quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Recordando José Abel (1948-1992?)

Nome maior do cinema de animação nacional, com uma carreira construída em França e nos Estados Unidos, onde trabalhou em filmes como Les Maitres du Temps, Poltergueist e Heavy Metal José Abel, falecido provavelmente em 1992, foi também autor de Banda Desenhada. Um facto ignorado pela maioria do historiadores de BD nacionais, sendo praticamente inexistentes as referências ao seu trabalho no campo da Banda Desenhada, por oposição ao seu trabalho na animação, consagrado no prémio José Abel atribuído anualmente pelo Cinanima, ao melhor filme internacional a concurso naquele Festival de cinema de animação.
O facto de José Abel ter feito toda a sua carreira longe de Portugal, desde a licenciatura em La Cambre, a célebre escola de cinema de animação em Bruxelas, e de os trabalhos de BD que Abel fez para a editora Humanoides Associés nunca terem sido reeditados, ajuda a perceber esses esquecimento, mas a qualidade do trabalho de José Abel, justifica plenamente que aqui o recorde. Um trabalho que se resume a dois álbuns e uma história curta, publicados entre 1984 e 1992, pela editora Humanoides Associés.
Os dois álbuns constituem os dois únicos volumes de uma série, Aux Mains des Soviets, escrita por Frederic Charpier e ilustrada por José Abel, que leva dois aventureiros europeus, Brian e Alves (este último presumivelmente português, a avaliar pelo apelido...) numa arriscada viagem pela Rússia dos Sovietes, em busca de uma expedição perdida.
O ambiente da série lembra um pouco o Corto Maltese na Sibéria, de Hugo Pratt (e o próprio Alves tem alguma parecenças com Corto, embora use as patilhas mais curtas) mas o tom geral é bastante mais folhetinesco e delirante do que o livro de Pratt. Há sociedades secretas, militares sanguinários, mulhers fatais, um corcunda saído não se sabe de onde e que funciona como "comic relief", muita acção, um toque de fantástico, outro de humor, mas a história acaba por não avançar muito ao longo dos dois álbuns e o pretexto inicial, a extraordinária descoberta feita pela expedição liderada por Leon Maximov, desaparecida na Ásia Central, cujo resgate funcionaria como Mcguffin da história, rapidamente é esquecida... Mas mais do que o argumento de Charpier, o que nos interessa aqui é o desenho de José Abel. Um desenho minucioso, usando uma técnica de "achures" que lembra Moebius e com uma atenção ao pormenor verdadeiramente obsessiva, não deixando um um único espaço por desenhar.
Com um traço de grande expressividade, tão à vontade no registo realista como no caricatural, Abel tem também uma óptima noção do movimento, dando um grande dinamismo a toda a acção.
Embora as cores não sejam más, especialmente no segundo álbum, La Conspiration de l'Etoile Blanche, colorido por Nadine Voillat, numa paleta que lembra o Bilal de álbuns como As Falanges da Ordem Negra, ou A Caçada, o trabalho de José Abel merecia uma edição a preto e branco em grande formato, de modo a podermos apreciar devidamente a inacreditável quantidade de detalhe que o desenhador português punha em cada prancha.
É interesante também ver a forma como Abel concilia momentos de puro delírio visual, típicos da animação, com uma cuidada pesquisa visual, de que é exemplo a reprodução rigorosa de dois cartazes da época, conforme podemos ver aqui:


ou no cabeçalho do 4º Capítulo de La Conspiration de L'Etoile Blanche, cuja estética remete para as ilustrações infantis de Ivan Bilibin, um fabuloso ilustrador russo da época.


Infelizmente, a forma como a editora tratou a série, editando o segundo volume 5 anos depois do primeiro, noutra colecção, com um design diferente, sem se dar ao trabalho de reeditar o primeiro volume, fez com que a série não passasse do segundo volume. Em Portugal, apenas o primeiro volume foi publicado, em 1985, no Jornal da BD, com uma impressão e um papel que não faziam minimamente justiça ao fabuloso trabalho de Abel.
Posteriormente, em 1992, voltamos a encontrar o desenhador José Abel no álbum colectivo Transports Fripons, ilustrando Une Nuit au Cirque uma história curta, com argumento de Seudebias, num estilo mais solto, em que o pontilhado a tinta da china dá lugar à cor directa, num registo próximo do usado no seu último trabalho de animação para o filme Opera Imaginaire. Essa história foi a sua última incursão pela BD e um dos seus últimos trabalhos pois o filme Opera Imaginaire, de 1993, é-lhe dedicado, o que significado que o realizador português faleceu ainda antes de ele estrear.
Curiosamente, a sequência realizada por Abel, a partir de um ária da ópera Tosca, de Pucini, que podem ver abaixo, tem o anjo da morte como um dos personagens, em mais um exemplo como, por vezes, a vida imita a Arte...

4 comentários:

Nuno Amado disse...

Bom post, desconhecia o autor...


Abraço

JML disse...

Obrigado, Bongop. Precisamente por muita gente não conhecer o José Abel, é que eu achei que era importante fazer este post. Bom Ano!

letré disse...

Belo post sobre o José Abel....
Já tinha lido a sua história que faz referência no Jornal da Bd e também já me tinha questionado pela total ausência de qualuqer referência desse autor português.
Como você sempre apreciei a minúcia do seu desenho.
Aproveito para lhe endereçar os desejos de um bom Ano e que continue a surpreender-nos com umas boas leituras.
Os meus cumprimentos

Eduardo Letrée

JML disse...

Caro Letré,
Obrigado pela visita e pelas amáveis palavras. José abel era um fantástico desenhador, com uma minúcia incrível. Pena que tenha morrido tão novo, privando-nos do seu trabalho, tanto na BD como na animação.
Abraço