowsky para o grupo Panique; El Topo, um western spaguetti surreal que inaugurou o conceito de filme de culto, e Santa Sangre, um drama policial com toques de fantástico, sobre a peculiar relação entre um jovem, interpretado por um dos filhos de Jodorowsky, e a sua mãe, sacerdotisa da igreja de Santa Sangre, num México dominado pela religião.
Fando e Lis é precisamente um bom exemplo dos métodos de trabalho de Jodorowsky, que realizou o filme tendo por base um guião de apenas uma página e as memórias da encenação que tinha feito da peça para o grupo Panique. Conforme ele refere no seu manifesto sobre “Como Fazer Cinema”, o filme deve viver dentro de nós. Por isso, o conselho que ele dá aos aspirantes a cineastas é que “nunca trabalhes no papel os teus movimentos da câmara. Chega aos sítios a pensar que não vais mexer a câmara, que não vais iluminar, que não vais inventar. Chega vazio, sem a menor intenção. Liga o motor da câmara e vive. Não cries cenas, cria incidentes”.
Interpretado e realizado por Jodorowsky, e exibido diariamente durante mais de 6 meses na sessão da meia-noite do cinema Elgin em Nova Iorque, El Topo é o protótipo do filme de culto. Um western carregado de simbolismo e de personagens estranhas, que relata o percurso iniciático de um pistoleiro (o proprio Jodorowsky) que percorre o deserto acompanhado pelo filho (papel interpretado por Brontis, um dos filhos de Jodorowsky), em mais um exemplo das relações complexas entre pai e filho, habituais na obra de Jodorowsky, que sempre teve uma relação complicada com o próprio pai, conforme descreve no livro autobiográfico, A Dança da Realidade.
Produzido por Cláudio argento, irmão de Dário Argento, Santa Sangre é o mais linear dos filmes de Jodorowsky, em termos de narrativa, embora as imagens tenham a carga fantástica e surreal esperada. Uma espécie de giallo (o sanguinolento filme policial italiano, em que um assassino mata as suas vítimas de forma bastante sádica) mas adaptado ao universo de Jodorowsky, em que elementos como a religião e as mutilações têm grande peso. Ambientado em grande parte num circo, com o inevitável cortejo de freaks que seria de esperar, Santa Sangre tem como actores três dos filhos de Jodorowsky, Axel, Adan e Théo.
Nunca exibido em Portugal (pelo menos, que eu saiba) La Montaña Sagrada, que narra a história de um grupo de indivíduos, guiados por um alquimista (o próprio Jodorowsky) que se reúnem no cimo de uma montanha para procurarem o segredo da imortalidade, é o filme de Jodorowsky com uma carga simbólica mais evidente e uma estrutura narrativa mais débil, mas também o mais impressionante em termos visuais.
Embora, como seria de esperar, nenhum dos seus filmes esteja disponível em DVD em Portugal, aqui ao lado em Espanha, foi lançada uma caixa com as versões restauradas de Fando e Lis, El Topo e La Montaña Sagrada, que inclui também La Constelacion Jodorowsky, um interessante documentário sobre o realizador, com depoimentos de Moebius e Peter Gabriel, entre outros. Também Santa Sangre está editado em DVD em Espanha e todos estes filmes podem ser encomendados on-line , a preços bastante acessíveis, a partir de aqui.
O cineasta, que declarou numa entrevista que procurava no cinema “aquilo que a maioria dos americanos procuram nas drogas psicadélicas”, tem também uma forma peculiar de trabalhar com os desenhadores que ilustram os seus argumentos de BD. São famosas as sessões com Moebius durante a criação do Incal, com Jodorowsky a representar e a mimar todas as personagens, saltando para cima da mesa e derrubando cadeiras enquanto conta a história, de que Moebius vai tomando notas para depois desenhar, ou as cassetes áudio que mandava a Arno, descrevendo a saga de Aleph Tau.
Senhor de um universo tão fortemente pessoal, como coerente nas suas obsessões (o simbolismo religioso, as mutilações, a dimensão freudiana das relações entre pais e filhos), o trabalho de Jodorowsky na Banda Desenhada é extremamente coerente com a sua actividade como cineasta, com a BD a revelar-se como a forma ideal do criador chileno de fazer chegar ao grande público as histórias que quer contar e que não conseguiu meios para o fazer no cinema.
Um bom exemplo é o projecto nunca concretizado de Alejandro Jodorowsky para a adaptação de Dune, a saga de ficção científica de Frank Herbert, ao cinema. Um projecto megalómano, com 14 horas previstas de duração, contando com Salvador Dali e Orson Welles como actores, música dos Pink Floyd e Moebius e Giger como conselheiros visuais. Foi o falhanço deste projecto, que nunca passou da fase de pré-produção por problemas de financiamento, que lhe permitiu iniciar uma colaboração em 1975 com a Moebius, na série O Incal. Obra que, conforme o próprio Jodorowsky refere: “representa tudo o que eu não consegui fazer em Dune. Há bocados inteiros do filme que foram inventados por mim. Eles estão todos no Incal.”
Apesar de alguns rumores cíclicos sobre o seu regresso ao cinema, dirigindo uma nova versão de El Topo, produzida e interpretada por Marilyn Manson, ou com o filme Kingshot, definido pelo próprio como “um filme de gangsters spaguetti metafísico”, a verdade é que desde 1990, ano em que realizou The Raibow Warrior, que a carreira de realizador de Jodorowsky está suspensa. E é, já não no ecrã, mas no papel, que ele voltou ao Western com François Boucq em Bouncer, à ficção científica com Juan Gimenez e Fred Beltran e ao drama histórico com Milo Manara, em Borgia.
E o encontro entre o criador chileno e o desenhador italiano era só uma questão de tempo, pois um dos projectos de filme nunca concretizado que Jodorowsky alimentou durante mais tempo foi a adaptação ao cinema de Viagem a Tulum, uma BD de Manara escrita por Federico Fellini, em que Jodorowsky e Moebius aparecem como protagonistas. Mais uma vez, foi Manara, que já tinha transposto para a BD A Viagem de G. Mastorna, o filme que Fellini nunca chegou a realizar, a dar vida nas páginas da Banda Desenhada a uma história que Jodorowsky nunca teria os meios económicos nem a liberdade para concretizar no cinema.
Versão bastante alargada e actualizada de um texto publicado originalmente em Outubro de 2006, no catálogo do Festival de cinema Imago, que dedicou um ciclo a Jodorowsky, no ano em que teve a Banda Desenhada como tema de destaque e que, depois de Jodorowsky ter estado em destaque neste blog, me pareceu interessante e oportuno recuperar.
As ilustrações para os cartazes de El topo e Santa Sangre, bem como o estudo para Dune, são da autoria de Moebius.
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