terça-feira, 22 de dezembro de 2009
Marvels
Por entre os milhares de comics de super-heróis que as grandes editoras publicam todos os anos nos E.U.A., poucos são os que sobrevivem ao passar do tempo. Obras feitas de forma (quase) industrial, cumprem, melhor ou pior, a sua função de entreter o leitor durante alguns minutos, caindo depois no esquecimento, de onde raros são resgatados.
Claro que há excepções. Séries como o “Sandman”, de Neil Gaiman, “Dark Knight Returns”, de Frank Miller, ou Watchmen de Alan Moore e Dave Gibbons, marcaram decisivamente, para o bem e para o mal, os comics americanos das últimas décadas. “Marvels”, o livro que motiva este texto faz parte dessas excepções de luxo. Fabulosa viagem aos tempos gloriosos da “silver age” e uma nova reinterpretação dos mitos que deram fama à então “casa das Ideias”, “Marvels” está finalmente disponível em português de Portugal, 15 anos após a sua publicação original.
Escrita por Kurt Busiek e pintada por Alex Ross, “Marvels” analisa as implicações inerentes à existência dos super-heróis num mundo real. O tema em si não é inovador. Alan Moore, em “Watchmen”tinha partido de uma premissa semelhante para concluir da impossibilidade da coexistência entre os super-heróis e o resto da humanidade. Isto é, ao humanizar os super-heróis, pôs em causa a sua própria razão de ser. Busiek opta por uma abordagem diferente e, embora integre os super-heróis na nossa realidade quotidiana de forma realista, não os pretende humanizar. Pelo contrário. Em “Marvels”, os super-heróis são vistos como deuses que desceram à terra, com os cidadãos de New York apenas a assistirem, sem poderem intervir, aos momentos decisivos em que a história do universo Marvel está a ser escrita.
Uma história que nos é apresentada do ponto de vista do homem comum, que assiste impotente à chegada dos novos deuses que caminham sobre a Terra. Esse homem comum é Phil Sheldon, um repórter fotográfico, testemunha visual da maioria dos acontecimentos que, desde 1939 até aos anos 70, marcaram a vida de milhões de leitores das revistas da Marvel.
Um ponto de vista tanto mais curioso quanto é exactamente o inverso do utilizado por Stan Lee no início da década de 60, no que se convencionou chamar a “revolução Marvel”, em que, pela primeira vez, os super-heróis foram apresentados como indivíduos atormentados pelos mesmos problemas do cidadão comum, capazes dos mesmos tipos de sentimentos e emoções. Essa espécie de transposição dos temas das telenovelas para o universo dos super-heróis atingiu o seu auge na série “Homem-Aranha”, um super-herói que, além de combater o crime, tem também de se preocupar com os exames, com a namorada, com as contas por pagar e com a precária saúde da sua frágil Tia May. Um esquema que já há muito atingiu a exaustão, resultando cada vez mais patética a vã tentativa de dar uma ilusão de mudança num universo em que todos os esquemas já foram tentados e em que qualquer morte, ou mudança, nunca é definitiva…
A opção em “Marvels” é outra. As histórias escolhidas por Busiek fazem já parte da história dos comics americanos. São lendas de um tempo que passou e Busiek trata-as como tal, sem as procurar desmontar, nem explicar. O repórter fotográfico que narra a história desempenha um mero papel de relator dos acontecimentos, através de cujo testemunho nos é dada a imagem dos heróis da Marvel. Daí que seja acertada a escolha de um repórter fotográfico que não procura interpretar os factos, apenas registá-los. Assim, dos super-heróis, apenas nos ficam as fotografias de Sheldon e as notícias dos jornais. Nunca sabemos o que eles pensam, nem de onde vêm. São “maravilhas” que pairam nos céus de New York e cuja existência vai marcar a vida dos seus habitantes.
Exercício nostálgico de inegável fascínio, principalmente para quem acompanhou mês a mês os acontecimentos retratados, “Marvels” consegue aliar a dimensão mítica a um grande realismo, o que não é fácil de compatibilizar. Grande parte do mérito vai para Alex Ross, um artista de grande talento, cujas imagens pintadas de forma hiper-realista dão vida e consistência aos heróis da Marvel.
Esta obra histórica, termina sintomaticamente com a morte de Gwen Stacy, a inocente namorada do Homem-Aranha, símbolo de uma idade da inocência que terminou, para dar lugar aos novos tempos. Tempos em que os heróis clássicos cedem a vez a psicopatas violentos como o Punisher ou o Wolverine, para referir só dois dos mais populares heróis actuais da Marvel.
A edição da Bdmania está à altura da importância de “Marvels”. Bem impressa e bem traduzida, numa encadernação de capa dura, a edição apenas peca na escolha dos extras. Bem mais interessante do que a reprodução das notícias do “Daily Bugle”, teria sido publicar os esboços de Alex Ross e as fotografias que este usou como modelo para a sua versão hiper-realista dos super-heróis.
(“Marvels”, de Kurt Busiek e Alex Ross, BdMania, 240 pags, 19,99 €)
Versão alargada de um texto publicado no Diário As Beiras de 19/12/2009
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