terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Krazy + Ignatz + Pupp


Já por várias vezes objecto de referência neste espaço, o trabalho efectuado Por Manuel Caldas na recuperação e divulgação dos clássicos da Banda Desenhada (especialmente) americana, não tem paralelo em Portugal.
Além do “Príncipe Valente” de Hal Foster, cujos seis primeiros volumes contaram com o seu exaustivo trabalho de restauro e da série “Lance”, de Warren Tuffs, Caldas recuperou também “Haggar, o Viking”, de Dirk Browne, “Ferd’nand”, de Mik, a adaptação de “Tarzan dos Macacos”, feita por Harold Foster, a que se se junta agora uma selecção das melhores pranchas a cores de “Krazy Kat”, a mítica e inimitável série de George Herriman.
Se ninguém põe em causa o mérito do trabalho de Caldas, que vem ajudar a preencher uma lacuna importante em termos da edição de BD em Portugal, já em termos puramente editoriais, as suas opções são mais discutíveis. Concretizando, será que séries como “Haggar, o Viking” e “Ferd’nand” justificam uma edição integral (quer em termos comerciais, quer da própria qualidade das séries), ou não teria sido mais sensato optar por uma selecção das melhores tiras de cada uma das séries? A opção de Manuel Caldas mostra que acredita na importância destas séries e na sua viabilidade comercial, mas pessoalmente, tenho dúvidas que haja um número suficiente de leitores interessados em acompanhar por vários volumes, séries como “Hagar” e Ferd’nand”…
Reunindo as tiras publicadas durante o ano de 1938, “Ferd’nand retorna”, mantém as características já evidenciadas no primeiro volume da série. A criação do dinamarquês Henning Dahl Mikkelsen, consegue contar, em tiras de 3 a 4 desenhos, sem recurso a qualquer texto ou diálogo, um gag visual. Mas a verdade é que, das mais de 300 tiras reproduzidas neste volume, só umas 2 ou 3 é que são verdadeiramente memoráveis, e a maioria apenas a custo arranca um leve sorriso ao leitor.

Já texto é coisa que não falta na adaptação do romance “Tarzan dos Macacos”, de Edgar Rice Burroughs, feita por Hal Foster. Publicada pela primeira vez em Portugal, esta primeira experiencia de Foster com Tarzan, personagem a que voltaria anos mais tarde, como desenhador das tiras dominicais da série (etapa parcialmente editada em Portugal pelas Edições Futura, na década de 80), é considerada como a primeira Banda Desenhada realista, mas a verdade é que a articulação entre texto e imagem, que constitui a essência da linguagem da BD, se faz aqui de forma bastante incipiente, com o texto, que está longe de ser um primor literário, a revelar-se muitas vezes redundante em relação às ilustrações de Foster que, apesar das debilidades próprias de um artista em início de carreira, mostram uma força e uma energia visceral que de algum modo se perdeu no seu trabalho posterior na série “Príncipe Valente”.
Por último, temos aquela que me parece a aposta de Manuel Caldas com mais hipóteses de sucesso comercial. A edição de uma selecção das páginas a cores da série “Krazy Kat”, um clássico incontornável da BD mundial que, depois dos 2 álbuns editados pelos Livros Horizonte, na década de 90, em boa hora regressa às livrarias portuguesas.
Exemplo perfeito do surrealismo na Banda Desenhada, a série de Herriman parte de um peculiar triângulo amoroso constituído por um gato (ou gata, o autor é ambíguo a esse respeito), um rato e um cão, em que a gata Krazy está apaixonada pelo rato Ignatz, que lhe manda com tijolos à cabeça, enquanto ignora o amor do guarda Pupp, um cão que está constantemente a prender o rato Ignatz pelas agressões a Krazy que vê as tijoladas como um acto de amor. Um esquema aparentemente repetitivo, mas que Herriman inova constantemente, tal como os cenários de Cocomino County, o estranho deserto onde decorre a acção, estão em constante mutação.
Optando por pranchas com pouco texto, face à quase impossibilidade de traduzir a peculiar linguagem inventada por Herriman, Manuel Caldas consegue uma bela edição, em que as páginas cuidadosamente restauradas fazem justiça à arte de George Herriman, permitindo ao leitor, como bem salienta Álvaro Pons no prefácio, o pleno desfrute de “uma experiência sensorial que deslumbra o espectador de hoje tanto como no seu tempo deslumbrou Picasso, Cummings e Kerouak, os quais viam nas suas páginas o cume da arte do século XX:”
(“Ferd’nand Retorna”, de Mik, Libri Impressi, 120 pags, 12,50 €
“Tarzan dos Macacos”, de Harold R. Foster (a partir do romance de Edgar Rice Burroughs), Libri Impressi, 70 pags, 12,50 €
“Krazy Kat”, de George Herriman, Libri Impressi, 48 pags, 13 €
Mais informações em www.manuelcaldas.com)

(texto originalmente publicado no Diário As Beiras de 02/01/2010)

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