domingo, 14 de julho de 2019

Novela Gráfica V 2 - Frango com Ameixas

O HOMEM QUE SE DEIXOU MORRER

Novela Gráfica V - Vol 2
Frango com Ameixas
Argumento e Desenhos – Marjane Satrapi
Quinta-feira, 13 de Junho
Por + 10,90 € 
Depois de Paco Roca no volume inicial, a Colecção Novela Gráfica de 2019 abre as suas portas a outro grande nome da BD europeia, Marjane Satrapi, que se estreia no catálogo do Público e da Levoir com o seu trabalho mais consistente, Frango com Ameixas.
Terceira mulher a assegurar presença na Colecção Novela Gráfica, depois de Zeina Abirached na Colecção de 2016 e Pénélope Bagieu na Colecção de 2018, Satrapi nasceu  no Irão em 1969, no seio de uma família de esquerda com grande peso no país (o bisavô foi o último Imperador da dinastia Qajar e o avô chegou a ser Primeiro Ministro) e tinha tinha apenas dez anos quando se deu a revolução que levou ao exílio do Xá e à instauração de uma República Islâmica, tendo vivido por dentro um momento fulcral da história do seu país. Um momento que soube transpor para o papel com eficácia, sensibilidade e rigor, em Persépolis, o título que lhe deu fama e que a própria adaptou ao cinema, num filme de animação co-realizado com Vincent Paronnaud.
Se Persépolis tinha uma carga autobiográfica dominante - algo natural em alguém como Satrapi, que viveu acontecimentos marcantes e que, como a própria confessou numa entrevista “tenho uma excelente memória, o meu cérebro não faz qualquer selecção. Lembro-me de tudo. O que é muito bom quando queremos trabalhar, mas é muito mau quando queremos viver” - Frango com Ameixas parte de factos reais relacionados com a história familiar da autora, para construir uma narrativa mais rica e muito menos linear do que em Persépolis, sendo evidente uma evolução de Marjane enquanto contadora de histórias, bem expressa na forma como ela gere a revelação sobre o verdadeiro motivo para Nasser se deixar morrer.
Actualmente a viver em França, Satrapi, que frequentou o Liceu Francês de Teerão até 1980, tem uma formação cultural muito próxima cultura francesa, incluindo no campo da BD. Também aqui as referências de Satrapi são francesas especialmente David B. e os autores da editora francesa L’Association, o que é natural pois para além de não existir tradição de BD no Irão, a autora partilhou o atelier com Cristophe Blain (o autor de “Isaac, o Pirata”, cuja namorada da altura era a melhor amiga de Marjane), Emmanuel Guibert, Joann Sfar e o próprio David B., que a encorajou a passar a sua vivência ao papel e assina a introdução do primeiro volume da edição original francesa de Persépolis. Muito longe de ter o virtuosismo de David B., um mestre do preto e branco, Satrapi defende-se ainda assim bastante bem, graças a um grafismo muito depurado e quase Naif mas de grande eficácia narrativa, servido por um preto e branco contrastado, que guia o olhar do leitor para o que é essencial. Um estilo que se mantém reconhecível em Frango com Ameixas, embora com evidentes melhorias em termos de utilização da perspectiva.
O livro que chegará às bancas com o Público na próxima quinta-feira e que venceu o prémio de melhor álbum no Festival de Angoulême de 2005 e foi adaptado ao cinema pela própria Satrapi em 2011, num filme com a portuguesa Maria de Medeiros no elenco, conta a história de Nasser Ali Khan, tio-avô de Marjane, um famoso músico que viveu no Irão de 1958. Na sequência de uma discussão familiar, o seu tar, o instrumento de que é virtuoso e que é o seu bem mais precioso, é partido. Nenhum outro tar o irá satisfazer e Nasser vai perder o gosto pela música. Tomado de uma melancolia imensa, decide deixar-se morrer, levando-nos numa viagem às suas emoções, aos seus sonhos e à sua história pessoal, que se mistura com a do seu Irão natal num período conturbado da sua história.
Se em Persépolis a realidade histórica é o fulcro da narrativa, aqui é apenas o ponto de partida, pois como a autora confessa a propósito do tio-avô: “dele, tudo o que vi, foi uma fotografia de família em que ele tinha um ar tão romântico e evocativo e, ao mesmo, muito intenso e muito belo... e sabia que tinha sido um grande músico e tinha morrido de tristeza. Só isso.” E “isso” é o ponto de partida para uma narrativa fascinante, que mistura sonho e realidade, história e ficção, amor e sofrimento e em que cada história contém em si outras histórias.
Publicado originalmente no jornal Público de 06/07/2019

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