
Uma das mais populares séries europeias de finais do século XX, Torpedo 1936, de Abuli e Bernet há muito que está ausente das livrarias portuguesas, apesar de ter tido vários episódios publicados em álbum pela Futura e nas revistas Mosquito e Selecções BD. Felizmente, o mesmo não sucede noutros países, onde a série tem sido reeditada com frequência.
Criada em 1981, por E. Sanchez Abuli nas páginas da revista Creepy, na sequência de uma encomenda de Marcelo Miralles, um dos colaboradores do editor Josep Toutain, que encomendou ao argumentista uma história com uma loura e um gangster, que pudesse ser usada como teste a um desenhador, Torpedo cedo ganhou vida própria. Pelo carisma do personagem, e sobretudo, pelas possibilidades que uma série destas dava a Abuli de homenagear o cinema negro e a literatura hard boiled, em histórias curtas que utilizam todos os clichés do género, subvertendo-os ao dar o protagonismo, não ao detective privado, mas a um mafioso cínico e sem ponta de escrúpulos, cuja figura se vai humanizando muito lentamente, à medida que vamos conhecendo o seu passado.

Para ilustrar esta viagem aos tempos áureos dos gangsters, foi escolhido o mestre americano Alex Toth, que deu também a sugestão do título: Torpedo era o nome dado na América dos anos 30 aos pistoleiros a soldo. Uma título que, como reconhece Bernet, “revela-se uma imagem perfeita para definir aqueles tipos que, uma vez que recebem o dinheiro e a incumbência de matar alguém, põem-se em marcha e não param até atingir o alvo. Exactamente como um torpedo!”
Desenhador veterano, ligado aos EC Comics e às revistas da editora Warren, Alex Toth pôs toda a sua elegância e sentido narrativo ao serviço da série, procurando no entanto suavizar o carácter demasiado explicito dos guiões de Abuli, o que não foi muito bem visto pelo argumentista espanhol. Como consequência dessas divergências criativas, Toth abandonaria a série ao fim de apenas dois episódios, incomodado com o sexo, violência e amoralidade dos argumentos de Abuli. Suceder-lhe-ia Jordi Bernet, filho de Jorge Bernet, um célebre desenhador espanhol, que, depois de substituir o seu pai, com apenas 15 anos, na série Doña Uraca, por morte deste, iniciaria uma carreira internacional nas páginas da revista Spirou, para onde desenhou as séries Dan Lacombe e Paul Foran, publicadas em Portugal no Mundo de Aventuras.

Justamente considerado como o mais americano dos desenhadores espanhois, Bernet cedo se conseguiu libertar da influência de Frank Robbins (desenhador a quem, curiosamente, Torpedo foi oferecido, após a desistência de Toth) para criar o seu próprio estilo, feito de dinamismo, sensualidade e uma notável eficácia narrativa.
Um estilo que o crítico italiano Francesco Coniglio definiu como “uma arquitectura gótica de sinais brancos e pretos que lembram de perto os filmes de Orson Welles e o jogo de luz do seu fotógrafo favorito, Greg Toland”. E não há dúvida que a série Torpedo é bem um exemplo da apurada técnica de preto e branco de Bernet, que reproduz fielmente no papel a estética do film noir, de que Torpedo é um legítimo herdeiro. Conforme o próprio Bernet declarou numa entrevista, “o branco e preto é o ideal para as histórias realistas, sobretudo as do género noir. Gosto de acentuar o dramatismo nas sequências que assim o exijam e, brincando com o preto e branco, consigo obter efeitos muito mais directos do que com a cor. O preto e branco é bem mais simples e eficaz. É mais forte, directo, natural.”

E Bernet não é o único a pensar assim. Também Will Eisner, o criador do Spirit, num texto publicado no 1º volume da edição espanhola, segue esta teoria, ao referir que, sendo uma “tradicional série negra, com raízes na literatura e no cinema da época, (a série Torpedo) jamais conseguiria obter um tal alto nível ambiental, nem teria o impacto que teve junto dos apreciadores de BD, caso tivesse sido feita a cores.”
Mas, tal como acontece no cinema, o grande público prefere a cor ao preto e branco e assim, à medida que a série começou a ganhar adeptos em todo o mundo, Torpedo passou a ser publicado a cores, e a data 1936, que localizava a época em que se desenrolava a acção, acabou por desaparecer do título, deixando perceber a importância cada vez maior do herói. Uma mudança que, mais do que traduzir a vontade natural dos seus autores, resultou da pressão dos editores, como a Glenat, editora francesa de Torpedo, que considerou esta medida indispensável para que Torpedo passasse, de uma série de culto, para um sucesso de grande público. A mudança deu-se no 4º álbum (que corresponde ao 6º volume da edição portuguesa da Futura, onde foi publicada a preto e branco) que, curiosamente, é o primeiro ocupado por uma única história, em vez dos tradicionais episódios curtos. E se a cor dos álbuns, relativamente discreta, não perturba, também não se afirma como uma grande mais valia, escondendo um pouco o excelente jogo de sombras de Bernet, cujo traço se vai gradualmente simplificando, sem perder personalidade.

Assim, ao longo de 20 anos e 15 álbuns, graças ao humor mortífero e aos notáveis diálogos de Abuli, e ao talento gráfico e à extraordinária eficácia narrativa de Bernet, a série Torpedo prosseguiu uma caminhada vitoriosa, com a mesma facilidade com que Luca Torelli liquidava os seus inimigos, preferencialmente a cores, mas também a preto e branco, como sucedeu com as edições americana e espanhola em formato comic book. Alvo de inúmeras homenagens e citações, como é o caso do Tornado, do nosso Estrompa, que só atestam a sua popularidade, Torpedo seria ainda transposto para a animação em 1995, num filme de 30 minutos realizado por J. A. Rojo, a partir da história Tic Tac, que pretendia ser o episódio piloto de uma série para televisão que não se chegou a concretizar. Extremamente fiel ao espírito e ao grafismo da BD original, esse filme foi editado em Portugal em 1996, pela Alfândega filmes, do Porto, e costumava estar à venda durante o Fantasporto.

Até que, em Dezembro de 2000, a carreira de Torpedo chegou ao fim. Aquilo que nem a polícia nem a Mafia tinham conseguido, pôr termo à vida do mais amoral dos heróis da BD, fizeram-no os seus próprios autores na sequência de um conflito de personalidades. Tudo começou quando o cantor espanhol Loquillo dedicou uma música a Torpedo, referindo no CD que o personagem era uma criação de Jordi Bernet, sem referir sequer o nome de Abuli. Ao saber que Bernet tinha tido conhecimento do facto, ainda antes do disco sair, e nada fez para o alterar, Abuli, enquanto verdadeiro criador de Torpedo, veio pedir explicações a Bernet. O temperamento latino dos dois autores espanhóis fez o resto, e assim ficou irremediavelmente desfeita uma das mais eficazes duplas da BD europeia, que para além dos 15 álbuns de Torpedo, já tinha dado provas da sua empatia em dezenas de histórias curtas, na série Snake e no álbum De vuelta a Casa.

A verdade é que, apesar do seu notável instinto de sobrevivência, Torpedo não chegou vivo ao século XXI. O que não impede que esteja a ser recuperado para os novos leitores, em edições integrais, a preto e branco. Seja graças à excelente edição francesa da Vent D'Ouest que recolhe os 15 álbuns da série num único volume de mais de 600 páginas, com uma relação qualidade/preço imbativel, ou da mais recente edição americana da IDW, de que saiu apenas o 1º volume e que conta com uma muito adequada tradução do desenhador e argumentista Jimmy Palmiotti, com quem Bernet tem colaborado na série Jonah Hex.
Versão actualizada de um texto escrito originalmente para a 2ª série da revista Selecções BD, que não chegou a ser publicado devido ao fecho da revista