quinta-feira, 18 de julho de 2019

Novela Gráfica V 3 - A Febre de Urbicanda


Como acontece nos casos em que sou o autor do prefácio do livro, em vez de transcrever o texto do Público ( que podem sempre ler, carregando na imagem abaixo) aqui vos deixo o prefácio. É sempre um prazer escrever sobre As Cidades Obscuras e ainda mais sobre este livro, que foi o primeiro da série que comprei, em 1986, na FNAC de Les Halles, em Paris. Também por essas memórias, e pelo muito que me liga a essa série e aos seus autores, é sempre bom regressar a Urbicanda, ou a qualquer outra Cidade Obscura.

REGRESSO A URBICANDA


No mesmo ano em que nos países francófonos se conclui a edição integral em quatro volumes da série As Cidades Obscuras, eis que finalmente é reeditado em Portugal um dos títulos fundadores do universo criado por François Schuiten e Benoit Peeters, A Febre de Urbicanda. Objecto de uma primeira edição nacional, no final da década de 80 do século XX, o clássico de Schuiten e Peeters regressa agora numa edição definitiva que, para além de um dossier final sobre a lenda da Estrutura, inclui também a história A Última Visão de Eugen Robick, feita em 1997 para o número final da revista (A Suivre) onde a série nasceu.
Efectivamente, tudo começou em 1983, nas páginas da revista (A Suivre) com Samaris, a primeira das Cidades Obscuras dada a conhecer por Schuiten e Peeters. na história Les Murailles de Samaris.  O que era inicialmente para ser uma aventura independente, de homenagem à Arte Nova e à arquitectura em trompe l’oeil, viria a dar origem a uma série de histórias autónomas, passadas num mesmo universo que os próprios autores definem como sendo um reflexo deslocado da Terra, mas num tempo indefinido, parado algures na transição do século XIX para o XX.
Não sendo a primeira, A Febre de Urbicanda é, efectivamente a história que melhor abarca o conceito de “Roman BD” – termo associado à revista (A Suivre) que em França designou inicialmente a Novela Gráfica – com histórias preto e branco de longo fôlego, estruturadas em capítulos e marcadas pela ausência de um limite de páginas pré-estabelecido, e que, de facto, fundou o universo da série “a posteriori”. Aspecto que fica bem patente logo nas páginas iniciais de BD, ambientadas no gabinete de Robick, cujas paredes estão decoradas com um grande mapa do Continente Obscuro, onde são visíveis nomes de cidades como Alaxis, Xhystos e Samaris. Do mesmo modo, aquando da posterior reedição em livro de As Muralhas de Samaris, os autores acrescentaram algumas páginas no final, em que aparece um jovem Eugen Robick, então a viver em Xhystos, criando assim uma ligação entre os dois livros, cuja acção, percebe-se então, tem lugar no mesmo universo: o universo das Cidades Obscuras (designação inventada por Jean Paul Mougin, director da (A Suivre). Um universo que é constituído por uma série de cidades fantásticas, verdadeiros protagonistas de histórias fascinantes, que têm como pano de fundo as relações entre a arquitectura, as emoções e o poder. Histórias que procuram responder a uma questão fundamental: até que ponto as características de uma cidade podem moldar o comportamento dos seus habitantes e a evolução da própria narrativa?
Conforme refere Benoit Peeters: “o cenário, para nós não é um elemento secundário: é a partir dele que o conjunto da narrativa se organiza. Na maior parte das bandas desenhadas, o motor e o centro da narrativa é uma personagem que se reencontra, álbum após álbum. Completamente diferente é o projecto das Cidades Obscuras, em que é uma cidade que dá a cada história a sua unidade; não uma cidade real que trabalhos de localização permitissem alcançar, mas uma cidade inteiramente fictícia, fragmento de um universo paralelo cuja imagem global se desenha pouco a pouco”.
Neste caso, a cidade é Urbicanda, uma utopia arquitectónica baseada no rigor do planeamento e na simetria, em que o crescimento geométrico de um misterioso cubo feito de uma matéria desconhecida, vem perturbar e transformar a vida dos seus habitantes e a imagem da própria cidade. Embora o nome de Robick, o urbitecto responsável pela imagem uniforme da cidade, remeta para o cubo de Rubik, brinquedo quebra-cabeças muito em voga nos anos 80, e a história tenha precisamente seis capítulos – tantos quanto as faces de um cubo - a principal fonte de inspiração para o urbitecto foi o próprio pai de Schuiten, Robert Schuiten, arquitecto de profissão, tal como as cidades construídas de raiz, como Brasília -  que os autores só visitaram em 1997, ano da morte do pai de Schuiten – serviram de inspiração para Urbicanda. A mesma Brasília, traçada por Óscar Neimeyer,  onde reencontraremos Robick, na história curta para o último número da revista (A Suivre) que encerra este volume.

Para além da arquitectura fascista e dos projectos utópicos de Boulée e Ledoux,  expressamente citados na carta de Robick à Comissão das Altas Instâncias, que abre o livro, o universo imponente de Urbicanda é particularmente inspirado em trabalhos realizados por estudantes de arquitectura das Belas-Artes de Paris na década de 30. O que nos remete para outra das características marcantes da série, o recurso a uma ficção-científica “retro”, extrapolada a partir das utopias e dos projectos futuristas do princípio do século e de finais do século XIX.
Ao contrário de um Edgar P. Jacobs – de quem François Schuiten é um profundo admirador, como o demonstrar o recente Blake e Mortimer que desenhou - que, quando se propôs descrever o futuro em A Armadilha Diabólica, acaba, em vez disso, por retratar, com poucas extrapolações, a tecnologia de 1958, a tecnologia da Exposição Universal que vira dois anos antes em Bruxelas, o universo das Cidades Obscuras está mais fora do tempo. Nas palavras de Peeters, “o universo que descrevemos é um universo ligeiramente deslocado, mas cheio de elementos tirados do nosso universo. Evoca, de facto, aquilo que teria acontecido se tivesse havido uma espécie de falha temporal, se em lugar de evoluir no sentido que nós conhecemos, a arquitectura e as técnicas tivessem ligeiramente bifurcado a partir de um certo estádio, para seguir até ao fim uma direcção que, na realidade, foi muito depressa abandonada”.
Série maior da BD franco-belga, que cedo ultrapassou os limites da própria Banda Desenhada, para dar origem a livros ilustrados, documentários, um guia de viagens, exposições, intervenções cenográficas, um congresso que teve lugar em Coimbra em 1998 – cujas actas foram recolhidas no livro As Cidades Visíveis - e até a Estações de Metro, em Paris e Bruxelas, as Cidades Obscuras são um marco incontornável na história da Banda Desenhada e A Febre de Urbicanda é um das melhores portas de entrada nesse universo fascinante.
Publicado originalmente como prefácio do livro A Febre de Urbicanda, terceiro volume da colecção Novela Gráfica de 2019

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