domingo, 4 de fevereiro de 2018

Torpedo 1936 - Volume 1


Como os leitores devem ter reparado, este blog tem andado bastante parado. Um dos motivos, foi precisamente a colecção dedicada à edição integral da série Torpedo, que a Levoir começou a publicar no passado dia de Fevereiro e para a qual traduzi várias histórias e escrevi o prefácio do primeiro volume, para além dos textos do destacável de apresentação da colecção saídos no jornal Público de 27/01/2017, numa altura em que estava fora do país, como acesso limitado a este blog, e que, numa jogada de antecipação, o meu amigo J. Machado Dias já publicou aqui. Por isso, deixo-vos com o texto de apresentação do volume 1 em imagem e com a versão integral do editorial, que no livro saiu com um parágrafo censurado por imposição dos detentores dos direitos da série, em que se explicava os motivos do divórcio criativo entre Abulí e Bernet que levou ao fim da série

TORPEDO: DE 1936 A 1972:  A LONGA VIDA DE UM (ANTI) HERÓI

Clássico do policial negro, e também a banda desenhada espanhola mais traduzida em todo
o planeta, a série Torpedo tem finalmente direito a uma edição integral em Portugal. Criada em 1981 por Enrique Sánchez Abulí nas páginas da revista Creepy, na sequência de uma encomenda de Marcelo Miralles, (colaborador do editor Josep Toutain, que encomendou ao argumentista uma história com uma loura e um gangster, que pudesse ser usada como teste a um desenhador), Torpedo cedo ganhou vida própria. Pelo carisma do personagem, e sobretudo, pelas possibilidades que uma série destas dava a Abulí de homenagear o cinema negro e a literatura hard-boiled. Tudo em histórias curtas, que variam geralmente entre as oito e as doze páginas, que utilizam todos os clichês do género, subvertendo-os ao dar o protagonismo, não ao detective privado, mas a um mafioso cínico e sem ponta de escrúpulos,cuja figura se vai humanizando muito lentamente, à medida que vamos conhecendo o seu passado.
 Para ilustrar esta viagem aos tempos áureos dos gangsters, foi escolhido o mestre americano Alex Toth, que deu também a sugestão do título: Torpedo era o nome dado na América dos anos 30 aos pistoleiros a soldo. Uma título que, como reconhece Bernet, “revela-se uma imagem perfeita para definir aqueles tipos que, uma vez que recebem o dinheiro e a incumbência de matar alguém, põem-se em marcha e não param até atingir o alvo. Exactamente como um torpedo!”.
Desenhador veterano, Alex Toth procurou suavizar o carácter demasiado explícito dos guiões de Abulí, o que não foi bem visto pelo argumentista espanhol. Como consequência dessas divergências criativas, Toth abandonaria a série ao fim de apenas dois episódios, incomodado com o sexo, violência e amoralidade dos argumentos de Abuli. Como refere o editor Dean Mullaney, que trabalhava com Toth na época, a gota de água foi uma cena no terceiro episódio da série, em que uma personagem urina na rua e que Toth se recusou a desenhar, argumentando: que “eu cresci em Nova Iorque e as pessoas aqui não mijam na rua!” .
Suceder-lhe-ia Jordi Bernet que, talvez por Toth, um fantástico desenhador, cuja carreira fala por si, não estar devidamente motivado, se revelou uma escolha muito mais acertada para a série, tornando-se imediatamente no desenhador definitivo de Torpedo. Justamente considerado como o mais americano dos desenhadores espanhóis, Bernet cedo se conseguiu libertar da influência de Frank Robbins (desenhador a quem, curiosamente, Torpedo foi oferecido, após a desistência de Toth) para criar o seu próprio estilo, feito de dinamismo, sensualidade e uma notável eficácia narrativa.
Um estilo marcado pelo uso do pincel seco, que o crítico italiano Francesco Coniglio definiu como “uma arquitectura gótica de sinais brancos e pretos que lembram de perto os filmes de Orson Welles e o jogo de luz do seu fotógrafo favorito, Gregg Toland”. E não há dúvida que a série Torpedo é bem um exemplo da apurada técnica de preto e branco de Bernet, que reproduz fielmente no papel a estética do film noir, de que Torpedo é um legítimo herdeiro. Conforme o próprio Bernet declarou numa entrevista, “o branco e preto é o ideal para as histórias realistas, sobretudo as do género noir. Gosto de acentuar o dramatismo nas sequências que assim o exijam e, brincando com o preto e branco, consigo obter efeitos muito mais directos do que com a cor. O preto e branco é bem mais simples e eficaz. É mais forte, directo, natural.”
E Bernet não é o único a pensar assim. Também Will Eisner, o criador do Spirit, num texto publicado no 1ºprimeiro volume da primeira edição espanhola, segue esta teoria, ao referir que, sendo uma “tradicional série negra, com raízes na literatura e no cinema da época, ([a série Torpedo)] jamais conseguiria obter um tal alto nível ambiental, nem teria o impacto que teve junto dos apreciadores de BD, caso tivesse sido feita a cores.”Mas essa passagem para a cor acabaria por acontecer, por imposição dos editores estrangeiros, a partir da história Um Salário de Medo. Com esta mudança, a força das sombras esbateu-se e o próprio Bernet acabaria por trocar o pincel pelos marcadores, de maneira que o seu traço evoluía para um registo mais caricatural, mais adequado à violência e humor desbragados das histórias.
Assim, a cores ou no preto e branco usado em todas as reedições,através de 15 álbuns, publicados ao longo de quase 20 anos, a série Torpedo prosseguiu uma caminhada vitoriosa, graças ao humor mortífero e aos notáveis diálogos de Abulí, que explora como ninguém os trocadilhos e os duplos sentidos, nem sempre de fácil tradução, e ao talento gráfico e à extraordinária eficácia narrativa de Bernet, um mestre da arte sequencial.
 Alvo de inúmeras homenagens e citações, como é o caso do Tornado, do português Estrompa, que só atestam a sua popularidade, Torpedo seria ainda transposto para a animação em 1995, num filme de 30 minutos realizado por J. A. Rojo, a partir da história Tic Tac, que pretendia ser o episódio piloto de uma série para televisão que não se chegou a concretizar.
Até que, em Dezembro de 2000, a primeira fase da carreira de Torpedo chegou ao fim. Tudo começou quando o cantor espanhol Loquillo dedicou uma música a Torpedo,  com letra do argumentista de BD Oscar Aibar, no seu disco Nueve Tragos, referindo na ficha do CD que o personagem era uma criação de Jordi Bernet, sem citar sequer o nome de Abuli. Ao saber que Bernet tinha tido conhecimento do facto ainda antes do disco sair, e nada fez para o alterar, Abulí, enquanto verdadeiro criador de Torpedo, veio pedir explicações a Bernet e chegou a processar Bernet e Aibar em tribunal, acusando-os de conspiração para o privarem dos direitos sobre a série, num processo que naturalmente acabou por perder. Assim ficou irremediavelmente desfeita uma das mais eficazes duplas da BD europeia, que para além dos 15 álbuns de Torpedo, já tinha dado provas da sua empatia em dezenas de histórias curtas reunidas no livros Historias Negras, nas séries Snake e no álbum De vuelta a Casa.
Mas, como os seus inúmeros inimigos descobriram à sua custa, Luca Torelli não é um homem fácil de abater e, apresar de não haver histórias novas, a popularidade de Torpedo manteve-se fortíssima, muito por força das sucessivas edições integrais da série em França, Espanha, Itália e Estados Unidos, com o tempo a revelar, se ainda houvesse dúvidas, que estamos perante um verdadeiro clássico.
 Daí que o regresso de Torpedo à BD estivesse sempre no horizonte, até se concretizar finalmente em 2017, com Torpedo 1972, em que Bernet cede o lugar ao argentino Eduardo Risso, o desenhador de 100 Bullets, bem conhecido dos leitores portugueses graças a Batman Noir, ou Batman: Uma História Verdadeira, já editados pela Levoir. Risso, que assegura também a cor, mostra-se perfeitamente à altura da pesada herança de Bernet, sem abdicar do seu estilo próprio e de uma planificação da página mais livre e dinâmica do que a estrutura clássica usada por Bernet. Ou seja, tal como Bernet fez em relação à Alex Toth, também Risso cria a sua própria versão doe Torpedo.  Um Torpedo envelhecido, mas refinado na sua maldade e que, apesar da doença de Parkinson que o limita, continua tão mortífero como antes, como os leitores vão poder descobrir no último volume desta colecção histórica.

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