quinta-feira, 1 de julho de 2010

El Eternauta, ou as muitas vidas de Juan Salvo


Se perguntarem a um Argentino qual a melhor Banda Desenhada de sempre publicada no seu país, é muito natural que El Eternauta seja referido. Alvo de inúmeras reedições (nem todas legais) e de várias continuações, o clássico de ficção científica escrito por H. G. Oesterheld e desenhado por Solano Lopez é a única obra de BD a integrar a colecção dos Clássicos da Literatura Argentina publicada pelo jornal EL CLARIN, o que diz bem da sua popularidade, importância e reconhecimento institucional.
Publicada ao longo de dois anos na revista HORA CERO SEMANAL entre 1957 e 1959, El Eternauta é o relato da invasão da cidade de Buenos Aires por forças extraterrestres, relato que é feito por um dos sobreviventes, Juan Salvo, ao próprio Oesterheld, que, num exercício de meta ficção, aparece como personagem da sua própria história. Tudo começa com a queda de uma estranha neve fluorescente que mata ao contacto com a pele, neve essa que abre o caminho para uma invasão extraterrestre comandada pelos Ellos, seres que nunca veremos, e executada por tropas de assalto compostas por seres de outros planetas, como os Cascarudos, animais de grande porte parecidos com escaravelhos gigantes, e os Manos, semelhantes aos humanos, com a excepção das mãos com imensos dedos, povos conquistados pelos Ellos e usados como carne para canhão na invasão ao planeta Terra.
Depois de uma série de peripécias, em torno do combate desigual dos sobreviventes contra os invasores, Juan Salvo entra acidentalmente numa máquina dos invasores que o transporta para outras dimensões, para longe da sua família, transformando-o “num peregrino através dos séculos, um viajante na eternidade, um ETERNAUTA”.
Uma dessas muitas viagens pelo espaço e pelo tempo trá-lo finalmente de volta a Buenos Aires, em 1959, onde encontra Oesterheld a quem conta o que se irá passar anos depois (a acção da história decorre em 1963) para que este, através da Banda Desenhada, avise os leitores para o que está para acontecer.
Se as histórias de invasões extraterrestres não eram propriamente novidade, o que era novidade era que essa invasão tivesse como cenário a cidade de Buenos Aires, onde viviam a maioria dos leitores de HORA CERO, que reconheciam com facilidade os cenários desenhados com rigor fotográfico por Solano Lopez e se identificavam com Juan Salvo e os seus amigos, grupo heterogéneo na sua composição social que representava os vários extractos da sociedade argentina e que é o verdadeiro herói da história, como salienta Oesterheld: “O verdadeiro herói de El Eternauta é um herói colectivo, um grupo de homens. Isso reflecte, embora sem intenção prévia, as minhas convicções: o único herói válido é o herói “em grupo”, nunca o herói individual, o herói solitário”.
Para além da dimensão espectacular da aventura, e de algumas cenas fortíssimas, como a sequência inicial com a neve mortal, esta história de um grupo de indivíduos normais colocados numa situação excepcional, tem momentos de pura poesia, como é o caso da magnífica cena em que um dos Manos (seres pacíficos, obrigados a combater pelos Ellos, que lhes infiltraram uma “glândula de terror”, que liberta uma substância que os mata caso sintam medo) se despede da vida cantando uma estranha canção.
Anos mais tarde, em 1969, Oesterheld vai recuperar, agora com arte de Alberto Breccia, El Eternauta. Publicada agora na GENTE, uma revista semanal de informação, esta ficção apocalíptica protagonizada por um indivíduo que, tal como Sherlock Time e Mort Cinder, outros personagens criados por Oesterheld, não está sujeito às leis do tempo, podendo, ao atravessar um portal dimensiona1, aparecer num outro local ou época, não teve a aceitação que merecia e os autores esperavam.
Talvez devido às mudanças na própria história (nesta nova versão, em vez de uma invasão global, as grandes potências fazem um acordo com os invasores extraterrestres, entregando-lhes a América do Sul) algo perturbador para as consciências ociosas dos leitores da revista GENTE, ou ao grafismo de Breccia, a milhas do estilo mais convencional de Solano Lopez e um pouco abstracto para o gosto do público, que tem dificuldade em reconhecer a cidade de Buenos Aires nas colagens de Breccia, choveram as cartas de protesto e o editor decidiu acabar com a série, pedindo desculpas aos leitores. Isto permite perceber o final circular da história (a melhor maneira que Oesterheld encontrou de concluir rapidamente a narrativa) e o desequilíbrio dos capítulos finais, em que Oesterheld condensou em quatro ou cinco páginas, repletas de texto, uma acção inicialmente prevista para ocupar quinze ou vinte páginas.
De qualquer modo, e apesar deste final inglório, estamos perante um trabalho graficamente inovador, em que Breccia, aqui claramente seduzido pela arte contemporânea, visível nas inúmeras referências à "Op Art" e à "Pop Art", começava a utilizar a técnica da colagem, abrindo caminho para o que iria ser uma característica marcante da sua produção na década seguinte.
Conforme refere Oesterheld: “A versão de El Eternauta publicada na GENTE foi um fracasso. E fracassou porque não era para essa revista. Eu era outro, não podia escrever o mesmo. E Breccia, por seu lado, também era outro. Este Eternauta tinha as suas virtudes e também os seus defeitos. Por um lado, a mensagem literária, por outro, a mensagem gráfica. Quanto à mensagem literária, apercebi-me, muito mais tarde, que me tinham suprimido parágrafos inteiros. (…) Em relação à parte gráfica, o verdadeiro final foi quando chamaram o Breccia e lhe explicaram que havia um desfasamento com o que o público queria e lhe pediram que suavizasse a coisa. Avisaram-no mais duas ou três vezes, mas ele nunca fez caso. Não aceitou fazer modificações e então decidiram acabar com El Eternauta”.

Mas o Eternauta regressaria numa segunda aventura desenhada por Solano Lopéz, cuja publicação se iniciou em 1976, na revista SKORPIO. Escrita por Oesterheld então já na clandestinidade, devido à sua ligação activa ao movimento Montonero, a história terminou a sua publicação numa altura em que Oesterheld já tinha “desaparecido” às mãos da ditadura militar argentina e provavelmente já nem estaria vivo. Nesta história, passada num futuro próximo, Oesterheld não se limita a escutar as aventuras de Juan Salvo, o Eternauta, mas participa activamente nelas como membro da resistência. Ou seja, o personagem, tal como o seu criador, assume uma opção clara pela acção directa. Apesar do traço de Solano Lopéz mostrar uma grande evolução, o carácter marcadamente panfletário da história, faz com que esta continuação seja bastante menos interessante. Juan Salvo, em vez de um homem normal, preocupado em recuperar a sua família, surge aqui como um líder revolucionário implacável, disposto a tudo sacrificar à sua causa.
Uma mudança radical no comportamento do herói que Solano Lopéz não aceitou bem, pondo mesmo em causa que tivesse sido o próprio Oesterheld a escrever toda a história, mas que é coerente com a forma como a obra de Oesterheld reflecte as suas opções políticas e ideológicas. Conforme refere Carlos Trillo: “não é preciso ser um grande caçador de metáforas para associar os Ellos com os militares que tomaram o poder”. Impressão que o facto das três versões já referidas do Eternauta, terem sido publicadas na sequência de golpes de estado militares, só vem reforçar.
Houve ainda outras versões de El Eternauta publicadas sem Oesterheld e nem sempre desenhadas por Solano Lopéz, mas nenhuma delas ficará na história, para além de revelarem à evidência a força do personagem criado por Oesterheld. Personagem que foi alvo de diversas adaptações teatrais e até de uma Ópera Rock, para além de uma adaptação cinematográfica que está em produção e que, ao contrário do que chegou a ser anunciado, não vai ser realizado por Lucrécia Martel.

A comemoração dos 50 anos da publicação de El Eternauta, que coincidiram com os 30 anos do “desaparecimento” de Oesterheld, trouxeram de novo El Eternauta para a ribalta mediática, o que se traduziu em iniciativas como a exposição na Biblioteca Nacional Argentina e, mais importante, numa reedição condigna de El Eternauta, feita pela Editora Norma, que permite a uma nova geração descobrir a obra-prima de Oesterheld e Solano Lopéz.
Texto originalmente publicado no nº 25 do BD Jornal, em Maio de 2010.

1 comentário:

Marcelo Fontana disse...

Parei no meio do post, pq até agora só li a primeira série e não queria ter a surpresa estragada.
Discordo que se possa afirmar que o "guionista de historieta" a quem Salvo conta sua história seja Oesterheld. Isso não fica expresso e não há a identificação.