Um dos mais célebres escritores de ficção científica de sempre, o norte-americano Ray Bradbury é também um dos autores que mais tem visto os seus trabalhos transpostos para outros suportes, do cinema à Banda Desenhada. Quem não se lembra de Farnheit 451, o genial filme que François Truffaut realizou a partir do romance homónimo de Bradbury, exemplo maior de uma série de adaptações ao grande e ao pequeno ecrã. É verdade que a escrita eminentemente visual de Ray Bradbury, em que o terror e a ficção científica funcionam como eficazes metáforas da natureza humana, a isso se presta, mas acaba por ser também a consequência de um amor recíproco entre este autor e as histórias aos quadradinhos.
É o próprio Bradbury, que chegou a escrever o argumento para uma versão cinematográfica não concretizada do Little Nemo de Winsor McKay, a confessar o seu amor pelos comics nos seguintes termos: “Como posso negar a influência exercida sobre a minha vida pelos autores de comics e os seus trabalhos? É uma longa história de amor que começou tinha eu 3 anos de idade e nunca mais terminou, influenciando a minha vida, a minha imaginação e a minha escrita.
Sem Buck Rogers, descoberto quando tinha nove anos, nunca teria desejado voar para o futuro com tanta intensidade. Sem as tiras coloridas de Tarzan que eram publicadas todos os domingos, nunca teria lido com tal entusiasmo as obras de Edgar Rice Burroughs sobre a viagem de John Carter a Marte, que inspiraram, aos doze anos de idade, o meu primeiro romance.” (…) “Coleccionei o Prince Valiant durante mais de 30 anos e escrevi autênticas cartas de amor a Harold Foster, o seu criador, chamando-lhe o maior desenhador de comics que conheci em toda a minha vida. Como recompensa, Foster mandou-me dois gigantescos originais das páginas dominicais do Principe Valiant, que levarei comigo para o túmulo”.
Se Bradbury sempre foi um leitor assumido e entusiasta de BD, esta só começaria a utilizar os seus contos como fonte de inspiração, na década de 50, graças à editora EC Comics, célebre pelos seus comics de terror e de ficção científica, ilustrados pelos melhores desenhadores americanos da época, como Jack Davis, Bernard Krigsteen, Graham Ingels, Wallace Wood e Al Williamson. Um dos primeiros exemplos foi Home to Stay, uma história desenhada por Wally Wood e publicada no nº 13 da revista Weird Fantasy, adaptando Kaleidoscope e The Rocket Man, dois contos incluídos no livro de Bradbury, The Illustrated Man. E foi o próprio Ray Bradbury que telefonou a William Gaines, o editor da EC Comics para lhe dizer que a história da EC era melhor que os seus contos originais que lhe tinham servido de base, “embora não tão boa que não tivessemos que lhe pagar direitos de autor”, acrescenta Gaines.
A partir daí, com a benção do próprio Bradbury, sucedem-se as adaptações dos contos originais, desenhadas pelos melhores autores da EC, que assinam aqui alguns dos seus melhores trabalhos para a editora, como no caso de Wood, com Mars is Heaven. Infelizmente, o trabalho incontornável da EC Comics nunca teve a devida divulgação em Portugal e as adaptações que os seus desenhadores fizeram de Ray Bradbury não são excepção. Por isso, é ainda mais digno de atenção O Papa Defuntos, um álbum da Editora brasileira L& PM, distribuido em Portugal na década de 90, em que Jack Davis, Graham Ingels, Wally Wood, Bernie Krigstein e Jack Kamen adaptam contos de Bradbury.
Bem mais recentes, do início dos anos 90, são as Ray Bradbury Chronicles, uma série de adaptações publicadas nos EUA pela editora Topps e que resultam da iniciativa do editor Byron Preiss que conseguiu reunir um vasto leque de autores contemporâneos, dos dois lados do Atlântico, que nos dão a sua visão das histórias de Bradbury. Embora desigual, como todas as antologias, esta antologia reuniu a nata da BD americana (de Mike Mignola a P. Craig Russel, de Kent Williams a Richard Corben, de Timothy Truman a Dave Gibbons) a que se juntam os espanhois Vicente Segrelles, desenhador de O Mercenário, Toni Garcés e Daniel Torres, o criador de Roco Vargas, série de ficção científica “retro” parcialmente publicada em Portugal pela Meribérica.
Cinco dessas adaptações foram publicadas em Portugal, entre 1999 e 2001, na 2ª série da revista Selecções BD, coordenada por Jorge Magalhães. Nessas adaptações, assinadas por Vicente Segrelles, Dave Gibbons, Toni Garcês, Daniel Torres e Marc Chiarello, que os leitores portugueses puderam descobrir nas Selecções BD, há duas verdadeiras pérolas: Vem à minha Cave, um conto sobre uma discreta e silenciosa invasão extraterrestre, ilustrado por Dave Gibbons, o desenhador de Watchmen, que com o seu traço clássico e planificação cerrada, traduz de forma admirável o clima de grande “suspense” da história e Encontro Nocturno, o conto das Crónicas Marcianas adaptado por Daniel Torres. Uma bela história sobre dois personagens de diferentes eras, que ocasionalmente se cruzam numa estrada, que Bradbury considera como uma das suas histórias favoritas e que Daniel Torres trata com grande delicadeza e beleza, graças a um traço de grande elegância, valorizado por umas cores etéreas, perfeitamente adequadas a uma história em que espaço e tempo se confundem.
Mas, para além de todos os nomes que Byron Preiss conseguiu reunir neste projecto, outros desenhadores de nomeada tiveram oportunidade de dar uma correspondência visual às palavras de Ray Bradbury, como foi o caso de Moebius e de William Stout, com as suas ilustrações para a colectânea Dinosaur Tales, que reunia os melhores contos sobre dinossauros escritos pelo autor americano, incluindo o célebre A Sound of Thunder, já adaptado para a BD por All Williamson e por Richard Corben, em duas versões bem díspares, mas igualmente conseguidas, sobretudo quando comparadas com a patética adaptação cinematográfica realizada por Peter Hyams em 2005.
Também o português José Carlos Fernandes transpôs para a BD os contos de Ray Bradbury. Antes de se sentir com capacidades para escrever as suas próprias histórias, Fernandes “treinou a mão” adaptando contos de Gabriel Garcia Marquez e de Ray Bradbury. E se a adaptação de O Dragão, se revela bastante incipiente quando comparada com a versão de Segrelles, este tipo de trabalho revelou-se uma notável escola de aprendizagem, conforme o próprio Fernandes admite, e outras adaptações posteriores, como O Dia em que Choveu para Sempre, podem perfeitamente ombrear com os trabalhos recolhidos por Byron Preiss, em termos narrativos e de planificação.
Mas as adaptações dos textos de Bradbury à BD não param. Para além das ilustrações que Dave McKean, que já tinha desenhado uma das capas de Ray Bradbury Comics da Topps, fez para The Homecoming, também Fahrenheit 451 foi adaptado à BD por Tim Hamilton, numa muito conseguida adaptação, que não foi a única recente, pois em Julho de 2011, saíram mais duas adaptações, de Something Wicked this Way Comes, desenhada por Ron Winberly e de The Martian Chronicles, ilustrada por Dennis Calero.
Tal como o autor, que aos 91 anos de idade, mantém um invejável dinamismo, também a obra de Ray Bradbury se mantém bem viva. Nos contos e romances que escreveu, ou nas Bandas Desenhadas que os adaptam.
Texto originalmente publicado na revista Bang! nº 12, de Março de 2012
Este texto é dedicado ao Jorge Magalhães, que pela primeira vez me convidou a escrever sobre Ray Bradbury.
Martian Chronicles - Bradbury e Dennis Calero
The City - Bradbury e Mignola
Something Wicked... - Bradbury e Winberly
Night Meeting - Bradbury e Torres
Fahrenheit 451 - Bradbury e Hamilton
sábado, 7 de abril de 2012
O Homem ilustrado: Ray Bradbury em Banda Desenhada
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Saída de Emergência
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