terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Evocando Jorge Magalhães (1938-2018)

Foi hoje a cremar um do mais importantes editores portugueses, que foi também argumentista, escritor, tradutor, poeta, investigador, blogger e, sobretudo, um apaixonado pela Banda Desenhada. Mas, mais do que traçar a sua biografia, o que já foi feito (e bem feito) aqui, o objectivo é transmitir o meu testemunho sobre um amigo.
Muito antes de o conhecer pessoalmente, já o Jorge Magalhães (a par com o Dinís Machado e o Vasco Granja, na revista Tintin) tinha sido fundamental na minha formação como leitor de BD, através de revistas que coordenou, como as quintas séries do Mundo de Aventuras e do Mosquito, dois títulos clássicos que o Jorge Magalhães soube renovar.
No Mundo de Aventuras, conciliou os clássicos americanos com a BD franco-belga (a capa que escolhi para ilustrar este texto é bem disso exemplo, juntando Flash Gordon e Jerry Spring, o fantástico Western de Jijé, publicado, como deve ser, a preto e branco).Um espaço que acolheu grandes nomes da BD franco-belga, clássicos americanos dos jornais e grandes desenhadores a trabalharem para os comics americanos,  como Barry Windsor-Smith (Conan), Mike Kaluta (Carson de Vénus) e Bernie Wrightson (Swamp Thing), que se estrearam em Portugal no Mundo de Aventuras. Também para os autores portugueses o Mundo de Aventuras foi muito importante, recuperando trabalhos de Vítor Péon e Fernando Bento, entre outros e dando uma oportunidade um punhado de jovens autores, alguns dos quais acabariam por desaparecer de circulação, como o Zenetto, enquanto outros, como o Luís Louro, se mantém bem activos.
No Mosquito (V série) a grande aposta foi nos inúmeros talentos espanhóis e sul-americanos, com destaque óbvio para o Torpedo de Abuli e Bernet, mas a revista publicou também pela primeira vez em Portugal Juan Gimenez, Mandrafina, Horacio Altuna, Solano Lopez, Manfred Sommer e Yves Chaland, para além de algumas das melhores histórias curtas de Moebius, como The Long Tomorrow e Cidadela Cega.
Viria a conhecê-lo pessoalmente no final da década de 90, graças à última revista que coordenou, as Selecções da BD (2ª série), onde me convidou a escrever um artigo sobre a exposição Uma Revolução Desenhada: O 25 de Abril e BD, de que fui um dos organizadores, publicado no nº 8, de Junho de 1999. Esse  foi apenas o primeiro dos textos que escrevi para a revista, pois entre o nº 12 e o nº 31 (último número da revista, publicado em Maio de 2001) publiquei mais 24 textos, entre entrevistas, reportagens e artigos encomendados pelo Jorge, ou propostos por mim.
Durante esse período de três anos, estabelecemos uma amizade, cimentada nas longas conversas sobre BD que tínhamos, quando eu passava pela sede da Meribérica, na Avenida Duque de Ávila, onde o funcionava a redacção das Selecções BD, ou por via telefónica.
Ainda nesse mesmo ano de 2001, quando fui convidado para comissariar a exposição central do AmadoraBD, que tinha como tema Confluências e Influências Externas na BD portuguesa, pedi ao  Jorge que fizesse um texto para o catálogo (isto, nos tempos, não muito distantes, em que o Festival da Amadora publicava catálogos e esses catálogos até saiam a tempo do Festival...) sobre a Banda Desenhada inglesa, tema de que era um profundo conhecedor.
Voltámos a colaborar em 2003, já eu estava na Devir, onde, por sugestão minha, o José de Freitas o convidou a colaborar connosco na colecção Os Clássicos da Banda Desenhada, que foi lançada com o jornal Correio da Manhã. Nessa colecção de 25 volumes, o Jorge participou na adaptação dos textos introdutórios (que tinham de seguir o modelo da edição italiana) dos volumes dedicados ao Flash Gordon, Mandrake e Fantasma e Tarzan, tendo igualmente traduzido as histórias desse número, desenhadas pelo grande Russ Manning.
Foi também nesse ano que, graças a ele e à sua filha Maria José, pude conhecer pessoalmente um dos ídolos da minha infância, o Vasco Granja, graças à exposição Vasco Granja: Uma vida... 1000 Imagens, apresentada na Exponor (um espaço que, anos mais tarde iria acolher a Comic Con), para cujo catálogo escrevi um texto sobre a minha experiência como leitor da revista Tintin.
 Se havia uma característica na paixão do Jorge pela Banda Desenhada era o seu ecletismo. Embora preferisse a BD de aventuras em estilo realista e o Western, estava bastante atento a tudo o que se publicava, o que nos proporcionou agradáveis conversas a propósito das colecções de Novelas Gráficas que a Levoir tem editado com o jornal Público, de que era leitor fiel.
Aliás, foi precisamente enquanto colaborador da Levoir que voltei a trabalhar com o Jorge Magalhães, desta vez na edição integral da série Torpedo, que coordenei com o José de Freitas. O Jorge, que tinha sido o responsável pela publicação da série no Mosquito, tendo traduzido todas as histórias que saíram nessa revista e também nas Selecções BD, assinou um belíssimo artigo sobre a publicação da série em Portugal, intitulado Torpedo: da Creepy para o Mosquito, publicado no quinto volume dessa edição integral que recuperou as traduções que tinha feito, cabendo-me a mim e ao Pedro Cleto traduzir o resto das histórias.
Naturalmente, quando ainda em 2018, lançámos a Colecção dedicada aos fumetti da editora Bonelli, convidei-o para assinar um dos prefácios, mas como o seu personagem preferido, Tex, já tinha prefaciadores atribuídos e os prazos da Levoir eram muito apertados, o Jorge acabou por recusar o convite.
Voltei a cruzar-me com ele em Setembro, na sessão que o Clube Tex Portugal organizou na sede do clube português de Banda Desenhada, onde estiveram os autores Moreno Burattini e Bruno Ramella, falámos brevemente, estando eu longe de imaginar que esta seria a ultima conversa que teríamos.
No jantar de encerramento do AmadoraBD soube que estava internado com uma anemia, mas pensei que iria recuperar, o que acabou por não acontecer. Numa coincidência macabra, lembrei-me que, precisamente um ano antes, outro amigo e também nome incontornável da BD nacional, o Fernando Relvas, dava entrada num hospital para também de lá não mais sair.
Fica a saudade das nossas longas conversas telefónicas sobre BD que normalmente se prolongavam por mais de uma hora e da sua simpatia de delicadeza.
Como me dizia a sua filha, numa mensagem que me enviou, “o meu pai gostaria de saber que todos os que podem, se continuarão a bater pela BD em Portugal”. O combate do Jorge terminou no passado sábado, mas não falta na sua família quem mantenham essa chama bem acesa. Desde a sua companheira inseparável, Catherine Labey, passando pela sua filha, a editora Maria José Pereira, até aos seus netos, Ricardo e João, que acabaram de abrir uma editora cujo primeiro título foi um livro de David Rubin e Santiago Garcia, baseado na lenda de Beowulf, um poema épico de que o próprio Jorge Magalhães já tinha traduzido uma versão.

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