sexta-feira, 11 de março de 2011

Lovecraft na Banda Desenhada


Um dos mais importantes escritores de terror de língua inglesa, Howard Philips Lovecraft influenciou diversas gerações de criadores, desde escritores como Jorge Luís Borges, Stephen King, Clive Barker e Umberto Eco, a cineastas como John Carpenter, Stuart Gordon e Guillermo Del Toro. Mas é na Banda Desenhada que a sua influência se tem feito sentir de forma mais notória e, mais do que no cinema, que os terrores inomináveis, mais descritos do que sugeridos por Lovecraft nos seus textos, encontraram a correspondência visual adequada. O texto que se segue propõe-se traçar uma panorâmica, que está longe de ser exaustiva, da forma como os criadores de Banda Desenhada, tem traduzido, recriado e homenageado a obra do mestre do terror fantástico.


DA LITERATURA À BD

Desde os anos 50, com a adaptação pouco fiel de Cool Air, feita por Al Feldstein e Graham Ingels, para a revista VAULT OF HORROR, da Editora EC, que não faltam exemplos de adaptações, mais ou menos livres, de contos de Lovecraft à Banda Desenhada. Mas julgo que não haverá grandes dúvidas que o ponto mais alto da transposição da literatura fantástica de Lovecraft para a linguagem da BD, acontece com Los Mitos de Cthulhu, de Alberto Breccia. Partindo de uma adaptação, feita por Norberto Buscaglia, de vários contos de H.P. Lovecraft, Breccia vai conseguir algo que vários desenhadores, antes e depois dele (como o francês Druillet ou os americanos Berni Wrightson e Richard Corben, e mesmo o seu próprio filho, Enrique) tentaram sem grande sucesso, que é representar o irrepresentável e descrever o indescritível, conseguindo uma tradução visual criativa para os horrores que Lovecraft apenas insinua...
Claro que não estaremos perante uma banda desenhada perfeita, pois Buscaglia mostra demasiada reverência pelo texto de Lovecraft, mantendo-o quase na integra. No entanto, as ilustrações, em que Breccia utiliza todas as técnicas ao seu alcance, desde a colagem, aguada, guache, aparo e carvão, conseguem captar de forma soberba o espírito perturbador dos textos de Lovecraft, de tal forma que nem o excelente trabalho do seu filho, Enrique Breccia em Lovecraft, consegue ultrapassar o do pai, três décadas antes.
E a ligação entre Breccia e Lovecraft não se ficou por Los Mitos de Cthulhu, pois em 1981 o desenhador argentino volta a pegar na obra do escritor de Providence, desta vez a cores, com uma adaptação de The Terrible Old Man no álbum Pesadillas, que inclui também adaptações, ou “notas de leitura”, como Brecia lhes prefere chamar, de outros clássicos da literatura fantástica como O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de Stevenson.
Traduzindo a importância dos trabalhos de Alberto Breccia a partir de Lovecraft, o próprio “El Viejo” (tal como era tratado por muitos dos seus colegas desenhadores) surge como personagem em El Outro Necronomicon, uma série de António Segura e Brocal Remohi, em que Breccia narra aos dois autores, uma série de histórias que Lovecraft teria escrito, mas nunca teve coragem de publicar. A sombra tutelar de Breccia também está presente na adaptação de The Call of Cthulhu, feita por Horacio Lalia, um desenhador argentino que serviu de modelo a Breccia para a personagem de Mort Cinder. Menos conseguido, é o trabalho de outro argentino, Hernán Rodríguez, que no livro Visiones, adapta um punhado de contos de H.P.L.
Bem mais interessante, é o trabalho do alemão Reinhard Kleist (mais conhecido pela sua biografia em BD do músico Johnny Cash) em Les Rats dans les Murs et autres Nouvelles, álbum que reúne quatro adaptações de outros tantos contos de Lovecraft. Mais livre, mas menos interessante, é a adaptação do poema Nyarlathotep, feita por Julien Noirel, num álbum editado em França em 2007.
O italiano Dino Battaglia, falecido em 1983, foi outro fantástico desenhador que ilustrou vários contos de Lovecraft para a revista LINUS, tal como tinha feito com outros escritores como Poe, Melville, Stevenson, ou Maupassant. Tal como Battaglia, outro autor que tem trabalhado bastante a partir da obra de Lovecraft, é Richard Corben que, depois de ter adaptado The Rats in the Wall para a revista CREEPY, em 1972, voltou a pegar na obra do escritor de Providence, adaptando um punhado de contos na mini-série Haunt of Horror, publicada em 2008 pela Marvel.
Além disso, a influência de Lovecraft é bem evidente em outros trabalhos de Corben, como a série Den, em que um feiticeiro invoca uma criatura tentacular, chamada… Uluhtc. Colega e amigo de Corben, Bernie Wrightson também adaptou o trabalho de Lovecraft nas páginas da revista CREEPY, com a história Cool Air, bem reveladora do seu grande talento de desenhador, que levou a que Stuart Gordon o convidasse mais tarde para director artístico de umas adaptação cinematográfica de The Shadow over Innsmouth, que nunca chegou a ser filmada.


EXPLORANDO O UNIVERSO LOVECRAFTIANO

Mesmo que nunca tenham adaptado directamente nenhum texto de Lovecraft, há um sem números de criadores cujo trabalho revela claramente a influência da obra de H. P.L. Mike Mignola é talvez o caso mais óbvio, sendo a influência de Lovecraft facilmente perceptível, e perfeitamente assumida, na série Hellboy. Basta ver "Semente de Destruição, a primeira mini-série de Hellboy, em que há uma expedição ao ártico, claramente inspirada na expedição descrita por Lovecraft em At the Mountains of Madness. E Mignola é também autor de um excelente retrato do escritor, feito para a capa da revista DARK HORSE PRESENTS, provavelmente inspirado por uma ilustração anterior de Moebius, feita para um número espacial da revista METAL HURLANT, dedicado a Lovecraft.
Moebius, que aproveita o facto “da mitologia lovecraftiana ser suficientemente conhecida para ser usada como referência”, para construir uma história de crítica social, em que o Presidente francês faz um acordo com Lovecraft para se poder dedicar à caça de Cthulhus. Uma história que, como o autor refere numa entrevista, foi inspirada numa notícia que leu sobre o Presidente Giscard D’Estaing que utilizou os privilégios do seu cargo para ir caçar animais selvagens em África. Outro destaque deste número da Metal Hurlant, em que todos os desenhadores prestaram a sua homenagem ao escritor é o trabalho de Druillet, grande fã de Lovecraft, que aqui cria a sua própria versão do Necronomicon.
Necronomicon, o livro maldito que está no centro de uma aventura de Martin Mystére, outro célebre herói da editora Bonelli, criado por Alfredo Castelli, em que o detective do impossível evoca o trágico destino de Abdul Alhazred, o árabe louco que compilou o Necronomicon.
Mais inesperado e ainda menos conhecido, é Mar de Tenieblas, o primeiro trabalho profissional de Miguelanxo Prado, publicado em 1981 na edição espanhola da revista CREEPY, em que o criador de Traço de Giz, na sua única incursão pelo terror, transporta o ambiente de contos como Dagon e The Shadow over Innsmouth para a costa da Galiza, banhada pelo Atlântico, o mar das trevas.
Deste lado da fronteira, uma série de jovens desenhadores portugueses, actualmente reunidos na Associação Tentáculo, prestou a sua homenagem a Lovecraft, em Murmúrios das Profundezas, uma colectânea que recolhe uma série de histórias curtas de inspiração lovecraftiana.
Dois dos maiores argumentistas de BD de língua inglesa, Neil Gaiman e Alan Moore, têm prestado várias homenagens à obra de Lovecraft. E se os trabalhos lovecraftianos de Gaiman, são todos no campo da literatura, em contos como os premiados A Study in Emerald e I Cthulhu, ou o divertido Shoggoth’s Old Peculiar, que podemos aqui ouvir, lido pelo próprio Gaiman, já Alan tem textos seus de inspiração lovecraftiana adaptados à BD, como é o caso de The Courtyard, um conto escrito em 1994 para a colectânea The Starry Wisdom: A Tribute to H. P. Lovecraft e adaptado à BD em 2003, por Antony Johnston, com desenhos de Jacen Burrows. O mesmo Jacen Burrows que está a ilustrar Neonomicon, uma sequela escrita por Moore, que é o seu mais recente trabalho em BD e, a acreditar nas entrevistas recentes do escritor de Northampton, poderá muito bem ser o último...
Se Neonomicon for mesmo o último argumento de BD escrito por Moore, vai ser uma despedida memorável para os fãs de Lovecraft, a avaliar pelas palavras do escritor, que diz: “Eu queria escrever uma história que modernizasse Lovecraft – que não se apoiasse na atmosfera dos anos 30 – e que o fizesse de uma forma bem sucedida. Suponho que também pensei que seria interessante se pudesse trazer alguns do naturalismo que encontramos em séries de televisão como “The Wire” para uma intriga naturalmente fantástica. Porque aquela série era tão realista e tão credível, que me pareceu que seria uma excelente maneira de abordar algo tão intrinsecamente fantástico e inacreditável como o universo de Lovecraft.
Esse foi um dos pontos de partida. Outro foi colocar na história alguns dos elementos mais questionáveis que o próprio Lovecraft censurou, e que as pessoas que têm escrito pastiches de Lovecraft também optaram por deixar de fora. Elementos como o racismo, o anti-semitismo, o sexismo, as fobias sexuais que eram mais ou menos aparentes em todos os viscosos monstros lovecraftianos, de formas fálicas e vaginais. Há uma ausência da parte física em Lovecraft, um horror ao físico, que eu quis corrigir.”
Com a mini-série a começar a sair agora nos EUA, ainda é cedo para avaliar se Alan Moore consegue ou não concretizar de forma eficaz tão arriscada mistura, mas pelo que pude ler até agora, a coisa promete…


LOVECRAFT, HERÓI DE BANDA DESENHADA

Quase tão numerosas como as adaptações à BD de histórias de H. P. L., são as histórias em que o próprio Lovecraft é protagonista, transformando o próprio escritor em personagem de Banda Desenhada. O melhor exemplo desta terceira tendência, é Lovecraft, editado em Portugal pela Vitamina BD, com tradução de Fernando Ribeiro, vocalista dos Moonspell e fã assumido de Lovecraft. Escrito originalmente como um guião para cinema por Hans Rodionoff, adaptado à BD pelo veterano Keith Giffen e desenhado por Enrique Breccia, Lovecraft parte de uma premissa tão simples como genial: e se o escritornão tivesse inventado os indescritíveis horrores que enchem as páginas dos seus livros, mas os tivesse vivido? Assim, a vida e a obra de Lovecraft fundem-se nesta história, que concilia os dados históricos da biografia com as personagens saídas dos seus livros, como o terrível Cthulhu, cuja presença pode ser invocada pela leitura do Necronomicon, o livro maldito escrito pelo Sheik Abdul Alharazed que, segundo este relato, não foi inventado por Lovecraft, mas já existia na biblioteca do seu pai.
Mas, para além da forma hábil como combina os dados históricos com a ficção lovecraftiana, este livro tem o seu maior trunfo no desenho de Enrique Breccia. Filho de Alberto Breccia, Enrique não vai tão longe como o pai, mesmo que a forma como o seu estilo se altera para marcar a distinção entre o que é real e o que Lovecraft imagina, seja notável. Vejam-se as cenas oníricas, em que Enrique se revela um pintor extremamente inspirado e de paleta vibrante.
Também Andréas e Riviere fazem de Lovecraft um dos personagens de Revelations Posthumes, livro que recolhe uma série de histórias curtas, protagonizadas por escritores. E o mesmo Lovecraft é também protagonista de The Strange Adventures of H. P. Lovecraft, de Mac Carter e Tony Salmons, uma abordagem bastante livre da vida do escritor de Providence, aqui quase transformado num herói de acção. Igualmente livre, mas mais divertida é a abordagem de José Oliver e Bartolo Torres em El joven Lovecraft, uma série de tiras nascidas na internet em que o universo de Lovecraft se encontra com o de Tim Burton e Roman Dirge.
O próprio Lovecraft empresta também as feições a uma personagem de um episódio de Dylan Dog, a série de culto da editora Bonelli, em que Tiziano Sclavi homenageia o mestre da literatura fantástica, cuja influência é bem perceptível nas aventuras do detective do oculto. Neste campo, uma das mais inesperadas homenagens a H. P.L., é feita pelo espanhol Max, numa história em que Walt Disney encontra Lovecraft, um encontro tão inesperado como o promovido pelo ilustrador inglês Murray Groat, que escolhi para terminar este texto, numa série de ilustrações que simulam capas de álbuns da série Tintin, aventuras apócrifas em que o repórter da poupa loura mergulha no universo lovecraftiano, como aconteceria se Lovecraft fosse o argumentista das histórias que Hergé desenhou.
Texto originalmente publicado no nº 9 da revista Bang!, em Fevereiro de 2011




4 comentários:

DC disse...

Uma outra referência muito conhecida à obra do Lovecraft é a presença do Necronomicon na saga "Evil Dead" de Sam Raimi.
Está a ser rodada a adaptação do romance "Arcanum" que retrata uma equipa semelhante à Liga de Cavalheiros Extraordinários composta por figuras históricas como Houdini ou Lovecraft mas é um falhanço total na caracterização das diversas personagens.

JML disse...

Olá Diogo! Não falei no "Evil Dead" porque o texto é dedicado à presença do Lovecraft na BD, não no cinema. O cinema dava perfeitamente para outro artigo, embora ache que ainda está por fazer um filme que faça inteira justiça ao universo de Lovecraft. Poderá ser o "At the Mountains of Madnesss", do Guillermo Del Toro, se algum dia o filme for feito...

DC disse...

Infelizmente já foi anunciado que o "At the Mounstains of Madness" do del Toro ficou na gaveta por falta de orçamento. Se alguma vez for feito vai ser daqui a muitos anos. Existe uma versão muda a preto e branco desse livro, bastante engraçada mas que não deve agradar a muita gente.
E volto a repetir, "Arcanum" é muita mauzinho, até o Aleister Crowley, uma personagem tão interessado, tratam-no como se ele fosse um Darth Vader cliché:P

DC disse...

Já agora, deixe-me fazer uma correcção. Os Murmúrios das Profundezas nada têm a ver com a Associação Tentáculo. Acontece que alguns dos membros fazem parte da Associação mas é por opção pessoal, o colectivo R'Lyeh Dreams (responsável pelos Murmúrios e, brevemente, pelo Voyager) não está reunido na Associação.