sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Dellamorte Dellamore


Definitivamente, os zombies estão na moda, tanto no cinema, como na Banda Desenhada, onde a série Walking Dead, de Robert Kirkman, ao fim de 6 anos de publicação mensal continua a ser uma das mais interessantes séries em publicação no mercado americano. Depois de ver Zombieland, uma comédia com zombies, quase tão divertida como o inesquecível Shaun of the Dead, lembrei-me de recuperar um texto que escrevi em 2005 sobre um clássico dos filmes de zombies, publicado originalmente num site sobre cinema cujo nome não recordo e mais tarde reproduzido no fórum do site Tex.br pelo meu amigo José Carlos Francisco.
Esse clássico é Dellamorte Dellamore, (distribuído nos EUA com o título bem menos sujestivo de Cemetery Man) obra-prima de Michele Soavi, realizador sub-valorizado e discípulo inspirado de Dario Argento, mestre do “giallo” de quem Soavi foi assistente em Tenebrae e Phenomena, que aqui transpõe o universo peculiar de Ticianno Sclavi, o criador de Dylan Dog, para o grande ecrã.

Como refere António Pascoalinho, no catálogo da XVI edição do Fantasporto: “Michele Soavi não procurou afastar-se dos modelos associados ao gore: a morte, o sangue, o demónio, o Além, valores imutáveis de um imaginário que o público não dispensa neste género de filmes. O que ressalta à vista na sua obra é a vontade de adicionar poesia onde ela não deveria existir: na morte, no medo, nos crimes violentos. Através de um imenso cuidado estético. E, acima de tudo, com Arte. Como se Soavi não se considerasse um inventor. Limitando-se a fazer um trabalho idêntico a outros já existentes, mas reinventando-o. À sua maneira. E com alguns laivos de verdadeiro criador.”
Esse cuidado estético e a vontade de reinventar um género perfeitamente codificado, salientados por Pascoalinho, estão presentes em Dellamorte Dellamore, adaptação cinematográfica de um romance considerado “infilmável” de Sclavi, que através dos seus argumentos para a série Dylan Dog se afirmou como um dos mais singulares argumentistas italianos. Personagem deprimida e envolvida numa aura de mistério, Sclavi, que raramente dá entrevistas e muito menos se deixa fotografar, ganhou um prémio literário aos dezanove anos. Esse reconhecimento precoce do seu talento não lhe serviu de muito em termos de carreira pois, como refere “o público recebeu os seus livros com uma indiferença entusiástica”, o que o obrigou a trabalhar como jornalista, revisor e argumentista de BD para poder sobreviver, enquanto os seus romances, entre os quais Dellamorte Dellamore, aguardavam por um editor disposto a publicá-los.
É precisamente enquanto argumentista de BD que Sclavi vai iniciar uma colaboração com a editora Bonelli cujos “fumetti” (nome dado em Itália à BD) são um verdadeiro fenómeno editorial e sociológico. O segredo do sucesso de Bonelli, de que a série Tex é o exemplo mais representativo, consiste em fornecer aos leitores edições baratas, em pequeno formato, com muitas páginas, lançadas a um ritmo mensal. Essa receita, que consegue aliar uma produção quase industrial, com capacidade de lançar mais de mil páginas por mês, a uma qualidade muito razoável, nasceu como reacção ao boom da TV privada nos anos 70, que veio provocar uma crise no mercado da BD. Face a uma televisão que oferecia programas gratuitos para todos os gostos, Bonelli optou por propor aos seus leitores verdadeiras novelas gráficas de quase cem páginas, capazes de prender a atenção do leitor durante uma hora, ou mais, que vivem muito da notável capacidade produtiva de uma série de argumentistas de talento, como Sclavi aliado a um leque mais alargado de desenhadores.
Assim, além de criar Gli Aristocratici, com Alfredo Castelli, Sclavi vai assinar argumentos para outras séries da editora, como Zagor, Ken Parker e Mister No, antes de criar Dylan Dog em 1986, abrindo assim as portas do sucesso com o carismático detective do paranormal, cujas aventuras estiveram disponíveis em português através das edições mensais da editora brasileira Mythos .
Antes de criar Dylan Dog, Sclavi tinha proposto a Bonelli recuperar os personagens de Dellamorte Dellamore e transformá-los em heróis de uma série de BD, sendo Dellamorte uma espécie de estudo preparatório para Dylan Dog, com quem compartilha o aspecto físico e a forma de vestir. Essa ideia acabou por não se concretizar no papel, mas acontecerá de forma indirecta no cinema, graças ao filme de Michele Soavi a partir do romance, entretanto transformado num best-seller graças à popularidade que Dylan Dog trouxe a Sclavi. Depois de ter servido de modelo para Dylan Dog, o actor inglês Rupert Everett vai ser o protagonista de Dellamorte Dellamore, o filme que motiva esta crónica e que reflecte com sucesso o objectivo de Soavi de transpôr para o grande ecrã o universo único de Tiziano Sclavi.
Filme em que uma grande beleza se alia a um humor (muito) negro, Dellamorte Dellamore narra o dia-a-dia de Francesco Dellamorte, o melancólico guarda do cemitério da aldeia de Bufarolla que, além de enterrar os mortos, tem ainda que os matar definitivamente com um tiro na cabeça, quando eles ressuscitam como zombies sete dias depois, o que faz com um tédio e uma fleuma típicas de um funcionário público. Isolado do mundo, com a excepção do seu companheiro Gnaghi, um mudo com um atraso mental, que é personagem recorrente dos romances de Sclavi, e do seu amigo (imaginário?) Franco, com quem tem longas conversas telefónicas, Dellamorte vai descobrir a mulher da sua vida na pele de uma viúva (belíssima Anna Falchi) que acabará por matar, convencido que ela se tinha transformado também num zombie, depois de ter sido mordida pelo marido, recém-saído do túmulo em cima do qual ela fazia amor com Francesco.
História a meio caminho entre o drama psicológico e a comédia surreal, com contornos góticos, Dellamorte Dellamore (título que reflecte os dois temas sempre presentes na obra de Sclavi e na própria vida, o amor e a morte) é um filme visualmente arrebatador onde Michele Soavi, tal como Sclavi costuma fazer nas histórias de Dylan Dog, não poupa nas citações. Assim, na cena em que Francesco e a viúva, com os rostos envoltos num véu, se beijam no ossário, a imagem remete para o quadro Os Amantes de Magritte, do mesmo modo que a fonte no meio do cemitério é uma miniatura da Ilha dos Mortos de Arnold Brocklin.
Filme absolutamente recomendável e obra com todas as características para se tornar (como se tornou) um filme de culto, Dellamorte Dellamore não está (naturalmente) editado em Portugal. Para além da edição italiana em zona 2, existe também uma edição espanhola com o título (bastante ridículo) de Mi Novia es un Zombie, mas que tem a grande vantagem de se encontrar com facilidade em qualquer canto de Espanha, nos saldos do El Corte Inglês a um preço muito acessível.
Aqui fica a sugestão para que descubram o trabalho singular de Tiziano Sclavi, quer através do filme de Soavi quer das BDs de Dylan Dog, o detective do paranormal a que Rupert Everett deu a cara tanto na BD como (indirectamente) no cinema.

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