terça-feira, 29 de outubro de 2013

DC Comics UNCUT 16 - Batwoman: Elegia

Batwoman: Ano um, ano cinquenta

A Batwoman é um dos super-heróis que fazem parte da família Batman, entre os quais podemos encontrar os vários Robins, a Batmoça, ou heróis como Asa Nocturna ou Azrael. Criada há décadas, Batwoman foi originalmente pensada como um potencial interesse romântico do Cavaleiro das Trevas, embora se tenha alçado rapidamente ao estatuto de verdadeira rival. Foi também uma das personagens que sofreu mais transformações ao longo dos tempos. De potencial namorada acabou por se transformar em rival, desapareceu durante parte dos anos 1960, para reaparecer e ser assassinada em finais dos anos 1970, e renascer finalmente já no século 21 como uma das mais invulgares personagens do Universo DC, uma super-heroína gay.

A década de 1950 foi crucial na evolução dos comics americanos. Quando em 1954 o psiquiatra Fredric Wertham publicou o seu livro Seduction of Innocents, em que responsabilizava os comics pelo aumento da violência e delinquência juvenil, estava-se longe de imaginar as transformações a que a indústria seria submetida. Wertham chegou a testemunhar numa comissão especial de inquérito do Senado Americano, após o que a indústria dos comics promulgou um código de conduta voluntário, o célebre Comics Code Authority, que serviu como um manual de regras de auto-censura. Nas suas críticas, Wertham destacou sobretudo os temas sexuais que estariam escondidos nos comics, atacando a nudez feminina, bem como os comportamentos dos heróis, tendo nomeadamente insinuado a existência duma relação homosexual entre Batman e Robin. Por tudo isso, não é de espantar que quando o grupo de editores à frente dos destinos das histórias do Homem-Morcego quis expandir a “família” de personagens do universo de Batman, a Batwoman tenha surgido como um interesse romântico para combater essas alegações de Wertham.

Batwoman surgiu pela primeira vez nas páginas da revista Detective Comics #233, em 1956, numa história escrita por Edmond Hamilton e desenhada por Sheldon Moldoff. Edmond Hamilton era um escritor famoso de ficção-científica e de pulps, com um estilo sensacionalista que era quase a antítese do estilo “moralmente aceitável” que Wertham ambicionava para os comics. E o sensacionalismo saltava quase fora da extraordinária capa desenhada por Sheldon Moldoff, que apresentava uma Batwoman de moto a afastar-se a grande velocidade do Batmóvel, em direcção ao leitor, com o Duo Dinâmico a exclamar que ela os ia ultrapassar na missão, anunciada nos céus pelo Batsinal! O fato amarelo e negro da heroína contrastava com o fato do Batman, que era na altura cinzento, e anunciava uma personagem bem cheia de "panache". Em apenas doze páginas, a Batwoman salva o Batman duas ou três vezes e demonstra ser o reflexo feminino do Homem-Morcego, numa espécie de imagem de espelho quase humorística. Em vez dos gadgets científicos e “militarizados” do Batman, os gadgets dela estão incorporados na panóplia feminina duma rapariga elegante da alta sociedade: as suas pulseiras servem de algemas e a caixa de pó de arroz consegue disparar uma nuvem de fumo que provoca espirros, enquanto o seu frasco de perfume pulveriza gás lacrimogéneo e a sua mala de senhora pode ser usada como as “bolas” das pampas argentinas para fazer tombar e capturar os seus adversários. No fim desta primeira aventura, Batman descobre a identidade da super-heroína e arranca-lhe a promessa de que ela não voltará a combater o crime. A Batwoman é Katherine Kane, uma talentosa artista de circo - trapezista e acrobata como o Robin, mas também a “melhor condutora de motos acrobática”, motos essas que passarão a ser uma das suas imagens de marca - que herdou uma fortuna. Decidiu então embarcar numa cruzada contra o crime, tal como o seu ídolo Batman, que ela espera assim conhecer, e talvez seduzir.

Claro que a Batwoman não cumprirá a sua palavra, e continuará a aparecer em inúmeras aventuras do Cavaleiro das Trevas, tornando-se numa personagem muito popular do universo do Batman. No entanto, quando o lendário editor Julius Schwartz começou a planear a sua reformulação do universo DC, empurrando-o para moldes mais realistas, decidiu remover personagens que achava não-essenciais. A família de personagens “Batman” tinha crescido até incorporar algumas personagens bastante ridículas, numa altura em que as aventuras do Homem-Morcego se tinham tornado cada vez mais satíricas e cómicas - um ser extradimensional diminuto, o Bat-Mite, ou Ace, o Batcão, por exemplo. Schwartz decidiu então reformular uma segunda personagem feminina, a Batmoça, originalmente a sobrinha de Katherine Kane e potencial interesse amoroso de Robin, transformando a sua identidade, que passou a ser a de Barbara Gordon, filha do Comissário Gordon. Entre a nova Batmoça e a antiga Batwoman, a escolha foi óbvia, e Katherine Kane desapareceu de cena. Embora tenha reaparecido algumas vezes no final dos anos 70, acabaria por ser morta no número 485 de Detective Comics, pela Liga de Assassinos de Ra’s al Ghul. A personagem permaneceria fora de cena até ao século 21, mas em meados dos anos 2000 a DC reformulou o seu universo de super-heróis com a série Infinite Crisis, uma história que é descendente directa da Crise nas Terras Infinitas que já pudemos ler nesta colecção. Depois dessa Crise, todo o universo avançou um ano com o evento 52, durante o qual foi decidido relançar a Batwoman, tendo os editores da DC decidido fazer história e reformular completamente o conceito da personagem. A Batwoman renasceu nessa série como uma das poucas personagens homossexuais no universo dos super-heróis.

O trabalho de escrever a primeira história a solo desta nova heroína - Elegia, o volume que têm entre mãos - recaiu sobre o argumentista Greg Rucka, conhecido no meio pelas suas personagens femininas fortes e independentes. Rucka é um escritor de romances policiais aclamados, que irrompeu na cena dos comics no final dos anos 1990 com uma mini-série intitulada Whiteout (entretanto adaptada ao cinema, com Kate Beckinsale no papel principal), a que se seguiu a sua série mais longa até à data, Queen & Country. Em ambos os casos, tratam-se de histórias policiais ou de espionagem, em que as personagens principais são femininas e granjearam enorme popularidade junto dos leitores. Rucka começou entretanto a trabalhar para a DC, nos anos 2000, e já escreveu argumentos para inúmeras personagens, entre as quais destacamos as histórias que assinou para a Mulher Maravilha, e a série Gotham Central, que escreveu a meias com Ed Brubaker. O relançamento de Batwoman permitiu-lhe aliás recuperar personagens desse comic. Gotham Central acompanhava as aventuras e casos duma série de polícias e detectives de Gotham, focando a acção numa esquadra da polícia e não no Batman, e uma das personagens principais da série, a detective Renée Montoya, reaparece em na série da nova Batwoman como namorada da super-heroína. Tal como a primeira Batwoman, esta também é uma rica herdeira chamada Kate Kane. Ao contrário da primeira Batwoman, Kate é de origem judaica, a sua aparência é a duma jovem gótica e algo anarquista, é lésbica, e o seu pai é um ex-militar e operacional de forças especiais, que treinou a filha para combater o crime.

Mas para além do argumento da série Elegia, é justo reconhecer que uma parte importante da fama que este livro atingiu vem da arte estonteante de J. H. Williams, que assina aqui uma das suas obras-primas. Williams é um veterano dos comics que assinou várias séries para a DC em finais dos anos 1990, mas que atingiu pela primeira vez o sucesso crítico com o seu trabalho em Promethea, escrito por Alan Moore, com o qual conquistou o seu primeiro Prémio Eisner, os Óscares dos comics. Williams cria em Batwoman um registo duplo, em dois estilos completamente diferentes. Por um lado, o traço mais clássico e algo reservado que acompanha a vida de Kate Kane, a identidade secreta da super-heroína, por outro lado as páginas duplas absolutamente brilhantes e dinâmicas em que o protagonismo recai sobre a Batwoman. Williams conquistou mais dois Eisners em 2010 com este seu trabalho, como melhor artista e para a melhor capa. A história foi publicada na revista Detective Comics, num período em que Bruce Wayne estava aparentemente morto, parte do imenso arco de história revolucionário que o escritor Grant Morrison elaborou para o Cavaleiro das Trevas, como já referimos em Batman para Sempre!, o texto que acompanha o segundo volume desta colecção, e o sucesso foi tal que Batwoman acabou por incorporar o relançamento geral dos heróis da DC no evento New 52 com o seu próprio título, tendo J. H. Williams assumido a série também como argumentista, um passo decisivo na carreira deste criador.

Assim, numa espécie de retorno irónico da história, uma personagem que foi criada para combater os rumores de homossexualidade de Batman, renasceu ela própria cinquenta anos mais tarde como uma super-heroína gay, quase que como vingança do universo dos comics sobre o seu detractor. Mas não devemos levar demasiado a mal o Dr. Fredric Wertham, já que as suas acusações e o debate que causaram fizeram parte dos factores que inauguraram uma das maiores épocas de sempre da banda desenhada americana, a Silver Age of Comics. Essa era possibilitou o desenvolvimento da moderna era do comic de super-heróis, dos quais este espantoso Elegia é sem dúvida um dos bons exemplos.

José Hartvig de Freitas

5 comentários:

never-ending-spleepy-eyes disse...

Marvel e DC ainda são campos a explorar com muita coisa boa. Antes de mais obrigado à Levoir por re-instalar o vicio de as ler em português, espero que não se fiqeu por aqui e em termos de títulos deixo também as minhas sugestões para DC:
Green Lantern: Will World
Green lantern: Emerald Twilight/New Dawn
Batman: Dark Knight Returns
Batman: Year One
Batman: The Long Halloween
Batman: Knightfall (volume 1, 2 e 3)
The Great Darkness Saga (Darkseid, Legion of S.H.,..)
The New Frontier
shazam: Monster Society of Evil
Aquaman: algumas das historias eleitas aqui: http://goodcomics.comicbookresources.com/2011/11/27/the-greatest-aquaman-stories-ever-told/

Mas 1 regresso à Marvel seria mais que bemvindo (e com os novos filmes a ajudar..) e deixo também sugestões:

- Vengeance - Joe Casey
- Daredevil: The Man Without Fear
- Vingadores: Mythos
- Vingadores: The Bride of Ultron
- Vingadores: Under Siege
- Vingadores: Saga Korvac
- Deadpool & Cable
- Spider-Man: Back in Black + Spider-Man, Peter Parker: Back in Black
- guardians of the galaxy: Legacy
- Magneto: rogue nation
- X-men: the shattering
- x-men: powerless
- x-men & avengers - Maximum Security
- Cable and X-Force do DENNIS HOPELESS
- cable do ladronn
- The Adventures of Cyclops and Phoenix

JML disse...

São boas sugestões , mas muitos dos livros da DC que sugeres não estão disponíveis em formato digital, já sairam em português (Dark Knight, Year One), ou são muito grandes (Long Halloween), mas muito em breve haverá novidades sobre novas edições da Levoir. Quem puder, que apareça no Festival da Amadora no Domingo, 10 de Novembro, às 17h, pois vai haver uma apresentação do Programa editorial da Levoir, comigo e com o José de Freitas.

never-ending-spleepy-eyes disse...

Olá,
Dark Knight e Year One têm edição portuguesa (ou apenas brazileira?) acho que a edição em capa dura abrange muito mais leitores. é pena se há impedimentos contratuais de edição. Qaunto aos outros títulos aidna tenho esperança de uma edição nacional "the great darkness saga" é um clássico e por vezes uma edição que se alonga em vários volumes é também uma boa opção (ainda para mais tendo esta colecção sido tão centrada em batman e superman)

infelizmente este ano não consegui ir ao Festival da Amadora. Onde posso consultar o programa Editorial? Há planos de regresso da marvel?

Obrigado por tudo!

JML disse...

Olá Never! Como vês, a lista completa da Série II da DC já está na Net. O aquaman ficou de fora porque, com a excepção da fase dos Novos 52, que a DC não deixou incluir nesta colecção, não há material disponível em formato digital. Dark Night e Ano Um saíram em português pela Devir (o último até teve duas edições). O regresso da Marvel está no horizonte para 2014, tal como outras surpresas. Não vai faltar BD de super-heróis nos quiosques... e não só pela Levoir.

never-ending-spleepy-eyes disse...

Bela notícia.
Confesso que não consumo Devir porque prefiro as Hard Covers (o meu $$ vai todo para edições internacionais).
Já a Levoir tem-me conseguido fazer comprar títulos que já tenho em inglÊs!
Aquaman. É uma pena só estar disponível o material do New 52. Está muito bem conseguido (o Geoff Johns consegue umas histórias bem esgalhadas) mas o fundo de catálogo do personagem tem autenticas pérolas da BD norte americana (algumas que a própria DC tem descurado).

A minha única queixa foi mesmo centrarem a colecção na dupla Batmen/superman (quando não houve Aquaman, Shazam, Justice league International,...) mas é compreensivel!

Fico a salivar para novos títulos da Marvel (será desta que temos Deadpool & Cable?) e entretanto vou amontoando os novos 10 da DC nas estantes odne começa a faltar espaço! :)
Força E continuem o Bom trabalho!