domingo, 29 de março de 2015
As 10 Melhores BDs que li em 2014 - Parte 2
E aqui fica a segunda, e ultima, parte da lista das 10 Melhores BDs que li em 2014, onde aparecem alguns nomes que,de ano para ano, vão sendo recorrentes, como Naoki Urasawa, ou Marco Mendes. Quanto a editoras, a Image volta a aparecer, confirmando-se como a mais interessante editora americana da actualidade. Mas aqui fica o resto da lista, esperando que no próximo ano, consiga publicar este Best Of bem mais cedo...
6 - Los Zurcos del Azar, Paco Roca, Astiberri
Conhecido em Portugal pelo premiado Rugas, Paco Roca tem aqui o seu trabalho mais ambicioso nesta biografia ficcionada de Miguel Ruiz, que lhe permite contar a história de La Nueve, uma companhia do exército da França Livre, composta maioritariamente por espanhóis que tinham lutado do lado da República durante a Guerra Civil espanhola e que vão participar na libertação de Paris. Com uma estrutura narrativa que o aproxima do Maus de Art Spiegelman, Los Zurcos del Azar confirma o virtuosismo narrativo de Roca e o seu indiscutível talento.
7 - Manifest Destiny, Chris Dingess e MaThew Roberts, Image
Mais uma excelente nova série da Image, que pega na famosa expedição de Lewis e Clark, que no início do século XIX encetou a exploração costa a costa do continente norte-americano, introduzindo-lhe um toque fantástico que faz toda a diferença. É uma daquelas ideias tão simples quanto geniais, muito bem explorada por Dingess, e que tem no trabalho gráfico de Roberts e nas cores de Owen Gieni, uma mais-valia. Outro grande título da Image, a seguir com atenção.
8 - Master Keaton, Naoki Urasawa, Hokusei Katsushika e Takashi Nagasaki, Kana
Mais uma vez, um título de Urasawa entra numa minha lista de Melhores Leituras do ano. Neste caso, um trabalho mais antigo, em que Urasawa assina inicialmente apenas o desenho, pertencendo a história numa primeira fase a Katsushika e Nagasaki. Ao contrário dos outros títulos de Urasawa, que eram histórias de grande fôlego, Master Keaton é composto por episódios de 20 a 40 páginas que podem ser lidos de forma isolada, sendo por isso, um óptimo ponto de entrada na obra do meu autor japonês favorito.
9 - Sugar Skull, de Charles Burns, Pantheon
Capítulo final da trilogia hergeana de Charles Burns, Sugar Skull é o final inesperado de uma história estranha e perturbadora que articula a linha clara e o universo de Hergé, com o universo sombrio habitual de Burns, numa história com várias camadas e diferentes níveis de leitura. Embora não seja de apreensão tão imediata, esta trilogia está perfeitamente ao nível de Black Hole, o seu trabalho anterior.
10 - Zombie, de Marco Mendes, Mundo Fantasma/Turbina
Primeiro trabalho de grande fôlego de Marco Mendes, Zombie é um claro passo em frente na carreira do autor, que se sai muito da passagem das histórias curtas de uma página, para uma narrativa mais extensa e consistente. Misturando a ficção e a autobiografia, Mendes continua construir uma obra sólida, afirmando-se como uma voz singular e incontornável na BD nacional.
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quinta-feira, 26 de março de 2015
Colecção Novela Gráfica 5 - Beterraba: A vida numa Colher, de Miguel Rocha
MIGUEL ROCHA, UM AUTOR PORTUGUÊS
NA COLECÇÃO NOVELA GRÁFICA
Novela Gráfica – Vol. 5
Beterraba: A Vida numa Colher
Argumento e Desenhos – Miguel Rocha
Quinta, 26 de Março
Por + 9,90€
Numa colecção que reúne o melhor da BD de autor a nível mundial, a presença portuguesa está assegurada por Miguel Rocha, autor de Beterraba: A Vida numa Colher, um livro poderoso, marcado pelas cores quentes do Alentejo, e o seu mais ambicioso trabalho. Realizado ao abrigo de uma Bolsa de Criação Literária do Ministério da Cultura, foi publicado originalmente em 2003, tendo arrebatado os prémios para Melhor Livro e Melhor Desenho no Festival de BD da Amadora de 2004 e sido publicado em Espanha e França. Mais de uma década depois, é finalmente reeditado, com uma nova capa, na colecção Novela Gráfica.
Beterraba é a história de Olegário, um homem que, perante um mundo que não lhe servia, decidiu fazer outro à sua medida. Um patriarca em luta contra a avareza do solo alentejano, que nada lhe permite cultivar e a crueldade do destino, que lhe nega o filho varão que tanto deseja, tentando moldar a terra que o rodeia à sua ambição, numa história simultaneamente épica e intimista, a meio caminho entre o neo-realismo nacional e o realismo mágico sul-americano, que Miguel Rocha conta em páginas de grande beleza, marcadas por uma utilização única da cor.
Nascido em Lisboa em 1968, Miguel Rocha só por volta dos 30 anos se sentiu impelido a fazer BD, mas isso não o impediu de construir uma importante carreira no género, onde ressaltam títulos como Salazar (com argumento de João Paulo Cotrim) e este Beterraba. Miguel Rocha é também um autor cuja obra está bastante ligada ao Público, pois para além de ter sido um dos autores a participar no projecto Vinte e Cinco, com que o Público assinalou os 25 anos do 25 de Abril, com O Museu (com argumento de João Miguel Lameiras e João Ramalho Santos), foi também neste jornal que Borda d’água, um dos seus primeiros trabalhos, foi publicado a cores. Também por isso, a sua presença nesta colecção em que o Público e a Levoir dão a descobrir aos leitores portugueses o melhor da Novela Gráfica, surge como lógica e natural.
Publicado originalmente no jornal Público de 20/03/2015
NA COLECÇÃO NOVELA GRÁFICA
Novela Gráfica – Vol. 5
Beterraba: A Vida numa Colher
Argumento e Desenhos – Miguel Rocha
Quinta, 26 de Março
Por + 9,90€
Numa colecção que reúne o melhor da BD de autor a nível mundial, a presença portuguesa está assegurada por Miguel Rocha, autor de Beterraba: A Vida numa Colher, um livro poderoso, marcado pelas cores quentes do Alentejo, e o seu mais ambicioso trabalho. Realizado ao abrigo de uma Bolsa de Criação Literária do Ministério da Cultura, foi publicado originalmente em 2003, tendo arrebatado os prémios para Melhor Livro e Melhor Desenho no Festival de BD da Amadora de 2004 e sido publicado em Espanha e França. Mais de uma década depois, é finalmente reeditado, com uma nova capa, na colecção Novela Gráfica.
Beterraba é a história de Olegário, um homem que, perante um mundo que não lhe servia, decidiu fazer outro à sua medida. Um patriarca em luta contra a avareza do solo alentejano, que nada lhe permite cultivar e a crueldade do destino, que lhe nega o filho varão que tanto deseja, tentando moldar a terra que o rodeia à sua ambição, numa história simultaneamente épica e intimista, a meio caminho entre o neo-realismo nacional e o realismo mágico sul-americano, que Miguel Rocha conta em páginas de grande beleza, marcadas por uma utilização única da cor.
Nascido em Lisboa em 1968, Miguel Rocha só por volta dos 30 anos se sentiu impelido a fazer BD, mas isso não o impediu de construir uma importante carreira no género, onde ressaltam títulos como Salazar (com argumento de João Paulo Cotrim) e este Beterraba. Miguel Rocha é também um autor cuja obra está bastante ligada ao Público, pois para além de ter sido um dos autores a participar no projecto Vinte e Cinco, com que o Público assinalou os 25 anos do 25 de Abril, com O Museu (com argumento de João Miguel Lameiras e João Ramalho Santos), foi também neste jornal que Borda d’água, um dos seus primeiros trabalhos, foi publicado a cores. Também por isso, a sua presença nesta colecção em que o Público e a Levoir dão a descobrir aos leitores portugueses o melhor da Novela Gráfica, surge como lógica e natural.
Publicado originalmente no jornal Público de 20/03/2015
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domingo, 22 de março de 2015
75 Anos do Batman 5 - Batman: 75 Anos de Aventuras
E com este 10º volume, o 5ª para o qual escrevi textos introdutórios, chega ao fim esta colecção dedicada aos 75 Anos do Cavaleiro Das Trevas, que permite ter novamente disponíveis algumas das melhores histórias de sempre do Batman, em belas edições. Esta foi também a colecção feita mais a correr, numa altura em que já começávamos a trabalhar na colecção das Novelas Gráficas. Mas julgo que o esforço valeu a pena e os fãs não se podem queixar, mesmo que inevitavelmente, haja sempre quem se queixe...
BATMAN, 75 ANOS DE AVENTURAS
Com esta recolha antológica de onze histórias de diferentes épocas, assinadas por alguns dos maiores nomes da história dos comics, concluímos esta viagem comemorativa dos 75 anos da criação do Batman. Criado por Bob Kane em 1939, com a colaboração de Bill Finger no argumento, na sequência do sucesso do Super-Homem de Jerry Siegel e Joe Schuster um ano antes, Batman é um dos super-heróis mais humanos e carismáticos de todos os tempos e um dos raros que não tem qualquer superpoder, funcionando quase como um negativo do Super-Homem. E é precisamente essa dimensão mais humana, que facilita a identificação dos leitores, um dos elementos que actualmente fazem do Batman o mais popular dos super-heróis.
Quando o descobrimos pela primeira vez, na história que abre este volume, publicada em 1939 no nº 27 da revista Detective Comics, Batman, o sombrio super-herói, está já no activo há algum tempo e a sua fama precede-o, enquanto o homem que se esconde por detrás da máscara, o milionário Bruce Wayne, tem uma participação mais discreta. E só largos meses depois, os leitores descobrem o que levou Bruce Wayne a transformar-se no vigilante vestido de morcego, através de um flash-back de duas páginas, publicado no # 33 da revista Detective Comics, que mostra como o assassinato dos pais do jovem Bruce Wayne levou o traumatizado órfão a consagrar a sua vida ao combate do crime, escolhendo a imagem do morcego para infundir terror a essas criaturas “medrosas e supersticiosas” que são os criminosos. Uma história que surge neste volume numa versão mais contemporânea, assinada por Jeph Loeb e Jim Lee.
O sucesso de Batman cedo lhe garantiu uma revista própria e, ao longo da década de 40, as aventuras de Batman começaram a aparecer também nas revistas Batman e World’s Finest Comics, para além da Detective Comics, que viria dar o nome à editora e onde tudo começou. É na revista Batman que vai aparecer pela primeira vez a jornalista Vicki Vale, uma intrépida repórter criada por Bob Kane, com o apoio de Bill Finger no argumento e de Charles Paris na arte, funcionando um pouco como a Lois Lane em relação ao Super-Homem. E é precisamente O Furo do Século, a história que assinala essa estreia, que este volume recolhe.
Com o aparecimento desses novos títulos, o grupo de colaboradores que rodeava Bob Kane, foi alargado a novos argumentistas e a desenhadores, para além de Bill Finger, como Sheldon Moldoff, Charles Paris, Jerry Robinson e Dick Sprang, autor cujo estilo único marcou a imagem do Homem-Morcego na década seguinte e que está presente neste livro com O Batman de Amanhã, história que explora o ambiente de ficção científica, tão em voga nos comics da década de 50.
Tal como a América, também o Batman vai mudar na década de 60. Esse processo, conhecido como “New Look”, culmina em Maio de 1964 com a mudança de imagem do herói, da qual o símbolo do morcego, que passa a surgir dentro de um círculo amarelo, é o exemplo mais imediato, mas que passa também pelo aparecimento de autores com um estilo mais elegante e realista como Carmine Infantino, aqui representado com a história que inaugurou essa mudança, publicada precisamente 25 anos e 300 nºs após a primeira aparição do Batman. O sucesso comercial deste “novo” Batman a que não é alheio o trabalho gráfico de Infantino, foi imediato e chamou a atenção do produtor William Dozier, que decidiu criar uma série de televisão dedicada ao Cruzado de Capa e que, quase 50 anos após a sua estreia, continua a marcar o imaginário de muitos leitores.
Na década de 70, Batman voltaria a aproximar-se do violento combatente do crime da fase inicial, graças ao trabalho da dupla Denny O’Neil/Neal Adams. Nessa América em mudança, é natural que os jovens leitores já não se identificassem com a versão kitsch do Batman que marcou a década de 60, de que a série televisiva com Adam West foi o expoente máximo em termos mediáticos. Daí a necessidade de criar um novo herói para uma nova era, um Batman mais sombrio e realista, na linha da dura realidade que rodeava os leitores. Julius Schwartz, o editor da DC encarregado da personagem, sabia quem eram os homens certos para esse trabalho e optou por reunir novamente o escritor Denny O'Neil com o desenhador Neal Adams, depois da revolucionária passagem da dupla pela série Lanterna Verde/Arqueiro Verde, que os leitores puderam acompanhar na primeira colecção que a Levoir dedicou à DC. E é precisamente a primeira colaboração da dupla numa história do Batman, que apresentamos neste livro.
Mas, no que ao Batman diz respeito, a década de 70 não se resume apenas ao trabalho de Neal Adams. Presentes neste volume estão dois outros mestres dos comics que desenharam o Batman nesta década. São eles Alex Toth, representado neste volume pela única história do Batman que desenhou ao longo da sua prestigiada carreira, e Marshall Rogers, ilustrador cujo estilo elegante e estilizado deu vida a uma imagem do Batman que à época foi considerada como “definitiva”. Mas como bem sabemos, “definitivo” é um termo difícil de aplicar a qualquer versão de um personagem que, como o Batman, se caracteriza por se saber adaptar ao pulsar do seu tempo. A prová-lo está a verdadeira revolução que chegaria em 1986, com Frank Miller e o seu Regresso do Cavaleiro das Trevas, já publicado nesta colecção. Mas já antes Miller tinha tido a oportunidade de desenhar o Batman em Procura-se: Pai Natal… morto ou vivo!, uma tão singela como bem conseguida história de Natal, que não podia faltar nesta antologia.
Neste volume, há ainda espaço para uma história da década de 90, Crise de Identidade, uma perturbadora viagem pela mente de Bruce Wayne, assinada por Tom Mandrake e por Peter Milligan, argumentista inglês que deixou a sua marca na linha Vertigo. E, para fechar temos o magnífico J. H. Williams III, cujo fabuloso trabalho visual e de composição os leitores já conhecem do volume dedicado à Batwoman, da primeira colecção que a Levoir dedicou à DC e que aqui ilustra um inspirado argumento de Paul Dini, escritor que esteve em destaque em Detective, o sétimo volume desta colecção.
Mas esta história de 75 anos de sucesso não acaba aqui. Cada vez mais popular, o Cavaleiro das Trevas soube renovar-se, tanto na BD, como no cinema, ou nos jogos de computador. Nos comics essa renovação atingiu todo o universo DC, que através da Linha Novos 52, foi actualizado para o século XXI. A esse nível, é impossível não citar o excelente trabalho de Scott Snyder e Greg Capullo na principal revista do Batman. Mas essa, já é uma outra história que, quem sabe, talvez possamos vir um dia a acompanhar, em português de Portugal, numa nova colecção da Levoir.
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Sol
quinta-feira, 19 de março de 2015
Colecção Novela Gráfica 4 - Foi Assim a guerra das Trincheiras, de Jacques Tardi
TARDI E A GRANDE GUERRA
EM DESTAQUE NA COLECÇÃO NOVELA GRÁFICA
Novela Gráfica – Vol. 4 Foi Assim a Guerra das Trincheiras
Argumento e Desenhos – Jacques Tardi
Quinta, 19 de Março
Por + 9,90€
Mesmo que os leitores portugueses o conheçam principalmente pela série Adèle Blanc-Sec, a obra mais emblemática de Jacques Tardi é indiscutivelmente Foi Assim a Guerra das Trincheiras, a crónica da Primeira Grande Guerra que chega às bancas na próxima quinta-feira.
Nascido em 1946, Tardi tem bem presente desde a infância os horrores da Guerra de 14-18, graças às histórias que a sua avó lhe contava sobre a experiência do marido nas trincheiras, onde foi ferido e gazeado. Histórias dos horrores da guerra, que incendiaram a imaginação de uma criança de seis anos que, sem saber bem o que era uma trincheira, tinha pesadelos em que as descrições da avó ganhavam corpo. E a Guerra tornou-se uma verdadeira obsessão para o jovem autor que, depois de ter tirado Belas Artes em Lyon e Artes Decorativas em Paris, bate à porta da revista Pilote em 1970, procurando fazer a sua estreia na BD com uma história de seis páginas sobre… a Guerra de 14-18. A história foi rejeitada por René Goscinny, o criador de Astérix, que era então director da Pilote, por achar que o retrato sombrio e muito pouco heróico que Tardi traçava dos militares, podia ser desmoralizante para os jovens leitores da Pilote e para os pais que os educavam e lhe compravam a revista…
Naturalmente, o tema da Guerra de 14-18 volta a estar presente em La Veritable Histoire du Soldat Inconnu, de 1974 e aparece de forma ainda mais evidente em La Fleur au Fusil, história protagonizada por Lucien Brindavoine, personagem secundário das aventuras de Adèle Blanc-Sec, que aqui deserta para fugir aos horrores da Guerra.
Mas é em 1982, nas páginas do nº 50 da revista (A Suivre), aproveitando a total liberdade que a revista dava aos seus autores, para criarem verdadeiros romances gráficos, sem quaisquer constrangimentos temáticos, ou de espaço, que nasce Foi Assim a Guerra das Trincheiras. Publicado ao longo de 10 anos, ao mesmo tempo que Tardi prosseguia com outros projectos, como a série Adèle Blanc-Sec e a adaptação, com o escritor Leo Malet, dos romances protagonizados pelo detective Nestor Burma, Foi Assim a Guerra das Trincheiras é mais uma recolha de histórias soltas, marcadas pelo horror da Guerra vista na perspectiva dos poilus, os soldados de Infantaria que tentam sobreviver nas trincheiras, do que uma história única.
Mas a verdade é que, embora esses relatos curtos da Grande Guerra possam ser lidos de forma autónoma, a sua leitura conjunta permite formar um quadro coerente, detalhado e sem concessões da aterradora realidade do mais sangrento conflito da História.
Depois de Foi Assim a Guerra das Trincheiras, Tardi voltaria ao tema da Guerra de 14-18, com Varlot, Soldado, uma história escrita por Didier Daeninckx, que a Polvo publicou em Portugal e, no final da década de 2000, com Putain de Guerre! escrito a meias com o historiador Jean-Pierre Verney, mas nenhum desses trabalhos conseguiu superar o impacto de Foi Assim a Guerra das Trincheiras, muito justamente considerada como a obra-prima de Tardi.
Publicado originalmente no jornal Público de 13/03/2015
EM DESTAQUE NA COLECÇÃO NOVELA GRÁFICA
Novela Gráfica – Vol. 4 Foi Assim a Guerra das Trincheiras
Argumento e Desenhos – Jacques Tardi
Quinta, 19 de Março
Por + 9,90€
Mesmo que os leitores portugueses o conheçam principalmente pela série Adèle Blanc-Sec, a obra mais emblemática de Jacques Tardi é indiscutivelmente Foi Assim a Guerra das Trincheiras, a crónica da Primeira Grande Guerra que chega às bancas na próxima quinta-feira.
Nascido em 1946, Tardi tem bem presente desde a infância os horrores da Guerra de 14-18, graças às histórias que a sua avó lhe contava sobre a experiência do marido nas trincheiras, onde foi ferido e gazeado. Histórias dos horrores da guerra, que incendiaram a imaginação de uma criança de seis anos que, sem saber bem o que era uma trincheira, tinha pesadelos em que as descrições da avó ganhavam corpo. E a Guerra tornou-se uma verdadeira obsessão para o jovem autor que, depois de ter tirado Belas Artes em Lyon e Artes Decorativas em Paris, bate à porta da revista Pilote em 1970, procurando fazer a sua estreia na BD com uma história de seis páginas sobre… a Guerra de 14-18. A história foi rejeitada por René Goscinny, o criador de Astérix, que era então director da Pilote, por achar que o retrato sombrio e muito pouco heróico que Tardi traçava dos militares, podia ser desmoralizante para os jovens leitores da Pilote e para os pais que os educavam e lhe compravam a revista…
Naturalmente, o tema da Guerra de 14-18 volta a estar presente em La Veritable Histoire du Soldat Inconnu, de 1974 e aparece de forma ainda mais evidente em La Fleur au Fusil, história protagonizada por Lucien Brindavoine, personagem secundário das aventuras de Adèle Blanc-Sec, que aqui deserta para fugir aos horrores da Guerra.
Mas é em 1982, nas páginas do nº 50 da revista (A Suivre), aproveitando a total liberdade que a revista dava aos seus autores, para criarem verdadeiros romances gráficos, sem quaisquer constrangimentos temáticos, ou de espaço, que nasce Foi Assim a Guerra das Trincheiras. Publicado ao longo de 10 anos, ao mesmo tempo que Tardi prosseguia com outros projectos, como a série Adèle Blanc-Sec e a adaptação, com o escritor Leo Malet, dos romances protagonizados pelo detective Nestor Burma, Foi Assim a Guerra das Trincheiras é mais uma recolha de histórias soltas, marcadas pelo horror da Guerra vista na perspectiva dos poilus, os soldados de Infantaria que tentam sobreviver nas trincheiras, do que uma história única.
Mas a verdade é que, embora esses relatos curtos da Grande Guerra possam ser lidos de forma autónoma, a sua leitura conjunta permite formar um quadro coerente, detalhado e sem concessões da aterradora realidade do mais sangrento conflito da História.
Depois de Foi Assim a Guerra das Trincheiras, Tardi voltaria ao tema da Guerra de 14-18, com Varlot, Soldado, uma história escrita por Didier Daeninckx, que a Polvo publicou em Portugal e, no final da década de 2000, com Putain de Guerre! escrito a meias com o historiador Jean-Pierre Verney, mas nenhum desses trabalhos conseguiu superar o impacto de Foi Assim a Guerra das Trincheiras, muito justamente considerada como a obra-prima de Tardi.
Publicado originalmente no jornal Público de 13/03/2015
terça-feira, 17 de março de 2015
As 10 Melhores BDs que li em 2014 - Parte 1
Tal como sucedeu no ano passado, também este ano não consegui publicar a minha lista das 10 melhores Bandas Desenhadas que li pela primeira vez no ano anterior, antes de meados de Março... mas como mais vale tarde do que nunca, cá vai finalmente a primeira parte da lista relativa a 2013.
Durante o ano de 2014, tive o prazer de ver três dos títulos que inclui na minha lista de 2013, publicados em Portugal pela G Floy. Refiro-me a Saga. Fatale e Chew (ou Tony Chu, na versão portuguesa), três bons exemplos da qualidade e diversidade da produção actual da Image. Esperemos que alguns dos livros desta colheita de 2014 tenham também direito a edição nacional.
Mas passemos à primeira metade da lista das Melhores BDs que LI PELA PRIMEIRA VEZ EM 2014, organizada, como sempre, por ordem alfabética.
1 - Blast 4: Pourvu que les Boudhistes se Trompent, Manu Larcenet, Dargaud
A obra-prima de Larcenet chega ao fim com este quarto volume, que resolve muitas das questões deixadas em aberto pelos anteriores volumes. Título incluído na minha lista das Melhores Leituras de 2009, graças ao primeiro volume, Blast, soube manter e até superar a qualidade da entrega inicial. Obra inquietante, sombria e duríssima, Blast é um verdadeiro murro no estômago, mas também um passo em frente, em termos gráficos e narrativos, em relação ao mais convencional, mas igualmente excelente Le Combat Ordinaire.
2 - Birth Right, de Joshua Williamson e Andrei Bressan, Image
Mais uma grande série da Image, que me deixou completamente agarrado. Joshua Williamson (o argumentista de Nailbiter e Ghosted) criou mais uma interessante variante sobre um tema clássico da Fantasia, a Viagem do Herói, explorando o que acontece quando o herói regressa a casa vindo de um mundo de fantasia e tem de enfrentar as consequências que o seu desaparecimento teve na sua família. Uma série que promete magnificamente ilustrada por Andrei Bressan, um desenhador brasileiro com algum trabalho publicado na DC, que aqui dá um verdadeiro show.
3 - Charly 9, de Richard Guerineau e Jean Teulé, Delcourt
Já tive ocasião de falar em pormenor neste blog da surpreendente adaptação que Guerineau fez do romance de Jean Teulé sobre o Rei Carlos IX, pelo que não me vou alongar mais. fica apenas a sugestão para não perderem este magnífico livro.
4 - Les Ignorants, de Étienne Davodeau, Futuropolis
Um livro que reúne duas das coisas de que mais gosto: BD e vinho, tem tudo para me agradar.E a verdade é que esta reportagem em BD feito por Davodeau sobre a aprendizagem conjunta de um autor de BD e de um produtor de vinho sobre um trabalho um do outro, resulta num livro cativante, cuja leitura recomendo vivamente. De preferência com um bom vinho a acompanhar.
5 - Little Tulip, de Boucq e Charyn, Lombard
Mais de vinte anos após terem colaborado em A Mulher do Mágico e Boca do Diabo, Boucq e Charyn voltam a reunir-se para mais uma história passada entre a Rússia e Nova Iorque. Mais uma vez, o escritor Jerome Charyn cria uma história feita por medida para o traço de François Boucq, que tendo como protagonista um tatuador que aprendeu o seu ofício nos gulags, traz o desenho para o centro da história. Um belo regresso de uma dupla de criadores em total sintonia.
Continua...
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segunda-feira, 9 de março de 2015
Colecção Novela Gráfica: Duas Entrevistas com Edmond Baudoin, a propósito de A Viagem
No caso deste 3º volume, além do texto para o Público e da entrevista que o acompanha, assinei também o Editorial que abre o livro. Mas, como além deste material ,tinha também uma entrevista com o Baudoin sobre a sua experiência no mercado japonês que permanecia inédita e que cito abundantemente no editorial, optei por apresentar aqui antes essa entrevista de 2000, bem como a mini-entrevista com Baudoin feita por mail este ano, que acompanhou o texto do Público. Caso queiram mesmo ler o texto do Público, também é simples. Basta carregar na imagem, para ampliar a imagem do artigo até um formato legível. Quanto ao Editorial, por uma vez, terão que comprar o livro para o poder ler. Mas comecemos pela entrevista que saiu no Público:
BAUDOIN: “SIGAM OS VOSSOS SONHOS”
Aproveitando a sua estreia em português na próxima semana, com o livro A Viagem, Edmond Baudoin concedeu uma pequena entrevista exclusiva ao Público, centrada no título que chega às bancas na próxima quinta-feira, integrado na colecção Novela Gráfica.
O que é que pensa desta colecção?
Estou muito de feliz por estar incluído nesta colecção, junto com autores tão prestigiados. Gosto muito de Portugal. Já fui convidado por várias vezes para estar presente nos vossos Festivais, mas esta é a primeira vez que um livro meu é traduzido em português. Isso deixa-me muito feliz, pois da próxima vez que vier a Portugal, haverá um livro meu traduzido em português para autografar.
Como é que descreveria A Viagem, para alguém que não conheça o seu trabalho?
Há muito tempo, fiz um livro chamado Le Premier Voyage, que foi editado em França pela Futuropolis, num álbum de 44 páginas. Há uns quinze anos, um editor japonês, Kodansha, convidou-me para fazer um remake desse livro. Foi assim que nasceu A Viagem. Ou seja, é um livro que começou por ser um mangá, tendo sido publicado no Japão antes da França e desenhado no sentido de leitura japonês, que é oposto do ocidental.
É a história de um homem que no mesmo dia, abandona a sua família e o seu emprego, para partir numa viagem sem destino. O editor japonês sentiu uma grande afinidade com esta história, porque, como me contou, no Japão acontece com alguma frequência, por razões que ninguém compreende, que um indivíduo abandone tudo e acabe a viver como um vagabundo, ou como um selvagem, numa das muitas ilhas.
Para mim, esta é uma história um pouco autobiográfica. Aos 30 anos, era contabilista-chefe numa empresa, mas abandonei essa profissão para seguir o meu sonho e viver do desenho. Fui pobre durante muito tempo, mas muito mais feliz. É muito importante seguir os seus sonhos!
Quer deixar alguma mensagem para os seus novos leitores portugueses?
Sim, acabei de o escrever na pergunta anterior. Sigam os vossos sonhos. Mesmo que sejam pobres, terão uma vida muito mais rica… ao mesmo tempo, sinto-me um pouco incomodado ao propor que sejam pobres… Há tanta gente pobre actualmente, que gostaria de ter um emprego, mesmo de ajudante de contabilidade, para poder criar os seus filhos. É sempre difícil seguir os seus sonhos.
(realizada em Angoulême no dia 29/1/2000)
Falemos da sua experiência de trabalho para o Japão. Como é que foi contactado?
Um belo dia recebi muito simplesmente um telefonema da editora Kodansha, em que eles me perguntavam se eu estaria interessado em trabalhar para o mercado japonês. Apenas isto. Isso foi alguns meses depois de os Japoneses terem estado no Salão de Angoulême em 1992, ano em que o Japão era o país convidado, a contactar artistas franceses. Quando me contactaram, já tinham contratado Baru e Joliguth e julgo que foi Baru que lhes deu o meu contacto.
De qualquer modo, eles conheciam bem o meu trabalho e tinham ideias concretas em relação àquilo que queriam que eu fizesse. Pediram-me para fazer um “remake” do álbum Le Voyage, que eu tinha feito para a editora Futuropolis, começando precisamente onde terminava a anterior história. Eles queriam uma continuação dessa história.
Qual foi o seu método de trabalho. Foi viver para o Japão ou continuou a trabalhar em casa, mandando os desenhos para o Japão?
Apenas estive no Japão 15 dias como turista, a convite da editora Kodansha que me tratou principescamente. O trabalho foi todo feito em minha casa, em Nice. Eu desenhava as pranchas da direita para a esquerda, tal como iriam sair na edição japonesa, mandando o texto em folhas separadas e desenhava já as páginas no formato em que iriam ser publicadas na revista Morning, de modo a facilitar-lhes o trabalho. Para a edição francesa da Association foi necessário reverter a ordem dos filmes, juntar as legendas e retrabalhar as imagens, para as adequar ao sentido de leitura ocidental.
Qual era o feed back da Editora japonesa ao seu trabalho? Eles contactavam-no directamente, ou havia alguém que fazia a ligação entre os autores e a editora?
Eu começava por fazer uma sinopse rápida de cada episódio, uma espécie de story board feito de forma simples e rápida (normalmente demorava 2 dias a desenhar as 30 páginas da sinopse) e mandava esses esboços, acompanhados pelo texto a Takako Nasegawa, a representante da editora Kodansha em Paris, que fazia a tradução e mandava tudo para o Japão. Depois o editor japonês dizia o que é que achava, indicando as correcções a fazer, no caso de as haver. Com base nessas sugestões, sempre muito ajustadas, eu desenhava a versão final. As sugestões eram feitas pelo editor que estava encarregue de trabalhar comigo e que apenas tinha mais 2 desenhadores a seu cargo. Era alguém extremamente profissional, que conhecia perfeitamente a minha obra, tendo lido tudo aquilo que eu fiz! E as suas observações eram sempre extremamente pertinentes e tinham a ver com aspectos que pudessem dificultar a apreensão pelo público japonês do meu trabalho.
Para dar um exemplo: eu costumo fazer como José Muñoz, quando desenho uma figura de cabelos negros sobre um fundo negro, não me preocupo em distinguir os cabelos do fundo. No Japão isso é impossível. É preciso traçar uma linha branca que delimite bem os contornos da figura. Outro exemplo, os balões com as falas das personagens devem estar a meia altura do rosto das figuras, de modo a que o leitor japonês perceba quem é que está a falar. Do mesmo modo, enquanto que na BD europeia é perfeitamente possível ter um quadrado com duas pessoas à conversa, em que uma fala, a outra responde e a primeira fala outra vez, no Japão isso é impossível. A 3ª fala teria que vir no quadrado seguinte. O que explica que a história necessite de muito mais páginas para se desenvolver.
Nas minhas histórias, muitas vezes há quadrados em que a imagem diz uma determinada coisa, o texto diz outra e há ainda um bocado de texto em voz off, que simboliza o narrador da história. Isto é, três diferentes níveis de leitura na mesma imagem. No Japão isso é impossível, tal como não é aconselhável utilizar balões de pensamento, ou aqueles pequenos textos a dizer “entretanto”, “enquanto isso”, ou “no dia seguinte”. Em contrapartida, temos um espaço muito maior para desenvolver o jogo corporal das personagens. E, mais do que pelos diálogos, a caracterização das personagens faz-se através desse jogo corporal, dos olhares, dos sorrisos. É uma forma mais visual de contar uma história, mas tão ou mais eficaz do que a nossa!
Foi fácil passar do ritmo de trabalho habitual dos desenhadores europeus para um tipo de produção muito mais exigente como é a japonesa?
Para mim isso nunca foi grande problema, pois sou muito rápido a desenhar. Apenas não queria que o trabalho para o Japão me ocupasse o tempo todo, impedindo-me de fazer outras coisas de características mais pessoais. Por isso, disse-lhes que apenas poderia desenhar 30 páginas por mês e eles não levantaram qualquer problema.
Mas trinta páginas por mês, equivale a uma página por dia, o que é muito, sobretudo se tivermos em conta que a maioria dos autores franceses demora perto de um ano a desenhar um álbum de 48 páginas…
Para mim não era nada de puxado… Eu era perfeitamente capaz de fazer 5 a 6 páginas por dia, sem sequer acelerar muito! Assim, a encomenda de 30 páginas por mês era perfeita, pois eu normalmente desenhava essas 30 páginas em 10 ou 15 dias, e ficava com o resto do mês livre para outros projectos.
Ofereceram-me 1.000 francos por página (cerca de 153 €) o que eu aceitei logo, até porque com uma encomenda de 30 páginas por mês eram mais de 4.500 € mensais garantidos, o que era bem mais do que aquilo que eu estava habituado a ganhar! Como tinha muitas dívidas acumuladas e precisava bastante de dinheiro, no primeiro mês fiz 60 páginas em vez das 30 combinadas. 60 páginas que desenhei em 15 dias, num traço bastante rápido e livre, que tinha medo que não agradasse ao editor japonês.
Pouco depois recebi um telefonema da representante da editora a dizer-me que tinham gostado muito do meu trabalho! Algo que nenhum editor francês tinha tido alguma vez a gentileza de me dizer… Ainda por cima eles acharam que eu estava a ser muito mal pago e que o meu trabalho valia mais, tendo decidido aumentar o meu pagamento para 1.500 francos por página (228,60 €). Eu estava verdadeiramente nas nuvens! Ainda por cima, eles achavam que, por uma questão de honestidade, esse aumento devia ser retroactivo e as 60 páginas que eu já tinha enviado iriam também ser pagas a 1.500 francos cada! E isto apenas pelos direitos de publicação na revista Morning, pois quando Le Voyage foi editado em álbum no Japão, recebi também os respectivos direitos de autor! Podia verdadeiramente ter enriquecido a trabalhar para o Japão.
A verdade é que se isso não aconteceu, foi por culpa minha! Por exemplo, o contrato para a história Le Voyage falava em 200 páginas e eu ao fim de 200 páginas lá acabei a história. Pouco depois recebo um fax da editora a perguntar porque é que eu tinha acabado com a história. Afinal, as 200 páginas referidas no contrato eram o mínimo! Eu podia perfeitamente continuar com a história e fazer 2.000 páginas que eles ficavam todos contentes! Eu tinha lido mal o contrato que vinha em inglês… Se calhar, se tenho continuado com Le Voyage ainda hoje estava a trabalhar para a Kodansha.
Durante quanto tempo é que trabalhou para a editora Kodansha ?
Durante cerca de 4 anos. Mas acabei por não desenhar uma grande quantidade de páginas, sobretudo quando comparado com aquilo que podia ter feito. Le Voyage tem 220 páginas, Salade Nicoise tem 360 páginas… embora nem todas as histórias tenham sido incluídas na edição francesa, pois retirei 2 episódios que considero mais fracos. Ao todo fiz cerca de 600 páginas em 4 anos, de 1993, 94 a 1998, mas podia ter feito bem mais! De qualquer modo, foi uma óptima experiência que me permitiu ser rico durante 4 anos e fazer coisas à borla para outras editoras como L’Association, sempre que me pediam.
Mas, para além da parte económica foi uma bela experiência. Uma experiência muito agradável que me permitiu aprender muita coisa e evoluir dentro do meu próprio trabalho. Mas foi suficiente para mim. Não me importo que tenha acabado, até porque, por mim, dificilmente teria coragem de tomar a iniciativa de virar as costas a um trabalho tão bem pago. Daí que não tenha ficado triste quando a editora Kodansha decidiu parar.
Eles terminaram os contratos com todos os autores franceses? Na sua opinião, o que é se passou que os levou a tomar essa decisão.
Praticamente todos…Acho que Alex Varene ainda continua a trabalhar para eles. Mas actualmente deve ser o único. Pode ter a ver com uma mudança editorial, mas essa mudança editorial traduz já um questionamento sobre o sucesso da política de contratar autores europeus. Mas a principal razão deve ter tido a ver com a crise económica japonesa, que é real. E nestes casos, os editores japoneses reagem da mesma maneira que os editores franceses, belgas, espanhóis, ou americanos. Quando as coisas correm mal, continua-se apenas com as séries de sucesso garantido, o que não era o caso dos autores europeus, que nunca foram grandes sucessos de vendas. A nossa contratação foi uma experiência para tentar perceber como funcionava a BD europeia e aprender com ela, em que a parte comercial nunca foi importante. Por isso, quando as vendas das revistas começaram a baixar, não puderam continuar com a experiência.
A minha ideia, partilhada por autores como François Schuiten e Miguelanxo Prado, é que os Japoneses contrataram os autores europeus mais para funcionarem como professores dos desenhadores japoneses, do que por razões comerciais. Era uma forma de renovar a linguagem da BD japonesa, muito marcada pelo trabalho de Osamu Tezuka e pela forma reverencial e perfeitamente assumida como os novos autores copiam o trabalho dos Mestres.
Também partilho dessa ideia! Mas, para ser ainda mais claro, os japoneses que trabalham com as imagens, não apenas os desenhadores, pensam que a América descobriu o Graal com as sit-coms e o cinema de Hollywood. E sabem que não podem bater a América nesse campo, mas estão em condições de lhe ganhar no desenho animado. O objectivo é ser o primeiro do mundo a nível dos desenhos animados, pois amanhã, aquele que tiver a força da imagem a nível mundial, terá a força económica. Isto foi-me dito por um japonês e é verdade!
Claro que os computadores e outras coisas são importantes, mas a potência da imagem é fundamental, é algo que vende. Eles querem ganhar essa batalha, mas têm consciência de que, para ganhar, é preciso ultrapassar aquilo que fazem actualmente. É preciso ler, devorar, compreender as outras formas de imagem para poder ir mais longe, sempre mais longe. Uma sociedade que avança sempre na horizontal acaba por se afundar, é preciso subir continuamente para ganhar. E para os japoneses a vitória é o único objectivo. Daí fazer trabalhar os autores europeus para que os desenhadores japoneses vejam aquilo que os europeus fazem e possam aprender e evoluir com eles. Mas o objectivo final não é a BD, os manga, mas sim a animação, algo que no Japão está intimamente ligado, pois a maioria das séries de manga de sucesso dá inevitavelmente origem a desenhos animados e a jogos de computador.
É preciso que o desenho animado japonês conquiste o mundo, e para atingirem esse objectivo, os japoneses estão abertos ao exterior e dispostos a aprender com os outros. Já os americanos pensam que podem ganhar sozinhos, enquanto que os japoneses estão dispostos a ver o que os outros fazem, para aproveitarem o que lhes parece o melhor dos outros. É muito simples. No fundo, estamos perante uma guerra mundial. Uma guerra cultural e económica, mas ainda assim uma guerra mundial!
Teve reacções dos autores japoneses ao seu trabalho?
Agora nem tanto. Mas, quando estava a trabalhar para o Japão era muito frequente receber cartas e livros de desenhadores japoneses que se gabavam de copiar o meu trabalho. Mas eu olhava para o trabalho deles e não conseguia perceber onde me tinham copiado. Para mim, pareciam-me mangas iguais aos outros. É curioso, porque é um tipo de mentalidade exactamente oposta à maioria dos autores franceses, que quando questionados, negam as suas influências, mesmo quando são perfeitamente óbvias. Chegam a afirmar que não conhecem um determinado autor quando é mais do que evidente que são influenciados por ele!
No Japão é completamente diferente. O indivíduo não existe, o que conta é o colectivo! O objectivo é ganhar em em conjunto, os japoneses não têm uma visão individualista do mundo. E é estranho, pois foram chamar para trabalhar com eles os artistas de estilo mais pessoal e individualizado, tal como acontece com o cinema. Eles adoram o cinema europeu, cineastas como Godard e Almodovar, artistas com obras extremamente pessoais que só falam deles próprios nos seus filmes. Da sua vida, dos seus problemas com a imagem, com as mulheres… E os japoneses adoram isso, apesar de ser o tipo de preocupações que não lhes devia interessar. O japonês nunca fala da sua mulher, ou dos seus problemas pessoais, é sempre o colectivo que está em jogo. No entanto, eles adoram cineastas como Pedro Almodovar… É algo complicado, que não é fácil de explicar, até porque autores como Taniguchi e grandes cineastas como Kurosawa ou Kitano, têm um tipo de reflexões que estão muito próximas do pensamento europeu. É um problema muito complexo… E quando eles se viram para a nossa cultura, não é apenas para copiar. Eles gostam verdadeiramente, fundamentalmente e com honestidade, da nossa maneira de pensar.
Quando eu estive no Japão apercebi-me um pouco dessa realidade e vi que não se podia reduzir tudo a uma mera questão comercial e de poder. Mesmo as editoras japonesas são estruturas imensas, autênticos hangares, mas que conservam um lado artesanal, apesar de estarmos no país dos computadores. Há muita coisa que é feita à mão, em folhas de papel, mais até do que na BD europeia e americana, em que o computador é cada vez mais utilizado. É algo estranho mas agradável, com uma estrutura muito organizada, mas em que existe uma grande camaradagem, como se se tratasse de um grande grupo de amigos. Há uma estranha mistura de uma estrutura asfixiante e inumana mas em que há lugar para uma imensa humanidade. Por exemplo, nos enormes escritórios da editora Kodansha vê-se imensa gente a trabalhar, mas o patrão não tem um escritório maior do que os empregados. Se há um funcionário ou outro, que por ter trabalhado demasiado, adormeceu sobre a secretária, ninguém o incomoda e os colegas deixam-no dormir as horas que ele quiser. Algo que para nós é incrível, pois na Europa, numa situação semelhante o patrão vinha logo ter com o funcionário repreendê-lo. No Japão não, deixam-no dormir sossegado, o que para nós é estranho… E o editor, que está no escritório a fazer o seu trabalho, pode passar dias em casa do desenhador, ajudando-o, dando-lhe apoio a todos os níveis, desde ir às compras até cozinhar para eles.
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domingo, 8 de março de 2015
75 Anos de Batman 4 - Batman: O regresso do Cavaleiro das Trevas I
No penúltimo editorial que escrevi para a colecção 75 Anos do Batman tive o azar de ver o meu nome trocado e, a verdade, é que, embora, tenha sido eu a escrever o editorial deste volume, o texto acabou por sair assinado pelo Luís Salvado, que escreveu, isso sim, o editorial do volume seguinte. Não foi a primeira vez que isto me aconteceu, pois na primeira colecção que fizemos com a Panini para o Correio da Manhã, Os Clássicos da Banda Desenhada, os textos que escrevi para o volume dedicado a Corto Maltese, saiu assinado em nome de João Miguel LAMERASI, em vez de João Miguel Lameiras. Feita a correcção, aqui fica o meu editorial para o 1º volume do Regresso do Cavaleiro das Trevas, a obra-prima de Frank Miller.
O ÚLTIMO COMBATE DE BATMAN
Se fizermos uma lista das mais importantes histórias do Batman ao longo dos 75 anos da vida do personagem, a história que vão poder ler em seguida, estará certamente no topo dessa lista.
Embora ainda sem o estatuto de superestrela que conquistaria nos anos seguintes, Frank Miller, em meados da década de 80, era já um autor influente graças ao seu trabalho na série Daredevil, que abandonou para a aproveitar a total liberdade concedida pela DC e criar Ronin, uma mini-série inovadora, misturando ficção científica e histórias de samurais que, por estar claramente à frente do seu tempo, não teve o acolhimento imediato que Miller esperava. O menor sucesso comercial de Ronin na altura em que foi lançado, não impediu a editora de continuar a apostar no evidente talento de Miller, não hesitando em entregar-lhe a sua jóia da coroa, ao dar-lhe a oportunidade de criar a sua versão do Batman, personagem que Miller já tinha desenhado uma vez em 1980, em Wanted Santa Claus - Dead ir Alive, uma história curta de Natal - escrita por Denny O'Neil que curiosamente seria um dos editores do Regresso do Cavaleiro das Trevas - que poderão ler no último volume desta colecção.
Originalmente publicada numa mini-série de quatro episódios, em 1986 (o mesmo ano em que foram publicados Watchmen de Alan Moore e Dave Gibbons e Maus de Art Spiegelmann, dois outros títulos fundamentais da história da BD) o extraordinário sucesso desta obra trouxe a Banda Desenhada para as primeiras páginas dos jornais e revistas (com Frank Miller a aparecer como capa da revista Roling Stone) ao mesmo tempo que ajudou a introduzir o formato graphic novel (edições mais luxuosas, impressas em excelente papel e com uma capa mais grossa do que o habitual nos comics) no mercado americano, e ainda abriu caminho para os filmes de Batman realizados por Tim Burton.
O Regresso do Cavaleiro das Trevas é uma história crepuscular que apresenta um Batman envelhecido, que interrompe a sua reforma, para lutar pela sobrevivência num futuro distópico, depois de ter sido obrigado a sair do seu torpor pelo aparecimento dos Mutantes, um novo gang urbano particularmente violento. Último super-herói num mundo violento, onde já não há lugar para super-heróis, o regresso ao activo do Cavaleiro das Trevas vai agitar profundamente a sociedade, incentivando o regresso dos seus principais adversários, que Miller apresenta como reflexos distorcidos do próprio Batman. O pulsar desta sociedade futura cujo status quo o regresso de Batman vem perturbar, é-nos dado de forma magistral através dos omnipresentes ecrãs de televisão, que pontuam a acção e nos transmitem informação, funcionando como o coro das tragédias gregas, ao mesmo tempo que traduzem a óbvia crítica de Frank Miller à cada vez maior mediatização da sociedade do seu tempo e à visão redutora e simplificada que a TV transmite da realidade. Uma análise que, quase três décadas passadas sobre a publicação original da história, não só não perdeu actualidade, como assume cada vez maior pertinência.
Apesar de ter resistido muito bem ao tempo, como verdadeiro clássico que é, O Regresso do Cavaleiro das Trevas é uma história que, tal como o Watchmen de Alan Moore e Dave Gibbons, reflecte claramente o zeitgeist, o espírito da época em que foi criada, mesmo que a acção decorra num futuro próximo. Como o próprio Miller refere: "foi em 1985 que eu comecei a trabalhar nisto [O Regresso Do Cavaleiro das Trevas] e pensei, "que tipo de mundo será suficientemente assustador para o Batman?" Então olhei pela janela". E a verdade é que a Gotham City de Batman está bastante próxima da Nova Iorque dos anos 80, que Miller tinha recentemente trocado pela Califórnia, depois de ser assaltado pela terceira vez, e o clima político vigente é o da Guerra Fria que a política da administração Reagan veio reacender.
Contando com a arte-final de Klaus Janson, seu colaborador desde os tempos da revista Daredevil e com as cores de Lynn Varley, Miller consegue dar uma dimensão épica ao seu desenho, perfeitamente adequado a um herói poderoso e larger than life como é o Batman. Mas, apesar do resultado ser espectacular em termos visuais, o desenho não é ainda assim o ponto mais forte de Frank Miller que, apesar de ser um grande desenhador, é um óptimo escritor e sobretudo um extraordinário narrador.
Um bom exemplo, bem demonstrativo do talento narrativo de Frank Miller e do seu completo domínio dos mecanismos da linguagem da BD, é toda a sequência inicial, em que Bruce Wayne recorda o assassinato dos seus pais enquanto faz zapping na TV, ou a conversa entre Superman e o Presidente americano na página 28, do capítulo 2, que, pela sua extraordinária simplicidade e eficácia, merece uma análise mais detalhada:
Na primeira imagem da dita página, vemos a Casa Branca através dos portões vigiados por um guarda armado, enquanto que os balões de diálogo nos informam que, no seu interior, o Presidente conversa com alguém. Uma conversa que prossegue sempre fora de campo e a que assistimos sem nunca ver os interlocutores, pois a imagem é ocupada por uma bandeira americana tremulando ao vento, que através de um efeito de zoom, vai ficando cada vez mais próxima até que os seus contornos se fundem gradualmente no símbolo do Super-Homem. A força destes dois ícones imediatamente reconhecíveis (a bandeira americana e o S do Super-Homem) permitem-nos identificar facilmente a pessoa com quem o Presidente estava a falar, mesmo sem a ver, ao mesmo tempo que nos transmite de uma forma extremamente eficaz a relação entre o Super-Homem e o governo americano, com o Homem de Aço a ser retratado como um homem de mão da Casa Branca, aspecto que Miller desenvolve no segundo volume desta obra notável.
E o confronto entre o Homem de Aço e o Cavaleiro das Trevas, que, a julgar pelo primeiro teaser, serviu de principal fonte de inspiração ao tão aguardado filme Batman V Superman: Dawn of Justice, de Zack Snyder, tal como o inevitável regresso para um combate final, de um velho e carismático inimigo, vão estar em foco no volume final desta história incontornável, cujo desfecho poderão ler já na próxima semana.
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quinta-feira, 5 de março de 2015
Colecção Novela Gráfica 2 - A Louca do Sacré-Coeur, de Moebius e Jodorowsky
MOEBIUS E JODOROWSKY CHEGAM À COLECÇÃO NOVELA GRÁFICA
COM A LOUCA DO SACRÉ-COEUR
Novela Gráfica- Vol 2
A Louca do Sacré-Coeur
Argumento - Jodorowsky
Desenhos – Moebius
Conhecido em Portugal essencialmente pelo seu trabalho na série de Banda Desenhada, O Incal, ilustrada por Moebius, e em todo o universo que dela emanou (como A Casta dos Metabarões), Alejandro Jodorowsky é muito mais do que um mero argumentista de BD de ficção científica. Considerado como um guru por personalidades do mundo da música tão diferentes como John Lennon e Yoko Ono, que ajudaram a financiar os seus filmes El Topo e La Montaña Sagrada e Marilyn Manson, que cita abertamente La Montaña Sagrada no vídeo de The Dope Show, Jodorowsky revela-se uma personagem tão ou mais fascinante do que a sua própria obra, a qual reflecte as suas vivências e crenças místicas.
Verdadeiro homem do Renascimento, este filho de judeus emigrantes russos, nascido no Chile em 1929, foi actor, mimo (discípulo de Marcel Marceau), tarólogo de renome, responsável, com Philipe Camoin pela restauração do Tarot de Marselha, criador de uma nova técnica terapêutica chamada Psicomagia, poeta, escritor, dramaturgo, encenador, fundador do grupo surrealista Panique (com Fernando Arrabal e Roland Topor), realizador de cinema e principalmente, argumentista de BD.
Curiosamente foi no cinema que se deu a primeira colaboração entre Jodorowsky e Moebius, num projecto de adaptação cinematográfica do romance Dune, de Frank Herbert que acabou por não chegar a bom porto, mas que deu origem a uma frutuosa colaboração no campo da BD, de que nasceu a série O Incal, para além de outras pérolas como Os Olhos do Gato e esta A Louca do Sacré-Coeur.
Nascido em 1938 e falecido em 2012, Jean (Moebius) Giraud, foi um dos mais importantes nomes da BD europeia. Possivelmente, um dos melhores desenhadores realistas que a Banda Desenhada conheceu, com o nome Gir, com que assinava as aventuras do Tenente Blueberry, Giraud, com o pseudónimo Moebius, foi também um dos mais influentes autores de BD de sempre, co-fundador da revista Metal Hurlant e responsável pela criação de alguns dos mais fantásticos universos da BD, para além de ter emprestado o seu fabuloso traço à BD, em histórias surreais e ao cinema e à publicidade, em magníficas ilustrações marcadas pela originalidade do seu universo e pelo arrojo gráfico do seu traço.
Publicado originalmente em França em três tomos (La folle du Sacré-Coeur, de 1992, Le Piège de l'irrationnel, de 1993, e Le Fou de la Sorbonne, de 1998), A Louca… foi uma das raras histórias que Jodorowsky escreveu sem ter em mente um desenhador predefinido, mas que encontrou em Moebius o ilustrador ideal, capaz de equilibrar a dimensão realista inicial, com os elementos místicos e fantásticos que vão tendo uma importância cada vez maior à medida que a história avança.
Obra de ficção delirante, mas onde são perceptíveis contornos autobiográficos, que o próprio Moebius acentua ao dar a Mangel parecenças físicas com Jodorowsky, A Louca do Sacré-Coeur é uma obra tão divertida como perturbadora, marcada pelo contraste. Contraste entre a espiritualidade e a sexualidade, entre a racionalidade e o misticismo, entre o sublime e o escatológico, entre o realismo de Giraud e a fantasia de Moebius.
Não sendo o trabalho mais famoso da dupla, distinção que cabe ao Incal, A Louca do Sacré-Coeur foi o canto do cisne da colaboração entre Moebius e Jodorowsky e um momento único de perfeito alinhamento entre os dois universos gráficos que marcaram a obra de Giraud. Claramente o trabalho mais pessoal da dupla Moebius/Jodorowsky, A Louca do Sacré-Coeur é, também por isso, o mais fascinante.
Texto publicado no jornal Público de 27/02/2015
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quarta-feira, 4 de março de 2015
Novela Gráfica: quando a Arte Sequencial se transforma em Literatura Desenhada
NOVELA GRÁFICA: QUANDO A ARTE SEQUENCIAL
SE TRANSFORMA EM LITERATURA DESENHADA
A principal especificidade da linguagem da Banda Desenhada, reside na forma como o texto e a imagem se articulam, para formar algo que é mais do que a mera soma das partes. Algo único e inovador. E a consciência do carácter inovador dessa linguagem, está presente desde os primeiros tempos da história da BD.
O desenhador suiço Topffer, um pioneiro da BD e uma das primeiras pessoas a reflectir criticamente sobre a especificidade da sua linguagem, escreveu logo em 1833, na introdução a L’Histoire de Mr. Jabot, considerado como o primeiro álbum da história da Banda Desenhada, aquela que, na opinião do crítico e argumentista francês Benoit Peeters, é a melhor definição de BD. Sobre L’Histoire de Mr. Jabot, Topffer escreve que “este pequeno livro é de uma natureza mista. É composto por uma série de desenhos autografados a traço. Cada um desses desenhos é acompanhado de uma ou duas linhas de texto. Os desenhos, sem o texto, teriam um significado obscuro; o texto, sem os desenhos, não significaria nada. O conjunto dos dois forma uma espécie de romance, tanto mais original porque não se assemelha mais a um romance do que a qualquer outra coisa”.
Foi precisamente jogando com as quase ilimitadas possibilidades de articulação desses dois elementos, que a linguagem da Banda Desenhada se foi desenvolvendo, mas condicionada por modelos de publicação rígidos. Formatados durante décadas em modelos clássicos, como as tiras diárias, ou as pranchas semanais nos jornais, as revistas de 22 páginas, e os álbuns clássicos franco-belgas, de 44 páginas em capa dura, faltava aos autores de Banda Desenhada espaço para ensaiar outros voos. Voos que a necessidade de ter como protagonista um herói, que já existia antes da história começar e que vai continuar a existir no fim de cada história, também limitavam drasticamente.
Apesar disso, os formatos clássicos não impediram a criação de obras-primas. Um bom exemplo é Will Eisner, com a série The Spirit. Autor que muito naturalmente abriu esta colecção, Eisner sempre assumiu a sua admiração por escritores como Ambrose Bierce, Tcheckov, O. Henry e Maupassant. The Spirit mais do que uma serie policial, era o meio ideal, devido à liberdade e autonomia de que dispunha, para o seu autor concretizar um dos seus principais objectivos, que era o de fazer short stories na grande tradição clássica. Para isso escolheu a linguagem da BD (ou arte sequencial, como preferia chamar-lhe), cujos códigos aju¬dou a formar e na qual sintetizou elementos de outros meios, que se revelavam adequados ao seu objectivo primordial de contar histórias, de forma fluida e atraente.
Mas, quando, depois de décadas dedicadas ao ensino e à ilustração publicitária, Eisner decide voltar à BD em finais da década de 70, vai necessitar de um formato que lhe permitisse contar já não short stories, mas verdadeiros romances em imagens, com outro fôlego e maior ambição. Esse formato era a Novela Gráfica. Mesmo que o termo Graphic Novel começasse já a ser conhecido, a verdade é que o caracter inovador da obra de Eisner provocou problemas aos livreiros, que não sabiam em que secção arrumar Um Contrato com Deus, se junto da BD, se nas prateleiras da literatura, chegando o livro a aparecer na secção de assuntos religiosos…
Situação semelhante viveu Art Spiegelman com o seu Maus, outro título incontornável do cânone da Novela Gráfica, que muitos livreiros e o próprio júri do Prémio Pulitzer tiveram dificuldades em encaixar numa secção, ou categoria existente, o que no caso de Spiegelman até se revelou uma vantagem, pois como o próprio refere em entrevistas, muitos livreiros que não sabiam onde arrumar Maus, acabaram por o deixar durante anos na mesa das novidades, contribuindo assim para o seu sucesso.
Actualmente, este problema já não se põe, as principais livrarias americanas têm uma secção específica dedicada às graphic novels e, mesmo em Portugal, o termo Novela Gráfica já entrou na linguagem corrente e é rapidamente associado a uma Banda Desenhada de qualidade, que aproveita o facto de não estar limitada a um número de páginas fixo, para contar histórias revelantes, com grande qualidade estética e literária, que exploram de diferentes maneiras a articulação entre o texto e o desenho.
Nesta colecção, que, ao longo dos doze volumes que a compõem, procura dar uma ideia global da variedade de temas e de abordagens que o género permite, temos os mais variados tipos de articulação entre texto e imagem, com alguns autores a apoiarem-se mais no texto para contar a história, enquanto outros consideram que uma imagem vale mais do que mil palavras.
Vimos já, em Um Contrato com Deus, como Eisner mistura texto e imagem, com o texto a fundir-se literalmente com o desenho em algumas páginas. Já Baudoin, em A Viagem, apoia-se muito mais na imagem para contar uma história, criada originalmente para o público japonês, habituado a um tipo de narrativa eminentemente visual, enquanto Tardi, em Foi Assim a Guerra das Trincheiras recorre abundantemente à narração em off e aos cartuchos de texto, que estão praticamente ausentes em A Viagem. Em A Louca do Sacré-Coeur, cabe a Moebius pegar no texto em bruto de Jodorowsky e transformá-lo numa história em BD, com o talento que se lhe reconhece, um pouco como acontece com Kim em relação a António Altarriba em A Arte de Voar, embora aqui o menor impacto visual do traço de Kim seja compensado pela força da narrativa de Altarriba.
Mas não apenas o texto e o desenho servem para contar uma história. Em Beterraba, Miguel Rocha mostra que a própria cor pode ser um importante elemento narrativo, em páginas de cores belíssimas que capturam no papel toda a luz e a cor do Alentejo, tal como o preto e branco rasgado (literalmente) a navalha de Alberto Breccia em Mort Cinder, traduz as trevas bem reais que rodeavam os autores numa Argentina dominada pelos mesmos militares que iriam assassinar Oesterheld anos depois.
Robert Crumb, por exemplo, experimenta as mais variadas combinações nas histórias curtas de Mr. Natural. Desde histórias em que as palavras são praticamente desnecessárias, até As Origens de Mr. Natural em que o texto enche completamente as páginas. Com uma composição de página bastante dinâmica, Cosey gere bem os momentos de silêncio, especialmente nas cenas em que uma natureza imponente impõe a sua presença.
E se a composição de página de Cosey é dinâmica, que dizer do trabalho de Toppi em Sharaz-De, com fantásticas composições a substituírem a tradicional divisão em tiras e quadrados, resultando em páginas absolutamente deslumbrantes? Por ultimo, temos o trabalho de Taniguchi e de Danilo Beyruth, dois autores que se apoiam mais na imagem do que no texto, mas que em termos narrativos, vão beber muito ao cinema, com Taniguchi a afirmar-se como um discípulo de Ozu e Beyruth a utilizar os enquadramentos largos para a paisagem e os planos muito apertados para os rostos, na melhor tradição de Sergio Leone.
Tal como na música, um número limitado de notas, permite criar obras-primas completamente diferentes e únicas, também os autores presentes nesta colecção única, que assinala de forma perfeita os 25 anos do jornal Público, combinam os diferentes elementos da gramática da BD para criar verdadeiras sinfonias gráficas inimitáveis.
Texto publicado no Jornal Público de 04/03/2015
SE TRANSFORMA EM LITERATURA DESENHADA
A principal especificidade da linguagem da Banda Desenhada, reside na forma como o texto e a imagem se articulam, para formar algo que é mais do que a mera soma das partes. Algo único e inovador. E a consciência do carácter inovador dessa linguagem, está presente desde os primeiros tempos da história da BD.
O desenhador suiço Topffer, um pioneiro da BD e uma das primeiras pessoas a reflectir criticamente sobre a especificidade da sua linguagem, escreveu logo em 1833, na introdução a L’Histoire de Mr. Jabot, considerado como o primeiro álbum da história da Banda Desenhada, aquela que, na opinião do crítico e argumentista francês Benoit Peeters, é a melhor definição de BD. Sobre L’Histoire de Mr. Jabot, Topffer escreve que “este pequeno livro é de uma natureza mista. É composto por uma série de desenhos autografados a traço. Cada um desses desenhos é acompanhado de uma ou duas linhas de texto. Os desenhos, sem o texto, teriam um significado obscuro; o texto, sem os desenhos, não significaria nada. O conjunto dos dois forma uma espécie de romance, tanto mais original porque não se assemelha mais a um romance do que a qualquer outra coisa”.
Foi precisamente jogando com as quase ilimitadas possibilidades de articulação desses dois elementos, que a linguagem da Banda Desenhada se foi desenvolvendo, mas condicionada por modelos de publicação rígidos. Formatados durante décadas em modelos clássicos, como as tiras diárias, ou as pranchas semanais nos jornais, as revistas de 22 páginas, e os álbuns clássicos franco-belgas, de 44 páginas em capa dura, faltava aos autores de Banda Desenhada espaço para ensaiar outros voos. Voos que a necessidade de ter como protagonista um herói, que já existia antes da história começar e que vai continuar a existir no fim de cada história, também limitavam drasticamente.
Apesar disso, os formatos clássicos não impediram a criação de obras-primas. Um bom exemplo é Will Eisner, com a série The Spirit. Autor que muito naturalmente abriu esta colecção, Eisner sempre assumiu a sua admiração por escritores como Ambrose Bierce, Tcheckov, O. Henry e Maupassant. The Spirit mais do que uma serie policial, era o meio ideal, devido à liberdade e autonomia de que dispunha, para o seu autor concretizar um dos seus principais objectivos, que era o de fazer short stories na grande tradição clássica. Para isso escolheu a linguagem da BD (ou arte sequencial, como preferia chamar-lhe), cujos códigos aju¬dou a formar e na qual sintetizou elementos de outros meios, que se revelavam adequados ao seu objectivo primordial de contar histórias, de forma fluida e atraente.
Mas, quando, depois de décadas dedicadas ao ensino e à ilustração publicitária, Eisner decide voltar à BD em finais da década de 70, vai necessitar de um formato que lhe permitisse contar já não short stories, mas verdadeiros romances em imagens, com outro fôlego e maior ambição. Esse formato era a Novela Gráfica. Mesmo que o termo Graphic Novel começasse já a ser conhecido, a verdade é que o caracter inovador da obra de Eisner provocou problemas aos livreiros, que não sabiam em que secção arrumar Um Contrato com Deus, se junto da BD, se nas prateleiras da literatura, chegando o livro a aparecer na secção de assuntos religiosos…
Situação semelhante viveu Art Spiegelman com o seu Maus, outro título incontornável do cânone da Novela Gráfica, que muitos livreiros e o próprio júri do Prémio Pulitzer tiveram dificuldades em encaixar numa secção, ou categoria existente, o que no caso de Spiegelman até se revelou uma vantagem, pois como o próprio refere em entrevistas, muitos livreiros que não sabiam onde arrumar Maus, acabaram por o deixar durante anos na mesa das novidades, contribuindo assim para o seu sucesso.
Actualmente, este problema já não se põe, as principais livrarias americanas têm uma secção específica dedicada às graphic novels e, mesmo em Portugal, o termo Novela Gráfica já entrou na linguagem corrente e é rapidamente associado a uma Banda Desenhada de qualidade, que aproveita o facto de não estar limitada a um número de páginas fixo, para contar histórias revelantes, com grande qualidade estética e literária, que exploram de diferentes maneiras a articulação entre o texto e o desenho.
Nesta colecção, que, ao longo dos doze volumes que a compõem, procura dar uma ideia global da variedade de temas e de abordagens que o género permite, temos os mais variados tipos de articulação entre texto e imagem, com alguns autores a apoiarem-se mais no texto para contar a história, enquanto outros consideram que uma imagem vale mais do que mil palavras.
Vimos já, em Um Contrato com Deus, como Eisner mistura texto e imagem, com o texto a fundir-se literalmente com o desenho em algumas páginas. Já Baudoin, em A Viagem, apoia-se muito mais na imagem para contar uma história, criada originalmente para o público japonês, habituado a um tipo de narrativa eminentemente visual, enquanto Tardi, em Foi Assim a Guerra das Trincheiras recorre abundantemente à narração em off e aos cartuchos de texto, que estão praticamente ausentes em A Viagem. Em A Louca do Sacré-Coeur, cabe a Moebius pegar no texto em bruto de Jodorowsky e transformá-lo numa história em BD, com o talento que se lhe reconhece, um pouco como acontece com Kim em relação a António Altarriba em A Arte de Voar, embora aqui o menor impacto visual do traço de Kim seja compensado pela força da narrativa de Altarriba.
Mas não apenas o texto e o desenho servem para contar uma história. Em Beterraba, Miguel Rocha mostra que a própria cor pode ser um importante elemento narrativo, em páginas de cores belíssimas que capturam no papel toda a luz e a cor do Alentejo, tal como o preto e branco rasgado (literalmente) a navalha de Alberto Breccia em Mort Cinder, traduz as trevas bem reais que rodeavam os autores numa Argentina dominada pelos mesmos militares que iriam assassinar Oesterheld anos depois.
Robert Crumb, por exemplo, experimenta as mais variadas combinações nas histórias curtas de Mr. Natural. Desde histórias em que as palavras são praticamente desnecessárias, até As Origens de Mr. Natural em que o texto enche completamente as páginas. Com uma composição de página bastante dinâmica, Cosey gere bem os momentos de silêncio, especialmente nas cenas em que uma natureza imponente impõe a sua presença.
E se a composição de página de Cosey é dinâmica, que dizer do trabalho de Toppi em Sharaz-De, com fantásticas composições a substituírem a tradicional divisão em tiras e quadrados, resultando em páginas absolutamente deslumbrantes? Por ultimo, temos o trabalho de Taniguchi e de Danilo Beyruth, dois autores que se apoiam mais na imagem do que no texto, mas que em termos narrativos, vão beber muito ao cinema, com Taniguchi a afirmar-se como um discípulo de Ozu e Beyruth a utilizar os enquadramentos largos para a paisagem e os planos muito apertados para os rostos, na melhor tradição de Sergio Leone.
Tal como na música, um número limitado de notas, permite criar obras-primas completamente diferentes e únicas, também os autores presentes nesta colecção única, que assinala de forma perfeita os 25 anos do jornal Público, combinam os diferentes elementos da gramática da BD para criar verdadeiras sinfonias gráficas inimitáveis.
Texto publicado no Jornal Público de 04/03/2015
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