Para abrir este ano de 2018, recupero o texto que publiquei na Bang! nº 23, lançada precisamente no 1º Festival Bang! Dedico este texto à Safaa Dib, que aturou os meus atrasos no envio dos textos durante todos estes anos e que partiu para outras aventuras. Mas a revista Bang! não vai acabar e a Safaa vai ser muito bem substituída pelo Boss himself, o Luís Corte Real.
Boa leitura e Bom Ano!
O TERROR SEGUNDO SCOTT SNYDER
Um dos nomes maiores dos comics americanos, responsável, com Greg Capullo, de algumas das melhores histórias do Batman da última década, Scott Snyder é ainda assim, muito mais um escritor de terror do que de histórias de super-heróis, algo que a recente publicação, pela G Floy, de Wytches em edição nacional, vem demonstrar.
Nascido e criado em Nova Iorque Scott Snyder descobriu que queria ser escritor e contar histórias aos nove anos, quando um monitor num campo de férias lhe deu a descobrir o livro Eyes of the Dragon, de Stephen King, escritor que, como veremos está profundamente ligado à carreira de Snyder. Apesar de se ter formado em Literatura Criativa pela Universidade de Brown em 1998, o seu primeiro emprego foi na Florida, no Disney World, onde trabalhou nas limpezas e como figurante, tendo vestido os fatos de espuma de diversas personagens da Disney, com destaque para o astronauta Buzz Lightyear do filme Toy Story. Quando se preparava para ir trabalhar na Disneyland de Tóquio como Príncipe Encantado, um amigo convenceu-o a regressar a Nova Iorque e aos estudos, acabando por fazer um Mestrado em Belas Artes na Universidade de Columbia em 2002.
Por estranho que possa parecer, o ano que passou na Disney World foi importante para a sua carreira de escritor, pois como refere: “essa experiência fez muito bem à minha escrita... Tudo o que eu acabei por escrever, as coisas que me assustam profundamente: o medo do compromisso e do crescimento, medo de perder as pessoas amadas, o maravilhamento e o terror de estar apaixonado – tudo isso estava constantemente em jogo ao meu redor nessa maneira estranha, animada e ampliada da Disney.”
Ainda antes de se dedicar à BD, Snyder estreou-se como escritor em 2006 com Voodoo Heart, uma recolha de contos de terror, dois dos quais, Wreck e Dumpster Tuesday, foram seleccionados por Stephen King para a antologia The Best American Short Stories, de 2007. O mesmo Stephen King que vai colaborar com Snyder em American Vampire, a série que este último lançou na Vertigo em 2010 e que o tornou um nome popular e prestigiado junto dos leitores de comics.
A admiração de Snyder por King estende-se também ao cinema e aos filmes baseados nos livros do escritor, pois como refere “The Shinning provavelmente é um dos meus três filmes favoritos, porque é Kubrick e Stephen King no seu melhor. Ele é tão bom, pegando numa coisa que é um totem de segurança, que encontras em tua casa, como o teu pai no Shinning, ou o teu carro em Christine, ou o teu cão em Cujo e transforma essas coisas em algo maligno. Não há nada mais assustador do que quando estabeleces essa conexão emocional. A ideia de teu pai vir atrás de ti com um machado é tão assustadora. Tanto para uma criança como para um adulto.”
Como não podia deixar de ser, a estreia de Snyder na Vertigo faz-se reinventando um mito clássico do terror, as histórias de vampiros, com American Vampire, série criada em 2010 com o brasileiro Rafael Albuquerque, que apresenta uma nova estirpe de vampiros, resistente à luz solar, representada por Skinner Sweet, um carismático (e sádico) pistoleiro, cuja existência é uma afronta ao poder das velhas elites de vampiros europeus. Mais uma vez, Stephen King dá a mão a Snyder, assinando uma história complementar sobre a origem de Skinner no Velho Oeste, publicada como complemento nos primeiros cinco números da série.
O sucesso de American Vampire levou à criação de uma antologia em que outros criadores de renome, como Jason Aaron, Fabio Moon e Gabriel Bá e o italiano Ivo Milazzo têm oportunidade de explorar o universo criado por Snyder e Albuquerque, para além das mini-séries paralelas que permitem explorar um pouco melhor esse universo, ilustradas por outros desenhadores, como Sean Gordon Murphy (American Vampire: Survival of the Fittest) e Dustin Nguyen (American Vampire: Lord of Nightmares) e de uma história solta, The Long Road to Hell, em que Rafael Albuquerque também participa na escrita.
Embora os autores tenham abandonado temporariamente a série no final do segundo ciclo, prometeram voltar para um terceiro e último ciclo, ainda sem data marcada, face à agenda carregadíssima dos dois criadores.
A sua passagem marcante pelo Batman, já tinha sido iniciada antes com Black Mirror, uma história publicada na revista Detective Comics, ilustrada por Jock e por Francesco Francavilla, com Dick Grayson como Batman, em que Snyder transforma o filho do Comissário Gordon num perigoso psicopata.
Depois do sucesso de Black Mirror, a presença de Snyder no bat-universo prosseguiu com Batman: Gates of Gotham, uma série limitada escrita em co-autoria com Kyle Higgins que aborda a história secreta de Gotham City. Mas foi na linha DC New 52 que Snyder enriqueceu definitivamente a mitologia da personagem, criando a Corte das Corujas e deu uma nova vida a um vilão clássico como o Joker, que esteve “desaparecido” do universo DC durante um ano, após ter visto a sua cara arrancada pelo Bonecreiro, um vilão menor do universo DC. Essa história, Death of the Familly, publicada em Portugal pela Levoir, com o título O Regresso do Joker, é uma das melhores histórias do Batman assinada por este escritor e um exemplo perfeito de como criar uma história de terror usando super-heróis. Nela, depois de um ano desaparecido, planeando o seu regresso, o Joker está de volta, para atacar o Batman através daqueles que lhe são queridos, mas primeiro vai recuperar o seu rosto, numa impressionante sequência, em que, jogando com as sombras e sugerindo muito mais do que mostram, Snyder e Capullo criam momentos de puro terror. Texas Chain Saw Massacre, de Tobe Hopper.
Momentos que culminam, no final do primeiro capítulo, com a revelação da nova imagem do Joker, em que o rosto que perdeu se transforma na sua máscara, uma máscara presa à carne viva por correias de couro. Uma imagem fortíssima, que não consegue deixar de evocar um ícone do terror cinematográfico, o personagem Leatherface do filme
E se virmos bem, mais do que uma saga de super-heróis, este O regresso do Joker, é uma história de terror psicológico, o que acaba por ser natural, pois tanto Scott Snyder como Greg Capullo têm grandes ligações ao género. E O Batman não foi o único personagem clássico da DC a receber o tratamento especial de Snyder. Superman Unchained, a mini-série que Snyder escreveu para Jim Lee, explora o lado sombrio do Homem de Aço. Mais uma vez, o escritor não esconde o jogo: “mesmo que não haja nenhum gore ou horror explicito, até porque aqui ninguém corta a cara, ou qualquer coisa do género, mas, ao mesmo tempo, definitivamente há horror psicológico no livro. As minhas histórias favoritas são aquelas em que os personagens têm que enfrentar os seus piores pesadelos. Portanto, esta história ode não ter os cenários góticos de Gotham ou a escuridão americana de Swamp Thing, mas tem muitos aspectos sombrios e algumas situações horríveis.
Eu sempre me inclinei para os personagens mais sombrios de certa forma. É por isso que acho que o Superman deve ser muito divertido. Amo o personagem e acho que não podia perder a oportunidade de fazer alguma coisa de natureza sombria com ele.”
Também o seu projecto seguinte para a Vertigo, The Wake, uma mini-série em 10 números iniciada em 2013, em que volta a colaborar com Sean Murphy, misturava o horror com outro género, neste caso a ficção científica. Como o próprio referiu numa entrevista: “o meu novo livro, The Wake, é uma história de terror sombrio, misturado com ficção científica, na tradição de alguns dos meus filmes favoritos. O ponto de partida é uma descoberta feita no fundo do oceano que encerra as chaves para a compreensão dos oceanos e a sua mitologia. Uma mitologia que existe há milhares de anos em diferentes culturas. E essa descoberta acaba por ser verdadeiramente aterrorizadora.”
Se esta história de terror com sereias tem um toque lovecraftiano, não é por acaso, pois, confessa Snyder: “Sou um grande fã de Lovecraft. Estudei em Providence onde ele está sepultado e li montes de livros dele nessa altura e continuei a ler depois disso. Lovecraft está no ADN de The Wake.”
Como a maioria dos grandes criadores de comics americanos, também Snyder, apesar de ter um contrato de exclusividade com a DC, acabaria por publicar na Image, que é, indiscutivelmente, a editora mais excitante da actualidade. A estreia nessa editora dá-se com Severed, uma mini-série passada nos anos da Grande Depressão, sobre um miúdo que anda à boleia pelos Estados Unidos e que conhece um velho vagabundo que é também um serial killer, ilustrada por Scott Tuft, um amigo de infância de Snyder, cujo estilo mais clássico e realista se adequa bem à história que, até no jovem protagonista, tem um toque kinguiano.
Mas a sua mais conseguida incursão pelo terror puro e duro e o pretexto para este texto, foi Wytches, em que Snyder volta a trabalhar com Jock, o desenhador de The Black Mirror, aplicando às bruxas um tratamento ainda mais inovador do que o sofrido pelos vampiros em American Vampire. As bruxas de Snyder e Jock são entidades primitivas, canibalisticas, que estabelecem pactos com os humanos e que vivem em cavernas nas florestas, ou em troncos de árvore ocos. Seres telúricos, mais animais do que humanos e verdadeiramente assustadores. Para além da qualidade da escrita de Snyder e da força do traço estilizado de Jock, outro elemento que concorre para o sucesso do livro, é o excelente trabalho de cor de Matt Hollingsworth - explicado no final do livro da G Floy - que introduz um ruído perturbador mas extremamente eficaz na narrativa.
Face ao sucesso da primeira mini-série era inevitável o regresso dos autores ao universo de Wytches e esse regresso aconteceu este mês de Setembro no nº 1 da 2ª série da revista Image+, que funciona como catálogo da editora, com Bad Egg, uma história curta que mostra do que uma mãe é capaz para defender o seu filho e que serve para abrir o apetite dos leitores para o novo ciclo de Wytches que aí vem.
Publicado originalmente na revista Bang! nº 23, de Novembro de 2017
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