segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Terror à portuguesa


Género sem grande expressão em termos da Banda Desenhada nacional, o terror parece ter conhecido nos últimos tempos um súbito acréscimo de popularidade, junto dos leitores e autores portugueses. Se esse facto, de que os dois títulos que motivam este texto são a confirmação, reflecte uma tendência internacional, que se alarga à literatura e ao cinema, através de fenómenos como a saga “Twilight”, ou a série televisiva “True Blood”, ou o notório renascer do interesse nos filmes (e nos livros) de zombies, até há bem poucos anos a realidade era bem diferente.
Com a excepção do trabalho de divulgação do material da Editora Warren feito por Roussado Pinto, durante os anos 70, pouco ou nada se publicou de terror em Portugal nos últimos 30 anos, com a excepção recente do trabalho de David Soares (tanto em termos de Banda Desenhada, como de literatura) e de alguns títulos da Vertigo, traduzidos pela Devir e Vitamina BD. Daí, que se saúde com particular agrado estas duas edições.
Mas comecemos por “Mucha”, título que assinala o regresso à BD de David Soares, 6 anos depois de “A Última Grande Sala de Cinema”, trabalho que lhe valeu uma das últimas Bolsas de Criação Literária concedidas à Banda Desenhada. Escritor com uma voz muito própria, patente em romances como “A Conspiração dos Antepassados”, ou nos contos que constituem o livro “Os Ossos do Arco-Íris”, Soares regressa à BD apenas como argumentista, deixando o desenho nas mãos (mais do que) competentes de Osvaldo Medina, o desenhador do excelente “A Fórmula da Felicidade”, cuja versatilidade fica bem patente nesta mudança de registo gráfico.
Livremente inspirado num conto de Ionesco, “Mucha” inverte a premissa da “Metamorfose” de Kafka (desta vez, não é o protagonista que se transforma num insecto, mas sim todos os que o rodeiam) e transfere a acção para a Europa durante a ascensão do nazismo, colocando o terror sobrenatural num diálogo (sem legendas) com o terror real das atrocidades cometidas pelas tropas nazis. Embora contada com grande eficácia, a (curta) história de “Mucha” sabe a pouco e deixa o leitor na expectativa de outros trabalhos de maior fôlego, como foram as anteriores incursões de Soares pela BD. Por fim, há que salientar o trabalho do editor Mário Freitas (que aqui assegurou também a passagem a tinta, design e legendagem do livro), que aos poucos está a construir o catálogo bastante interessante na sua editora Kingpin Comics.

Quanto a “Zona Negra”, novo projecto de Fil, depois da revista “Zona Zero”, a primeira constatação é que a excelente capa de Eduardo Monteiro merecia abrigar um conteúdo com outra consistência… Se a distância que separa “Mucha” de “Zona Negra” é a mesma que separa um produto profissional de outro feito por um grupo de amadores bem intencionados, há, além disso, uma clara quebra de nível entre o conteúdo do primeiro “Zona Zero” e este “Zona Negra”, até mesmo em termos de impressão. Se há algumas experiências visuais curiosas, como a história “A.L.I.E.N., de Bruno Bispo e Victor Freundt e histórias relativamente interessantes, como a de Roberto Macedo Alves (que só teria a ganhar com um desenho melhor), o nível geral é bastante fraco, até para o que é habitual nos autores envolvidos, ao que não terá sido alheio o pouco tempo que tiveram para entregar as histórias…
E se a estes dois títulos juntarmos “As Extraordinárias Aventuras de Dog Mendonça e Pizza Boy”, o projecto de Filipe Melo (o co-realizador de “I’ll See you in My Dreams”, o primeiro filme de zombies português) que deverá chegar às livrarias nos próximos meses, numa edição da Tinta da China, não há grandes duvidas que o terror à portuguesa está bem vivo!
(“Mucha”, de David Soares e Osvaldo Medina, Kingpin Comics, 36 pags, 8,95 €
“Zona Negra”, vários Autores, Zona BD, 52 pags, 4,50 €)

Texto originalmente publicado no Diário As Beiras de 16/01/2010

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