Unanimemente considerado como um dos mais talentosos e personalizados autores portugueses de banda desenhada das últimas décadas, Fernando Relvas [Lisboa, 1954], apesar de já ter completado trinta anos de carreira, continua praticamente desaparecido das livrarias, com cinco livros publicados, que actualmente são quase impossíveis de encontrar. Uma situação que o regresso do autor a Portugal, poderá ajudar a mudar.
Tendo-se estreado nestas vidas ingratas da BD em 1974, na Gazeta da Semana. Relvas vai começar por dar nas vistas na revista Fungagá, para a qual realiza várias histórias que lhe servirão de cartão de apresentação para o próximo e decisivo passo da sua carreira, a publicação no Tintin português. Beneficiando do espírito de abertura em relação aos novos autores portugueses revelado por Dinis Machado e Vasco Granja, então responsáveis pela revista, Relvas vai-se estrear no Tintin em 1978, onde manterá uma presença ininterrupta até ao fim da revista.
A inserção no Tintin de um suplemento a preto e branco (por onde passou também o Corto Maltese de Hugo Pratt) veio diminuir substancialmente os custos da publicação de autores portugueses e o jovem autor aproveitou bem esta oportunidade de publicação para fazer nascer o Espião Acácio. Crónica humorística da Primeira Grande Guerra, inspirada pela leitura da Ilustracão Portuguesa, revista do princípio do século que funcionaria como principal fonte iconográfica e documental, a série cedo conquistaria os leitores do Tíntin, que aderiram sem reservas ao traço personalizado e ao humor de Relvas. Constituída por episódios de duas páginas, a série iria chegar quase à centena de páginas, apesar de ter terminado sem deixar muitas saudades... Relvas, talvez cansado deste tipo de humor, vai na fase final da série introduzir elementos de ficção científica perfeitamente estranhos à história que, quanto a mim, lhe retiraram todo o sentido e piada (isto apesar do próprio considerar estes últimos episódios como os seus preferidos). O mesmo se passa em termos gráficos, com a limpidez quase “linha clara” que caracterizava até então o seu traço, a dar lugar a experiências falhadas com o pincel.
Pouco depois do inicio da publicação de O Espião Acácio, Relvas deu os seus primeiros passos no sentido da internacionalização da sua carreira, deslocando-se a França e à Holanda, onde tentou, aparentemente sem grande convicção, mostrar o seu trabalho às grandes editoras. Uma oportunidade que acabaria por se gorar devido às dificuldades que Relvas revelou em se adaptar às regras do jogo dessas editoras.
O seu trabalho seguinte para o Tintin consistiu numa adaptação à banda desenhada da Viagem ao Centro da Terra, de Júlio Verne. Trabalho claramente de encomenda, sobre o qual o autor não quer nem ouvir falar, esta obra deixa bastante a desejar, tanto em termos de respeito pelo originai, como de fluência narrativa. Mesmo o tratamento apressado dos (quase inexistentes) cenários é sintomático do pouco empenho de Relvas nesta adaptação, a que falta «alma» e convicção.
A história seguinte, Rosa Delta Sem Saída, representa a sua primeira incursão no campo da ficção científica, género que, segundo o próprio refere, apenas lhe interessa como reflexão sobre o destino da humanidade.
Esta ficção pós-apocalíptica, eivada de um profundo pessimismo, vale sobretudo pelas experiências empreendidas no uso das sombras, pois em termos narrativos a história padece do mesmo mal de muitos outros trabalhos de Relvas, a ausência de um argumento estruturado de forma lógica e compreensível. Uma falha que se alastrou aos restantes projectos nesta área, como VAST, uma história publicada na V série de O Mosquito, em que usa pela primeira vez tramas mecânicas e 0-3-0, o Controlador Louco, uma «coboiada espacial», nas palavras do autor, publicada em 1980, no Mundo de Aventuras.
Segue-se L123, um dos seus melhores trabalhos de sempre. Mudando radicalmente de temática, Relvas volta-se agora para aquilo que conhece bem da sua vivência pessoal, o ambiente suburbano de Lisboa. Com efeito, o próprio título da série é uma referência ao passe integrado de transportes colectivos que cobre Lisboa e arredores. L123 é um “thriller” (sub)urbano centrado no confronto entre dois grupos de traficantes de droga, profundamente ancorado na realidade que cercava o autor, que recorre com frequência a documentação fotográfica, utilizando os locais que frequenta como cenários e emprestando o rosto dos amigos aos personagens da série. Esta sensação de grande realismo, alicerçada em diálogos extremamente coloquiais e credíveis, é sintomática de uma grande sintonia com a realidade quotidiana, até então praticamente inexistente em termos da banda desenhada portuguesa.
Isso deverá ter sido consequência da grande liberdade concedida a Relvas, liberto pela primeira vez do espartilho da história em 44 páginas, tão característico da BD franco-belga, com condições de fazer uma obra de grande fôlego na linha das que nasceram em redor da revista (A Suivre). Temos assim uma complexa e movimentada história de mais de 100 páginas, onde são introduzidos de forma hábil alguns elementos fantásticos, estruturada de forma quase orgânica, com as pranchas a serem entregues apenas três meses antes da publicação, o que lhe deu hipóteses de ir modificando a história à medida que ia vendo o seu trabalho impresso.
Denotando um enorme à vontade no desenho e planificação das cenas de acção, onde revela um dinamismo sem equivalente em termos da actual banda desenhada portuguesa, Relvas mostra também toda a sua apurada técnica do preto e branco, que vai evoluindo de forma sensível ao longo da história e em que são visíveis as influências de Pratt, Jijé e Munoz. Digna de realce é ainda a utilização dramática (e cinematográfica) da banda sonora, com estratos de canções de Lou Reed, Beatles, Duran Duran, Stepenwolf e Kim Wilde a pontuarem, de forma ajustada, diferentes momentos da acção.
Depois deste excelente trabalho, plenamente merecedor da edição em álbum, Relvas vai recuperar Eco e Artur, dois personagens de L123 para a história seguinte, Cevadilha Speed. Apesar da vida de Cevadilha dar um, ou mesmo vinte livros, a personagem mais interessante é Lena, ou Ganza, uma bela e misteriosa mulher que Relvas criou a partir de uma fotografia de Helmut Newton. Em contraste com a complexidade de L123, esta história é bastante simples, consistindo no divertido relato de umas férias no Algarve, onde não faltam algumas cenas oníricas, para além de alemães e “alemoas”, muita cerveja e bagaço e cenas de pancadaria para animar.
Os dois projectos seguintes para o Tintin, Slow Motion e Briz 3 representam o seu regresso à ficção científica e às histórias de escassa coerência narrativa, de tal modo que ninguém deve ter ficado muito triste com o facto de a falência da revista ter deixado incompleta a publicação de Kriz 3.
O fim do Tintin não significou o fim da carreira de Relvas, subitamente privado de um espaço fixo de publicação, onde podia experimentar e evoluir. Foi apenas o fechar de um primeiro ciclo. Outro mais longo e produtivo se seguiria. Relvas, para além de ter encontrado novo «poiso» e total liberdade criativa no jornal Se7e, onde entre 1982 e 1988, publicaria alguns dos seus melhores trabalhos, esteve ainda presente no Salão de Angoulême de 1984, a convite da organização. Viagem que, para além de o pôr em contacto com os grandes nomes da BD europeia, lhe valeu um convite de jean-Pierre Dionet para trabalhar na Metal Hurlant Aventures, tendo-lhe sido sugerido que fizesse histórias com sexo e violência passadas no bas-fond de Lisboa. Infelizmente, o fim prematuro da revista inviabilizou esta hipótese, confirmando o azar que sempre acompanhou Relvas nas diversas tentativas de internacionalização da sua carreira.
Concerto para Oito Infantes e um Bastardo e Niuiork, as suas duas primeiras histórias publicadas no Se7e são, quanto a mim, os seus melhores trabalhos a preto e branco. A história, uma intriga policial movimentada, planificada de forma dinâmica e inovadora, que em Niuiork evolui para uma mais prosaica história de desencontros amorosos, é servida por uma primorosa técnica de preto e branco, ao serviço de um estilo pessoal e inconfundível.
Também em termos de argumento estamos perante um dos melhores trabalhos de Relvas, com a linearidade do enredo a ajudar a uma melhor compreensão da história. Do mesmo modo, a naturalidade e musicalidade dos diálogos, que sempre foi uma das suas características, continua presente nestas histórias narradas na primeira pessoa, na melhor tradição do «policial negro» americano. Jacinto, ou Jaca, o «ribatejano, bastardo e futuro diplomata», protagonista destas duas histórias, aparece ainda num anúncio aos jeans Lee que Relvas fez em 1983, mas será substituído nas páginas do Se7e pela decidida Sabina, a heroína da história seguinte. Narrativa on the road das aventuras de uma rapariga que vai para o Algarve num carro roubado para conhecer um famoso artista rock, Sabina merece destaque pela caricatura certeira que Relvas faz das várias tribos urbanas, e pelas experiências com tramas a fazer lembrar Alberto Breccia, que não tiveram sequência em posteriores trabalhos.
A partir de Ai, este chavalo seria tão barilo, se... Relvas divide a autoria das histórias com Marlene, pseudónimo de uma sua colega do Se7e, que se torna ela própria personagem em Herbie de Best, história em que o tom de crónica da noite lisboeta do episódio anterior dá lugar a uma trama policial que (não) termina com um duelo ao vento em plena planície algarvia, na melhor tradição dos western spaghetti.
Com Sangue Violeta, história nada linear de uma jovem desajustada e anti-social transformada em estreIa rock, Fernando Relvas regressa à temática humorística em que se iniciou, adaptando o seu estilo ao novo tipo de histórias, tornando-o mais caricatural. Exemplo típico da forma como Relvas por vezes se dispersa, a intriga principal é cortada por flash backs perfeitamente surrealistas e por uma versão western da história do capuchinho vermelho. É também aqui que vai aparecer pela primeira vez Karlos Starkiller, jornalista de ponta, o único personagem constante ao longo de toda a sua obra. Starkiller ganhará o estatuto de protagonista em A Sombra de Xizhakt Rabin uma complexa história de espionagem internacional passada no Líbano, vagamente inspirada no caso Irangate, que evoluirá para uma comédia delirante, onde aparece um Mário Soares com cabeça de abóbora, alguns colegas de Relvas no jornal Se7e e até o verdadeiro super-herói do Terceiro Mundo, o Capitão Latino-América. A forma como a história reflecte a actualidade está bem patente na interrupção da intriga durante uma semana, para dar lugar a uma entrevista com o Presidente americano Ronald Reagan, de visita a Portugal em Maio de 1985. Uma tomada de posição que, segundo o que Relvas me disse, se deveu às pressões da sua namorada da altura, uma rapariga politicamente muito empenhada...
Com a gradual introdução da cor no jornal Se7e, a partir de Dezembro de 1985 o desenhador vai poder fazer experiências neste campo, bem reveladoras do seu talento inato. Nunca Beijes a Sombra do teu Destino, talvez um dos seus melhores trabalhos de sempre e a sua estreia a cores, é uma história de paixão e ciúmes, em que a complexa intriga policial se alia a um clima de tensão erótica muito bem conseguido. Tudo isto servido por uma excelente cor, que se tornou ainda melhor quando o autor descobriu os lápis de cera.
Desde as histórias vagamente de espionagem como A Noite das Estrelas (onde reaparece Mário Soares, agora na pele de um vendedor de tapetes, tipo Oliveira de Figueira), ou o intimista O Diabo à Beira da Piscina (inspirada numa muito curiosa canção alemã dos anos 20), até aos divertimentos mais ou menos inconsequentes como A Costa do Marisco (onde para além de um papagaio sexualmente hiperactivo, reaparece também Karlos Starkiller), Perversa Sobranceria do Hermetismo no Saber, O Atraente Estranho (protagonizado por um marreco e por uma osga chamada Heidegger) e A Missão, Relvas assumiu-se como o cronista atento do Portugal de 80 visto a partir do Bairro Alto. Possuidor de uma técnica apurada e de um excelente dominio da cor, Fernando Relvas revela-se um autor pouco acomodado, sempre em busca de novas experiências estéticas. Infelizmente, fá•lo de forma algo diletante e inconsequente, mudando de estilo a meio da história, esquecendo-se positivamente do que estava a contar, o que, obviamente, tem reflexos negativos em termos de compreensão dos argumentos que escreve, o que é por demais notório nestes seus últimos trabalhos para o Se7e.
Apesar do seu à vontade nas histórias urbanas, O Umbral Lumioso, o seu último trabalho para o Se7e é uma incursão pela BD de temática histórica, tal como acontece com O Rei dos Búzios, uma aventura passada na época dos Descobrimentos e que foi parcialmente publicada na revista Sábado durante o ano de 1989. Foi uma pena que esta história nunca tenha sido completada, pois em termos gráficos e sobretudo cromáticos (Relvas faz milagres com os lápis de cera) é do melhor Relvas de sempre, sendo notório que o artista, que estava a ser muito bem pago para fazer este trabalho, se empenhou, talvez como nunca o fez, de modo a realizar um trabalho perfeito. Anos mais tarde, a história, cujos originais foram comprados pela Bedeteca de Lisboa, foi editada em CD-Rom em 1999, com Relvas a arranjar um final circular, que lhe permitisse utilizar as imagens existentes de modo a dar um fim a uma história que ficou incompleta, embora eu confesso que preferia que Relvas tivesse aproveitado a ocasião para terminar a história, tal como estava inicialmente planeada…
Com o fim da publicação na Sábado. Relvas vê-se obrigado a aproveitar as pesquisas feitas para O Rei dos Búzios para criar uma história que lhe permitisse concorrer ao Concurso promovido pela Comissão Nacional dos Descobrimentos, cujo prémio, de 500 contos lhe permitiria, nas suas próprias palavras, «pagar as dívidas acumuladas em refeições e copos fiados». Assim nascia Em Desgraça, primeiro volume das aventuras de Vaz Taborda contrabandista condenado ao degredo, incorporado à força na armada de D. Francisco de Almeida, que conquistou Calecut, que assinala a estreia de Relvas em álbum em 1993. Apesar de optar por mostrar o outro lado da gesta dos Descobrimentos, escolhendo um anti-herói para protagonista e fio condutor da história. É perfeitamente visível que Relvas não se empenhou o suficiente neste trabalho.
Para além de um excessivo didactismo e da falta de ligação entre os diferentes episódios dispersos, o que torna a história confusa, em termos gráficos estamos perante um trabalho descuidado e apressado, com uma cor extremamente débil, aspecto em que a editora não está isenta de culpas. O insucesso comercial deste álbum, cuja carreira de vendas não podia ser mais adequada ao titulo, bem como o claro desinvestimento das Edições Asa na banda desenhada portuguesa a partir de 1993, levou ao congelamento de todos os projectos de Relvas, desde o segundo volume das aventuras de Vaz Taborda, a Karlos Starkiller, até à série Piri Lau.
Acabarão por ser os Livros Horizonte em 1995, de forma discreta e sem o enquadramento que Relvas justificava, a dar finalmente à estampa O Nosso Primo em Bruxelas, primeiro volume da série Piri Lau. Aventura urbana, com sexo e violência quanto baste, este álbum narra as peripécias por que passam dois amigos, Lau e Zé Peixoto, de alcunha o «Piri-Piri» (apesar de em todo o álbum nunca ninguém o tratar pela alcunha...) que tocam nos bares de Lisboa. A acção decorre entre Lisboa e Sintra, num ambiente que o autor bem conhece, mas tem ramificações que vão desde Angola a Bruxelas, onde está o primo de Zé «Piri-Piri» Peixoto que dá nome ao álbum, mas que nunca chega a aparecer... Esta história complexa de vinganças tendo por móbil o tráfico de diamantes foi projectada para dois álbuns. Dai que após a leitura do primeiro volume, os leitores saibam tanto quanto AI, o investigador que segue Zé Peixoto; isto é, quase nada! Mas apesar do argumento algo confuso, Relvas faz um bom trabalho em termos de planificação, com uma narração dinâmica e um traço nervoso e personalizado, apesar de, por vezes, demasiado sintético.
Estamos, mesmo assim, perante um trabalho mais à altura das enormes potencialidades de Fernando Relvas, um autor que, devido à sua maneira de ser e (falta de) método de trabalho, teria tudo a ganhar se trabalhasse com um editor (no sentido em que o termo é entendido nos EUA) que disciplinasse o seu talento inato... Infelizmente, os Livros Horizonte não chegaram a publicar o segundo álbum da série, e assim, Lau e Zé Peixoto foram juntar-se a Vaz Taborda, Gil Roiz (o herói de O Rei dos Búzios) e a Kriz 3 no vasto limbo onde estão as inúmeras personagens cuja história Relvas nunca acabou de contar.
Depois de um período em que fez cartoons para a revista TV Mais, Relvas volta à BD graças a O Inimigo, jornal dirigido por Júlio Pinto, o argumentista de «Filosofa de Ponta», série de grande sucesso, inicialmente pensada para o traço de Relvas que a recusou, gesto pelo qual Nuno Saraiva lhe deverá estar eternamente grato...
Nas páginas de O Inimigo regressa Karlos Starkiller em Testos Torres contra Cara Dread, uma história que seria objecto de diversas versões, primeiro no nº 2 da revista Quadrado e depois num fanzine montado em computador e auto-editado por Relvas. O Regresso do Hipopótamo, a sua história seguinte (que teve um fim brusco devido ao fecho do jornal O Inimigo), caracteriza-se por uma total ausência de lógica narrativa, tal como sucede com o ainda assim mais divertido Ananás que ri!, também auto-editado por Relvas. Mas para além destes divertimentos inconsequentes, em que a única coisa dignas de registo é a forma hábil como Relvas utiliza as mesmas imagens várias vezes trabalhando-as com o scanner, o autor preparava um projecto de maior fôlego, de que estiveram expostas algumas pranchas no Festival da Amadora de 1995.
Çufo, assim se chama o álbum lançado durante o Oitavo Salão do Porto, em 1995, aproveitando uma exposição comemorativa dos vinte anos de carreira de Relvas, foi um trabalho encomendado pelo Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, que lhe permitiu voltar outra vez à BD de temática histórica, mas agora com muito melhores resultados do que os conseguidos com Em Desgraça. Na origem de Çufo está a vontade do Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses de contribuir para um melhor conhecimento da expansão portuguesa através do papel desempenhado pelos cidadãos anónimos, protagonistas muitas vezes forçados e involuntários da gesta dos Descobrimentos. Esta louvável opçâo de privilegiar a “arraia miúda” nesta série de biografias em BD, encontrou no traço de Relvas o suporte ideal. Relvas sempre preferiu para protagonistas das suas anti-epopeias, homens comuns que apenas se preocupam em sobreviver, como já era o caso de Vaz Taborda, o herói de Em Desgraça.
Quanto a Çufo, nascido em Braga com o nome de João Machado, também reúne todas as características dos (anti)heróis de Relvas. Embarcado para a costa oriental de África, para escapar a uma sentença de morte, João Machado nunca chegou a procurar o reino do Preste João, decidindo ir antes para a índia, onde fez carreira como mercenário ao serviço do Sultão de Bijapur. Tendo adoptado o nome árabe de Çufo, João Machado vê-se obrigado a enfrentar os seus compatriotas, quando como capitão do exército do Idalcão vai combater contra as tropas de Afonso de Albuquerque, que procuravam conquistar Goa. Dividido entre duas lealdades, vai funcionar como intermediário nas negociações com Afonso de Albuquerque, procurando ganhar aliados nos dois lados em disputa que lhe assegurassem a sobrevivência, qualquer que fosse o vencedor. Tomada Goa em 1510, Çufo espera ainda dois anos para voltar para junto dos seus compatriotas. Integrado no exército local e casado com uma goesa, João Machado sentia-se um estranho às duas culturas, olhado com desconfiança pelos portugueses que não esquecem o seu passado e consciente que a sua cor de pele nunca lhe permitiria ser um verdadeiro árabe. Vai morrer perto de Goa em 1517 num combate entre as tropas portuguesas e o exército do Idalcão, que tinha servido durante dez anos.
É a vida desta figura fascinante na sua humana ambiguidade, exemplo extremo da capacidade de adaptação dos portugueses, que Fernando Relvas vai contar em 56 páginas de banda desenhada. E fá-lo à boa maneira de Hugo Pratt, introduzindo bruscamente o leitor em plena acção, num acontecimento histórico concreto e bem documentado, de que o herói é espectador, mas que funciona apenas como um cenário, que é abandonado com a mesma brusquidão quando o herói sai de cena, sem que nos sejam fornecidos quaisquer dados sobre o que se passou a seguir.
O problema é que Relvas não tem o talento literário e narrativo de Pratt, e o resultado acaba por ser uma história feita de episódios desligados, o que retira fluidez à narração. De qualquer modo, em termos gráficos estamos perante um dos melhores trabalhos de Relvas, que desta vez se aplicou a fundo, conseguindo uma obra ao nível dos seus momentos mais altos na fase áurea do jornal Se7e. A forma dinâmica como trata as cenas de acção e o arrojo dos enquadramentos utilizados, provam que, neste aspecto, Relvas não tem quem se Ihe aproxime em Portugal, enquanto o excelente trabalho de cor revela um domínio perfeito das ecolines.
Está assim de parabéns o grupo de trabalho do Ministério da Educação que teve a visão e o arrojo de encomendar esta obra a Fernando Relvas, concedendo-lhe total liberdade criativa para a sua realização, em vez de, como era habitual neste tipo de obras, recorrer aos mesmos autores de sempre, que continuam ainda hoje a imitar (mal) o que E. T. Coelho fazia na década de 50.
Depois de durante alguns meses se ter dedicado à ilustração de livros escolares, Relvas voltou à BD através de um novo projecto para o grupo de trabalho do Ministério da Educação, que têm como protagonista a mítica Rainha Ginga. Pelo entusiasmo com que Relvas falava deste trabalho e tendo em conta o aturado trabalho de pesquisa que levou a cabo, este prometia ser um dos seus melhores trabalhos de sempre, com o aliciante em termos gráficos de assinalar o regresso de Relvas aos lápis de cera, e com excelentes resultados a avaliar pelos estudos preparatórios que tive ocasião de ver. Mas a verdade é que a Rainha Ginga nunca chegou a ser publicado e ainda não foi desta que Relvas teve a oportunidade de se afirmar decisivamente como um dos melhores desenhadores portugueses de sempre, que efectivamente é.
Depois de ter sido objecto de uma exposição individual em 1997, na Bedeteca de Lisboa, Relvas fez naturalmente parte dos 17 autores portugueses seleccionados para a exposição Perdidos no Oceano, presente no Festival de Angoulême de 1998, em que Portugal foi o país convidado. E Malabambu, a fantástica prancha original que Relvas fez para a exposição é um bom exemplo de todo o seu talento gráfico e narrativo. Uma grande página, a preto e branco, desenhada num traço fino com uns vestígios de aguada, dividida em 28 pequenos quadrados que, graças a uma montagem dinâmica, nos permite mergulhar no interior de um navio negreiro, que no final da página vemos desaparecer no alto mar.
A década seguinte, se não trouxe muitos trabalhos originais de Relvas, viu alguns dos seus trabalhos mais antigos serem recuperados para uma nova geração de leitores, primeiro com a edição em livro de Karlos Starkiller, pela BaleiAzul, depois com L123, pela ASIBDP, 18 anos depois da sua publicação inicial na revista Tintin e, dois anos depois, com a publicação de uma versão restaurada de Concerto para Oito Infantes e um Bastardo, a primeira história que fez para o jornal Se7e, na revista Comix, que o fim da revista em 2003 deixou incompleto. Mas a Comix não foi a única revista de BD nacional cujo fim deixou uma história de Relvas por publicar. O mesmo sucedeu dois anos antes com Iva Jau e Dr Manga, uma história (vagamente) de espionagem feita para a revista Selecções BD que só seria publicada através do site Lulu.com vários anos depois, numa nova versão, com novo título, Palmyra e grandes alterações a nível do argumento e diálogos.
Entretanto, Relvas decidiu emigrar em finais de 2002, primeiro para Espanha e depois para a Croácia e as poucas notícias que chegavam do seu trabalho, chegavam-nos via Internet, através de uma série de blogs que o autor ia criando e sucessivamente fechando e onde publicou um punhado de histórias, em que o desenho, assistido por computador, se misturava com a fotografia e com o simples texto. Não sendo a primeira experiência de Relvas na publicação directa em formato digital (em 2001, antes de emigrar, publicou uma série de cartoons no portal Tokaki.com) estes trabalhos dariam depois origem a um punhado de livros publicados em inglês no sistema de “print on demand” através do site Lulu.com, mas o preço elevado e os ainda mais elevados portes, levaram que mesmo os mais empedernidos fãs de Relvas pensassem duas vezes antes de adquirirem estes trabalhos…
E, como quem não aparece, esquece, o nome de Fernando Relvas foi gradualmente caindo no esquecimento, única justificação possível para a ausência da sua obra em projectos que se pretendiam representativos do que de mais importante se fez em Portugal em termos de BD, como a série Ver BD, ou a exposição Tinta nos Nervos, que assinalou a entrada da Banda Desenhada no Museu-Colecção Berardo, no Centro Cultural de Belém, ambos coordenados por Pedro Vieira de Moura.
O regresso de Relvas a Portugal, em Setembro de 2010, para trabalhar num projecto de animação, veio recordar o óbvio a muita gente do meio da Banda Desenhada nacional. Relvas está vivo e ainda mexe! Daí que as exposições que os dois maiores Festivais de BD nacionais, o Festival da Amadora e o Salão de Beja, lhe vão dedicar e o grande dossier que o BD Jornal lhe dedica neste número, traduzam o justo reconhecimento da importância do trabalho de Fernando Relvas. Ontem como hoje, um dos maiores nomes da BD portuguesa, que finalmente regressa a casa!
Texto publicado no BD Jornal nº 27, de Maio de 2011. Versão revista e largamente actualizada do texto publicado no catálogo da exposição “Relvas, à queima-roupa”, editado pela Bedeteca de Lisboa em 1997.
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