sexta-feira, 21 de maio de 2010
Imprensa Canalha
Num tempo em que muitos se rendem à impressão digital, ou trocam a edição em papel pelo suporte virtual da Internet, ou dos e-books, ainda há quem cultive o livro como objecto artesanal, recuperando velhas técnicas de impressão, da gravura à serigrafia.
É o que acontece com a Imprensa Canalha, uma pequena editora independente de Lisboa, que trata cada edição como um objecto único, tanto em termos de concepção como de produção. Um projecto amador, cujas edições, sem distribuição no circuito comercial, só podem ser adquiridas mediante subscrição, em acontecimentos como as Feiras Laicas ou em algumas Livrarias especializadas.
O cérebro (e as mãos) por detrás da Imprensa Canalha, pertencem a um homem de Coimbra, José Feitor, que aí nasceu em 1972 e se licenciou na Faculdade de Letras da UC. Mas foi já na cidade de Lisboa que surgiu, em 2001, o seu anterior projecto, o saudoso fanzine Zundap, publicação amadora cuja numeração aleatória (o número a aparecer na capa de cada edição era escolhido ao acaso) irritava sobremaneira os completistas. Com uma mancha gráfica limpa e um predomínio do texto sobre a imagem, nos primeiros números essencialmente a cargo de Feitor, a Zundap terminou a sua corrida em 2005, com um nº 100, onde havia lugar para a música, de Hank Williams a Caetano Veloso, mas também para a Banda Desenhada, com uma entrevista a Marjane Satrapi, a autora de Persepolis e uma BD de Artur Varela, nome esquecido para cuja divulgação a Zundap assumiu um papel importante.
Encostada a Zundap na garagem, chegaria a vez do projecto mais ambicioso da Imprensa Canalha que, nas palavras do seu fundador é “um projecto editorial independente que se propõe publicar material impresso de natureza gráfica. Partindo de uma lógica de produção e distribuição que se radica no mundo dos fanzines, a Imprensa Canalha propõe-se optimizar gradualmente as suas publicações sem perder de vista as suas premissas enquanto entidade alternativa de edição.”
A primeira edição da Imprensa Canalha, em 2006, foi o fanzine Néscio, uma “revista portuguesa de idâias” (sic), que tinha como propósito fazer um exercício gráfico de observação e comentário ao quotidiano do país, que se revela uma “fonte inesgotável de inspiração, tanto no que diz respeito aos conteúdos como às imagens”. Impresso a laser a preto e branco, com capa de cartolina, Néscio não se afasta em termos de produção do que é habitual nos fanzines, incluindo o Zundap, não deixando de revelar um toque de apuro e um cuidado extra que se tornarão imagem de marca da Imprensa Canalha, neste caso dado pelo CD Amálgama Sonora Nacional, (Portugal, de Hermínia Silva aos Ocaso épico), uma colagem sonora feita por Filipe Leote, que acompanha a edição. A gradual optimização das produções da Imprensa Canalha é bem visível em Babinski, o quarto título lançado, numa cuidada edição, em que a alta gramagem do papel e o formato pouco habitual do livro, no chamado “formato italiano”, sobre o deitado, valorizam as notáveis ilustrações de Luís Henriques, autor que venceu em 2007 e 2009 o prémio para o Melhor Desenhador Português, no Festival de Banda Desenhada da Amadora. Um belíssimo livro, que se revelou também um sucesso comercial, com a tiragem de 500 exemplares praticamente esgotada.
Alternando formatos e autores, com José Feitor a assegurar pela sua parte três títulos, Mundo dos Insectos, Animais! e Raças Humanas, que constituem uma trilogia que traça “uma dissertação gráfica à volta da natureza humana, na sua interacção com os outros animais e consigo própria”, a Imprensa Canalha já tem 12 edições publicadas em três anos, estando a caminho um 13º título, Satanic Holidays/Days of Celebration, de José Cardoso. O mais ambicioso dos títulos lançados, até agora, é Derby, uma edição em grande formato, toda impressa em serigrafia, por método directo (com as imagens a serem desenhadas directamente em quadros de serigrafia) que reúne10 ilustradores, cinco de Lisboa (André Lemos, João Maio Pinto, Filipe Abranches, Júcifer e Luís Henriques) e cinco do Porto (Marco Mendes, Miguel Carneiro, Nuno de Sousa, Carlos Pinheiro e José Cardoso), num duelo gráfico Norte/Sul, tal como os duelos futebolísticos para que o título remete (embora erradamente, pois um derby é um duelo entre duas equipas da mesma cidade, ou da mesma região). Revelando a aposta em diferentes materiais e formatos, Portugal, 1973 e Flims, são dois DVDs que recolhem pequenos filmes de Artur Varela, criador multimédia que volta a ser editado por Feitor, depois do fanzine Zundap, enquanto que Cabeça de Ferro, uma antologia sobre a Revolução Industrial, que além do próprio Feitor, conta com a colaboração de ilustradores como Filipe Abranches, Luís Henriques, João Maio Pinto e Richard Câmara, está encadernada com parafusos e tem como banda sonora o CD Amálgama Sonora Industrial, uma colagem sonora de Filipe Leote.
E o catálogo da Imprensa Canalha vai alargar-se ainda mais, com a criação de uma colecção dedicada à literatura infantil, onde escritores e ilustradores convidados, se associam para criar um livrinho de formato quadrado (12 cmx12 cm) para crianças, impresso em serigrafia a duas cores. O primeiro volume já está a ser escrito por Valter Hugo Mãe e conta com ilustrações de Rosa Baptista.
Mas os projectos de José Feitor nesta área não se ficam pela Imprensa Canalha. Acabada de criar está a Oficina do Cego, uma associação cultural sem fins lucrativos, fundada em 2009, que tem como objectivo “a promoção das artes gráficas, através da prática e da divulgação de diferentes técnicas de impressão, da formação no âmbito das técnicas e da sua história, da edição de autor em pequenas tiragens.”
Esta associação que se perspectiva como “laboratório para a produção de livros de artista e objectos impressos afins, em todas as suas vertentes, integrando todas as suas fases de prossecução”, conforme pode ler-se no seu manifesto/nota de apresentação, agrupa, além de uma série de ilustradores que já têm colaborado com a editora, como João Maio Pinto e Luís Henriques, e de António Miguel Coelho, responsável pelo Atelier de Serigrafia Mike Goes West, os “teóricos” Pedro Vieira de Moura e Sara Figueiredo Costa.
Resta esperar para ver o que este colectivo vai fazer em termos da exploração das inúmeras possibilidades da impressão artística, mas tendo em conta os nomes envolvidos e o excelente trabalho feito até agora pela Imprensa Canalha, não restam grandes dúvidas que o objectivo da Associação de “contribuir para uma qualidade acrescida na paisagem da edição de autor em Portugal”, será plenamente cumprido.
Texto originalmente publicado no nº 28 da revista "Rua Larga", editada pela Reitoria da Universidade de Coimbra em Abril de 2010. Agradecimentos ao Pedro Dias da Silva pelo convite e ao José Feitor pelas correcções.
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