sábado, 21 de abril de 2012

Persepolis finalmente em português

Devido às convulsões politicas e militares que costumam abalar aquela zona do globo, o Irão é uma presença habitual nos noticiários. Mas existe um outro Irão, que não o do fanatismo islâmico, que vai para além da imagem estereotipada transmitida pelos meios de comunicação. É esse outro Irão que Marjane Satapri nos dá a descobrir em “Persépolis”, a autobiografia em Banda Desenhada da única autora de BD iraniana. Numa altura em que sai finalmente em Portugal a edição integral deste clássico, numa edição da Contraponto, não podíamos deixar de falar aqui do livro e da sua autora. Nascida no irão em 1969, no seio de uma família de esquerda com grande peso no país (o bisavô foi o último Imperador da dinastia Qajar e o avô chegou a ser Primeiro Ministro), Marjane tinha dez anos quando se deu a revolução que levou ao exílio do Xá e à instauração de uma República Islâmica, tendo vivido por dentro um momento fulcral da história do seu país. Um momento que soube transpor para o papel com eficácia, sensibilidade e rigor, numa obra bem escrita e de leitura extremamente agradável, onde o humor consegue estar presente, apesar do dramatismo dos factos relatados.
A Banda Desenhada autobiográfica, género com grandes cultores de ambos os lados do atlântico, para além da capacidade do autor em nos fazer partilhar as suas vivências, vive muito do interesse dessas mesmas vivências. Ou seja, a BD autobiográfica é tanto mais interessante quanto mais cativante for a vida do seu autor. E, neste campo, Marjane Satrapi preenche amplamente ambos os requisitos: não só a sua experiência de vida é extremamente interessante, como ela a sabe contar com uma simplicidade plena de eficácia que prende completamente o leitor. Até porque, como confessou numa entrevista “tenho uma excelente memória, o meu cérebro não faz qualquer selecção. Lembro-me de tudo. O que é muito bom quando queremos trabalhar, mas é muito mau quando queremos viver”.
Actualmente a viver em França, Satrapi, que frequentou o Liceu Francês de Teerão até 1980, tem uma formação cultural muito próxima da esquerda europeia, com muitas referências comuns, de Che Guevara e Fidel Castro, até Marx (que ela, num dos momentos mais divertidos do livro, achava parecido com Deus, embora com o cabelo mais encaracolado...), o que resulta surpreendente para o leitor ocidental, que do Irão construiu uma imagem exótica e (pelos vistos) desajustada da realidade da alta burguesia iraniana. Também em termos de BD, as referências de Satrapi são europeias, especialmente de David B. e dos autores da editora francesa L’Association, o que é natural pois para além de não existir tradição de BD no Irão, a autora iraniana partilhou o atellier com Cristophe Blain (o autor de “Isac, o Pirata”, cuja namorada da altura era a melhor amiga de Marjane), Emmanuel Guibert, Joann Sfar e o próprio David B., que a encorajou a passar a sua vivência ao papel e assina a introdução do primeiro volume. Muito longe de ter o virtuosismo de David B., um mestre do preto e branco, Satrapi defende-se ainda assim bastante bem, graças a um grafismo muito depurado e quase “naif”, mas de grande eficácia narrativa, servido por um preto e branco contrastado que guia a atenção do leitor para o que é essencial.
Publicado o primeiro volume em final de 2000, a série conheceu um imediato sucesso comercial e crítico, traduzido em dois prémios em Angoulême e na edição em diversos países, incluindo os Estados Unidos, onde o seu trabalho foi comparado ao “Maus” de Art Spiegelman, uma das referências assumidas desta obra de Satrapi. Da edição original em 4 volumes, apenas o 1º foi publicado em Portugal (e numa edição bastante pobre) pelas edições Polvo, em 2004 e nem o sucesso global do filme de animação de 2007, corealizado pela própria Satrapi e que, curiosamente acaba de chegar esta semana às bancas com o jornal Público, incentivou a Polvo a prosseguir com a edição… Felizmente, a Contraponto veio suprir esta lacuna grave, publicando num único volume a saga autobiográfica de Satrapi, numa cuidada edição, que segue a edição integral americana. E a verdade é que, apesar da crise e da retracção do mercado editorial nacional, isso não impediu que nos últimos seis meses, dois títulos fundamentais como “Blankets” e “Persepolis”, tenham finalmente edição nacional. (“Persépolis”, de Marjane Satrapi, Contraponto, 352 pags,19,90 €) Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 20/04/2012

2 comentários:

Nuno Amado disse...

Gosto de ler o que escreves, embora algumas vezes não concordado muito com o que tivesses escrito. Mas falas numa linguagem simples e objectiva para toda a gente.
Este texto não é diferente disso e estou completamente de acordo com o que escreves, infelizmente as editoras portuguesas gostam de dar as suas novidades editoriais em cima do lançamento. Isto tem riscos, como aconteceu neste caso... eu comprei o livro há dois meses em inglês, e não vou gastar esse dinheiro outra vez para o comprar em português! Se houvesse notícia desse lançamento há mais tempo, porque de certeza que estão a trabalhar nisto há meses, eu esperaria e compraria o livro em português! Mas não... é tudo muito secreto...
:\

Abraço

JML disse...

Obrigado, Bongop! Tento escrever sempre de forma simples e objectivas, ainda mais nos textos que escrevo para as Beiras, que são lidos por um público mais generalista. No caso do Persépolis, a Contraponto nem sequer me mandou o livro e como já o tenho em francês há vários anos, também não o pedi. Só soube que ia sair uma semana antes, por informação da distribuidora, mas apesar disso escrevi sobre o livro porque era uma edição demasiado importante para deixar passar em claro.