domingo, 22 de agosto de 2010
Lá Fora II - Theodore Poussin Integrale vol 1
O mais recente clássico a ser recuperado pela Editora Dupuis nas excelentes edições integrais a que editora belga já nos habituou, foi “Theodore Poussin” de Frank Le Gall, uma excelente série de aventuras marítimas de que saíram 12 episódios entre 1987 e 2005, dos quais, apenas o primeiro episódio chegou a ser publicado em português, pela Meribérica. Série herdeira da aventura romântica na tradição de Corto Maltese, embora o cenário e o registo gráfico seja outro, com o Pacífico a dar lugar ao Índico e ao Mar da China, esta belíssima saga, que tem Conrad e Baudelaire como principais referências, alia um grafismo caricatural, próximo da escola de Marcinele que caracteriza os autores da revista SPIROU, mas que evoluiu rapidamente para um registo mais realista, próximo da “linha clara”, a uma intriga bem elaborada e de um romantismo exacerbado, que celebra igualmente a aventura em cenários exóticos.
Theodore Poussin (o próprio apelido, que significa “pintainho”, indica que se trata de alguém sem experiência que só as duras vivências ajudarão a transformar num galo) é o mais improvável dos heróis. Modesto escriturário de uma grande companhia de navegação, míope, franzino e quase careca, apesar de viver num porto como Dunquerque e da tradição marítima da sua família, sonha com lugares distantes e paragens exóticas que apenas conhece através da leitura dos romances. Ao aceitar a oportunidade que lhe é oferecida de embarcar para os Mares da China, Theodore não imagina as partidas que o destino, protagonizado pelo enigmático Monsieur Novembre lhe pregará, dando razão aos versos de Baudelaire que sintetizam o doloroso processo de crescimento e descoberta que o jovem Pintainho viverá ao longo das suas aventuras: “amargo saber, o que se colhe nas viagens”.
Ao longo dos seis álbuns que constituem o primeiro ciclo da série, Poussin vagueia da Indochina ao Ceilão, sem nunca encontrar aquilo que procura, seja o misterioso Capitão Steene que, apesar de apenas aparecer de forma extremamente fugaz no primeiro álbum, é uma sombra omnipresente ao longo de todo o ciclo, seja o tesouro de Laurence Brooke, o Rajá Branco, ou até Marie Verité. Personagem que dá nome ao terceiro álbum da série, escrito em parceria com Yann (argumentista do primeiro volume da série Sambre, de Yslaire, a mais romântica BD franco-belga das últimas décadas), Marie Verité (que também é nome de barco) vem comprovar o simbolismo dos nomes que frequentemente encontramos nesta série. Das duas Marie Verité que Theodore encontra, nenhuma é a genuína, o que vem provar que não há uma, mas várias verdades, o que já tinhamos percebido através dos vários retratos que do Capitão Steene traçavam os vários personagens que o tinham conhecido.
Depois de arriscar a vida nas mais remotas paragens, conhecendo personagens fascinantes, capazes dos mais heróicos actos e das mais baixas traições, muitas vezes em simultâneo — como Georges Town, o sanguinário pirata de “Le Mangeur D’Archipels”, que faz de Theodore o seu biografo oficial, procurando no registo e publicação das suas memórias a explicação e o branqueamento de uma vida de crimes —, só ao regressar a casa Theodore Poussin encontrará aquilo que procurou. Tal como em “Le Trésor de Rackam Le Rouge”, de Hergé, o tesouro que Tintin e Haddock procuraram numa ilha distante estava à sua espera em Moulinsart, também Theodore vai finalmente encontrar o Capitão Steene em Dunquerque, numa casa perto das dunas onde brincava em criança; Capitão Steene que, na realidade, é o verdadeiro pai do herói, que, tal como o Monge, da “Balada do Mar Salgado”, se dedicara à pirataria em paragens distantes como forma de expiar um amor trágico e contrariado.
Coincidências que estão longe de ser inocentes, pois são várias as homenagens de Le Gall a Pratt e, sobretudo, a Hergé (basta ver o título dos 4º e 5º volume da série, que constituem uma história única, “Secrets” e “Le Tresor du Rajá Blanc”, que remetem naturalmente para o díptico das aventuras de Tintin: “Le Secret de La Licorne” e “Le Tresor de Rackham Le Rouge”…) ao longo da série, sem que isso interfira com o normal fluir da intriga, o que só prova o talento do jovem autor belga, cujo grafismo vai evoluindo e ganhando um cunho mais realista ao longo da série, amadurecendo ao mesmo tempo que o herói.
A excelente edição da Dupuis, enriquecida por um dossier de 36 páginas, recolhe apenas os 4 primeiros volumes, pelo que será preciso esperar pelo 2º volume da edição integral para o leitor ter resposta a muitas das perguntas levantadas nestes álbuns. Mas a espera vai valer a pena, pela grande qualidade da série e pela forma como o traço de Le Gall, que evoluiu brutalmente em apenas três álbuns, atinge a maturidade plena.
Theodore Poussin L'Intégrale 1, de Frank Le Gall, Dupuis, 240 pags, 28,80 € na Livraria Dr Kartoon
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