quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Sambre VI

Oito anos depois de Maudit Soit le Fruit de vos Entrailles, Yslaire regressa finalmente à série Sambre como desenhador, com La Mer vue du Purgatoire, sexto álbum da série principal e segundo volume do ciclo dedicado à terceira geração da família Sambre, em que, morto Bernard Sambre na Comuna de Paris, seguimos o destino de Julie e de Bernard-Marie, o filho de ambos.
Obra maior de Yslaire, um dos mais elegantes desenhadores de expressão francesa, este drama hiper-romântico foi um notável sucesso em França, deixando um grande número de leitores completamente suspenso, durante anos a fio, dos amores contrariados de Bernard e Julie, dois amantes separados pela condição social, por ódios familiares e por uma série de trágicos incidentes. Uma história complexa, pensada em conjunto com Balac (nome que esconde o prolífico argumentista Yann, autor, por exemplo de Pin Up), mas que o próprio Yslaire se encarregou de contar sózinho a partir do 2º volume da série.
Nascido em Bruxelas em 1957, Bernard Hislaire estreou-se na BD no fanzine “Robidule”, enquanto frequentava a Escola de Saint-Luc em Bruxelas, por onde passaram outros grandes nomes da BD, como Schuiten, Berthet e Andreas. A sua afirmação como profissional de BD faz-se na revista Spirou, em 1978, com a série Bidouille e Violette, uma comédia romântica de que sairam 4 álbuns. Artista inquieto e irrequieto, Hislaire sentia-se, segundo as suas próprias palavras: “cansado da ditadura da linha clara que não permite qualquer tipo de sombra, nem em termos gráficos nem a nível do argumento. Cansado daquelas personagens cuja psicologia é de tal modo limpida, que são inexistentes. Eu precisava de contrastes da luz e da sombra, do dito e do não-dito. Há em todo o ser humano uma parte de mistério, de sombra e de morte, que não percebo porque é que a BD não tem em conta”.
A série Sambre, iniciada em 1985 traduz essa vontade de mudança, visível até na alteração da assinatura do autor, que passa a assinar Yslaire. Como ele próprio refere “queria contar uma história de amor, mas num registo diferente de “Bidouille e Violette”. Uma história sem humor, sem duplos sentidos e que seria tão romântica como trágica. Eu e Balac decidimos situar a acção no século XIX, porque é a grande época do romantismo e porque a juventude da época estava animada por grandes paixões; havia um forte empenhamento pela liberdade, as pessoas estavam dispostas a morrer nas barricadas pelos seus ideais”. E tirando o ambiente mais campestre da casa dos Sambre (inspirada na casa da família de uma antiga namorada de Yslaire) em que decorre o 1º volume, o resto da série vai ter precisamente como principal cenário o ambiente de revolução da Comuna de Paris, que pôs a capital de França a ferro e fogo em 1848.
Sambre é um grande fresco, épico, feito de dramas familiares, ódios ancestrais, amores loucos, passado numa época conturbada. Uma história maior do que a vida, de um romantismo desmesurado, em que o amor e a morte estão sempre presentes, como na cena fulcral do 1º álbum em que Bernard e Julie fazem amor no jazigo da família Sambre, sobre o túmulo de pai de Bernard. Uma saga que a paleta de Yslaire, limitada aqui aos vermelhos, cinzas e negros, trata como ninguém, acentuando precisamente esses jogos de sombras que faltavam à “linha clara”. E o trabalho de Yslaire é absolutamente deslumbrante em termos visuais, com o autor a libertar-se facilmente das características caricaturais ainda detectáveis no seu traço e a revelar um notável sentido cenográfico e de planificação, que irá melhorar de álbum para álbum.
Depois de ter desenhado os 4 primeiros volumes, Yslaire abandonou temporariamente Sambre para se dedicar às Memoires du XXeéme Ciel, uma revisitação da História do século XIX através dos e-mails trocados entre um anjo e uma psicanalista, mas acabou de voltar á série, com um quinto volume, publicado em 2003, que inicia um novo ciclo, passado dez anos depois, centrado em Julie e no seu filho, Bernard-Marie.
Se os 4 primeiros álbuns da série saíram em português, pela Witloof, o 5º álbum nunca teve edição nacional e muitos leitores portugueses pensaram que a série terminava com a morte de Bernard. Uma dúvida que assaltaria os leitores franceses após a publicação do 5º álbum, pois Yslaire trocou a série Sambre por outros projectos, como a reedição (com grandes alterações) de XXéme Ciel, o díptico Le Ciel au-dessus de Bruxelles e o projecto Le Ciel au-dessus du Louvre, um álbum encomendado pelo Museu do Louvre, em que Yslaire colabora com Jean-Claude Carriére, argumentista dos últimos filmes de Luis Buñuel, como Belle de Jour
O regresso a Sambre dá-se, não com a série principal, mas com La Guerre des Sambre, uma série paralela, constituída por vários ciclos de 3 álbuns, escrita e planificada por Yslaire, mas ilustrada por outros desenhadores, que desenvolve diferentes ramos da árvore genealógica da família Sambre. O primeiro ciclo, dedicado à paixão de Hugo Sambre, o pai de Bernard, por Iris, uma cantora de olhos vermelhos, magnificamente ilustrado por Bastide e Mèzil, dois jovens autores saídos da escola de Saint-Luc, foi publicado entre 2007 e 2009, tendo já saído o primeiro volume de um novo ciclo, Werner & Charlotte, ilustrado por Marc-Antoine Boidin, que ainda não tive ocasião de ler.
Mas o que interessa agora é o 6º volume da série principal, em que Julie dividida entre a memória de Bernard, que a persegue, e a vontade de viver, vê naufragar o barco que a levava desterrada para a Guiana, sendo salva por um faroleiro, que tambem ele tenta esquecer um amor infeliz.
Se em termos de história, tudo se mantém dentro do habitual, numa história trágica, carregada de simbolismo e de citações (e por falar nisso, dou um doce a quem identificar o quadro que Yslaire homenageia nesta imagem aqui ao lado), em termos gráficos, são claras as melhorias em relação ao tomo 5, em que o traço de Yslaire parecia apressado e longe do extraordinário virtuosismo que se lhe reconhece. Aliás, este é bem capaz de ser o álbum mais bem desenhado da série, com imagens belíssimas e páginas magníficas, em que Yslaire, que agora desenha directamente no computador, está ao seu melhor nível. E para apreciar devidamente a sua técnica de desenho, nada melhor do que este vídeo, em que Yslaire desenha ao vivo.

Sambre VI: La Mer vue du Purgatoire, de Yslaire, Glenat, 64 pags, 16,20 € na Livraria Dr. Kartoon

5 comentários:

joaninha versus escaravelho disse...

Que descrição apaixonada!
Impossível não desejar ler já agora... (e impossível de o fazer) :)
Bom fim de semana!
Beijos

Nuno Amado disse...

Esta era uma série que eu gostaria MESMO de ver editada em português...
:(
Souberam a pouco, os primeiros 4 volumes...


Abraço

JML disse...

Olá Joaninha e Bongop,

Realmente, é uma excelente série! E meswmo os ciclos paralelos, não sendo desenhados pelo Yslaire estão muito bem feitos. Infelizmente, como a Witloof, que publicou os 4 primeiros volumes, duvido que haja alguma editora portuguesa a pegar nela... Resta a edição francesa (para quem lê francês).

Abraços,

Nuno Amado disse...

Joaninha
Podes ler os primeiros 4 volumes, estão editados em português!
;)

:*

joaninha versus escaravelho disse...

Eu tenho-os, Bongop. :)
Beijitos