terça-feira, 29 de outubro de 2013

DC Comics UNCUT 16 - Batwoman: Elegia

Batwoman: Ano um, ano cinquenta

A Batwoman é um dos super-heróis que fazem parte da família Batman, entre os quais podemos encontrar os vários Robins, a Batmoça, ou heróis como Asa Nocturna ou Azrael. Criada há décadas, Batwoman foi originalmente pensada como um potencial interesse romântico do Cavaleiro das Trevas, embora se tenha alçado rapidamente ao estatuto de verdadeira rival. Foi também uma das personagens que sofreu mais transformações ao longo dos tempos. De potencial namorada acabou por se transformar em rival, desapareceu durante parte dos anos 1960, para reaparecer e ser assassinada em finais dos anos 1970, e renascer finalmente já no século 21 como uma das mais invulgares personagens do Universo DC, uma super-heroína gay.

A década de 1950 foi crucial na evolução dos comics americanos. Quando em 1954 o psiquiatra Fredric Wertham publicou o seu livro Seduction of Innocents, em que responsabilizava os comics pelo aumento da violência e delinquência juvenil, estava-se longe de imaginar as transformações a que a indústria seria submetida. Wertham chegou a testemunhar numa comissão especial de inquérito do Senado Americano, após o que a indústria dos comics promulgou um código de conduta voluntário, o célebre Comics Code Authority, que serviu como um manual de regras de auto-censura. Nas suas críticas, Wertham destacou sobretudo os temas sexuais que estariam escondidos nos comics, atacando a nudez feminina, bem como os comportamentos dos heróis, tendo nomeadamente insinuado a existência duma relação homosexual entre Batman e Robin. Por tudo isso, não é de espantar que quando o grupo de editores à frente dos destinos das histórias do Homem-Morcego quis expandir a “família” de personagens do universo de Batman, a Batwoman tenha surgido como um interesse romântico para combater essas alegações de Wertham.

Batwoman surgiu pela primeira vez nas páginas da revista Detective Comics #233, em 1956, numa história escrita por Edmond Hamilton e desenhada por Sheldon Moldoff. Edmond Hamilton era um escritor famoso de ficção-científica e de pulps, com um estilo sensacionalista que era quase a antítese do estilo “moralmente aceitável” que Wertham ambicionava para os comics. E o sensacionalismo saltava quase fora da extraordinária capa desenhada por Sheldon Moldoff, que apresentava uma Batwoman de moto a afastar-se a grande velocidade do Batmóvel, em direcção ao leitor, com o Duo Dinâmico a exclamar que ela os ia ultrapassar na missão, anunciada nos céus pelo Batsinal! O fato amarelo e negro da heroína contrastava com o fato do Batman, que era na altura cinzento, e anunciava uma personagem bem cheia de "panache". Em apenas doze páginas, a Batwoman salva o Batman duas ou três vezes e demonstra ser o reflexo feminino do Homem-Morcego, numa espécie de imagem de espelho quase humorística. Em vez dos gadgets científicos e “militarizados” do Batman, os gadgets dela estão incorporados na panóplia feminina duma rapariga elegante da alta sociedade: as suas pulseiras servem de algemas e a caixa de pó de arroz consegue disparar uma nuvem de fumo que provoca espirros, enquanto o seu frasco de perfume pulveriza gás lacrimogéneo e a sua mala de senhora pode ser usada como as “bolas” das pampas argentinas para fazer tombar e capturar os seus adversários. No fim desta primeira aventura, Batman descobre a identidade da super-heroína e arranca-lhe a promessa de que ela não voltará a combater o crime. A Batwoman é Katherine Kane, uma talentosa artista de circo - trapezista e acrobata como o Robin, mas também a “melhor condutora de motos acrobática”, motos essas que passarão a ser uma das suas imagens de marca - que herdou uma fortuna. Decidiu então embarcar numa cruzada contra o crime, tal como o seu ídolo Batman, que ela espera assim conhecer, e talvez seduzir.

Claro que a Batwoman não cumprirá a sua palavra, e continuará a aparecer em inúmeras aventuras do Cavaleiro das Trevas, tornando-se numa personagem muito popular do universo do Batman. No entanto, quando o lendário editor Julius Schwartz começou a planear a sua reformulação do universo DC, empurrando-o para moldes mais realistas, decidiu remover personagens que achava não-essenciais. A família de personagens “Batman” tinha crescido até incorporar algumas personagens bastante ridículas, numa altura em que as aventuras do Homem-Morcego se tinham tornado cada vez mais satíricas e cómicas - um ser extradimensional diminuto, o Bat-Mite, ou Ace, o Batcão, por exemplo. Schwartz decidiu então reformular uma segunda personagem feminina, a Batmoça, originalmente a sobrinha de Katherine Kane e potencial interesse amoroso de Robin, transformando a sua identidade, que passou a ser a de Barbara Gordon, filha do Comissário Gordon. Entre a nova Batmoça e a antiga Batwoman, a escolha foi óbvia, e Katherine Kane desapareceu de cena. Embora tenha reaparecido algumas vezes no final dos anos 70, acabaria por ser morta no número 485 de Detective Comics, pela Liga de Assassinos de Ra’s al Ghul. A personagem permaneceria fora de cena até ao século 21, mas em meados dos anos 2000 a DC reformulou o seu universo de super-heróis com a série Infinite Crisis, uma história que é descendente directa da Crise nas Terras Infinitas que já pudemos ler nesta colecção. Depois dessa Crise, todo o universo avançou um ano com o evento 52, durante o qual foi decidido relançar a Batwoman, tendo os editores da DC decidido fazer história e reformular completamente o conceito da personagem. A Batwoman renasceu nessa série como uma das poucas personagens homossexuais no universo dos super-heróis.

O trabalho de escrever a primeira história a solo desta nova heroína - Elegia, o volume que têm entre mãos - recaiu sobre o argumentista Greg Rucka, conhecido no meio pelas suas personagens femininas fortes e independentes. Rucka é um escritor de romances policiais aclamados, que irrompeu na cena dos comics no final dos anos 1990 com uma mini-série intitulada Whiteout (entretanto adaptada ao cinema, com Kate Beckinsale no papel principal), a que se seguiu a sua série mais longa até à data, Queen & Country. Em ambos os casos, tratam-se de histórias policiais ou de espionagem, em que as personagens principais são femininas e granjearam enorme popularidade junto dos leitores. Rucka começou entretanto a trabalhar para a DC, nos anos 2000, e já escreveu argumentos para inúmeras personagens, entre as quais destacamos as histórias que assinou para a Mulher Maravilha, e a série Gotham Central, que escreveu a meias com Ed Brubaker. O relançamento de Batwoman permitiu-lhe aliás recuperar personagens desse comic. Gotham Central acompanhava as aventuras e casos duma série de polícias e detectives de Gotham, focando a acção numa esquadra da polícia e não no Batman, e uma das personagens principais da série, a detective Renée Montoya, reaparece em na série da nova Batwoman como namorada da super-heroína. Tal como a primeira Batwoman, esta também é uma rica herdeira chamada Kate Kane. Ao contrário da primeira Batwoman, Kate é de origem judaica, a sua aparência é a duma jovem gótica e algo anarquista, é lésbica, e o seu pai é um ex-militar e operacional de forças especiais, que treinou a filha para combater o crime.

Mas para além do argumento da série Elegia, é justo reconhecer que uma parte importante da fama que este livro atingiu vem da arte estonteante de J. H. Williams, que assina aqui uma das suas obras-primas. Williams é um veterano dos comics que assinou várias séries para a DC em finais dos anos 1990, mas que atingiu pela primeira vez o sucesso crítico com o seu trabalho em Promethea, escrito por Alan Moore, com o qual conquistou o seu primeiro Prémio Eisner, os Óscares dos comics. Williams cria em Batwoman um registo duplo, em dois estilos completamente diferentes. Por um lado, o traço mais clássico e algo reservado que acompanha a vida de Kate Kane, a identidade secreta da super-heroína, por outro lado as páginas duplas absolutamente brilhantes e dinâmicas em que o protagonismo recai sobre a Batwoman. Williams conquistou mais dois Eisners em 2010 com este seu trabalho, como melhor artista e para a melhor capa. A história foi publicada na revista Detective Comics, num período em que Bruce Wayne estava aparentemente morto, parte do imenso arco de história revolucionário que o escritor Grant Morrison elaborou para o Cavaleiro das Trevas, como já referimos em Batman para Sempre!, o texto que acompanha o segundo volume desta colecção, e o sucesso foi tal que Batwoman acabou por incorporar o relançamento geral dos heróis da DC no evento New 52 com o seu próprio título, tendo J. H. Williams assumido a série também como argumentista, um passo decisivo na carreira deste criador.

Assim, numa espécie de retorno irónico da história, uma personagem que foi criada para combater os rumores de homossexualidade de Batman, renasceu ela própria cinquenta anos mais tarde como uma super-heroína gay, quase que como vingança do universo dos comics sobre o seu detractor. Mas não devemos levar demasiado a mal o Dr. Fredric Wertham, já que as suas acusações e o debate que causaram fizeram parte dos factores que inauguraram uma das maiores épocas de sempre da banda desenhada americana, a Silver Age of Comics. Essa era possibilitou o desenvolvimento da moderna era do comic de super-heróis, dos quais este espantoso Elegia é sem dúvida um dos bons exemplos.

José Hartvig de Freitas

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

A propósito do novo Astérix - Entrevista com Jean-Yves Ferri


A convite do jornal Público, tive a oportunidade de entrevistar Ferri, o novo argumentista de Astérix, aquando da sua vinda a Lisboa, em finais de Setembro, quando ele passou fugazmente pela capital portuguesa, para promover uma colecção de álbuns do Astérix que o jornal começou a lançar esta semana. Aqui fica a entrevista na sua versão integral. As imagens foram pilhadas de forma mais ou menos indiscriminada pelos quatro cantos da Internet. 

Desenhador e argumentista, nascido em 1959, tal como Astérix, o francês Jean-Yves Ferri é o responsável pelo argumento da nova aventura do irredutível gaulês e dos seus companheiros que, pela primeira vez, não conta com nenhum dos seus criadores como autor. Astérix entre os Pictos o 35º álbum da série é publicado a nível mundial no dia 24 de Outubro e sairá em Dezembro, numa versão em capa mole, com o Jornal Público, integrado na colecção As Viagens de Astérix. Ferri, que passou por Lisboa em Setembro, para a apresentação da colecção, falou ao Público deste importante desafio e da sua experiência como sucessor de Goscinny no argumento de umas das mais populares séries da BD mundial.

Nasceu em 1959, precisamente o mesmo ano em que a série Astérix começou a ser publicada na revista Pilote. Vê o facto de ser escolhido como o novo argumentista de Astérix como uma simples coincidência, ou um sinal do destino?

O mais engraçado é que também o desenhador, Didier Conrad, nasceu em 1959. Por isso, talvez o próprio Uderzo tenha visto nisso um sinal de que seríamos as pessoas certas para continuar Astérix.
Como é que foi escolhido para ser o novo argumentista de Astérix?
Fui contactado pela editora Hachette (que detém os direitos da série desde 2011), tal como vários outros argumentistas, para apresentar uma proposta para uma história. O processo foi rodeado de grande secretismo, tendo sido obrigado a assinar uma cláusula de confidencialidade, que não me permitia contar a ninguém, nem à minha família, o que estava a fazer. As diversas propostas foram apresentadas, sem indicação dos autores, a Uderzo, que escolheu uma, que por acaso era a minha.

Considera-se um fã de Astérix?

Claro! Tanto eu como o Conrad fazemos parte de uma geração que cresceu a ler BD nas revistas semanais como o Tintin, Spirou e Pilote. Por isso, conhecíamos perfeitamente todos esses heróis e temos uma ligação afectiva com o Astérix, o que faz com que abordemos a série de um modo algo particular. O nosso objectivo, com este álbum, é recuperar aquelas impressões de infância, que sentimos ao ler as histórias pela primeira vez.
Por isso, procurei que este álbum estivesse na linha de alguns dos meus álbuns preferidos da década de 70, como o Astérix Legionário, O Escudo de Arverne, Astérix na Hispania, ou Astérix na Córsega. Que fosse uma homenagem a esses álbuns que tanto me marcaram. Posteriormente, espero conseguir impor o meu cunho próprio à série, mas este ainda é um álbum de transição. Uma transição suave, marcada pela minha admiração pela escrita de Goscinny.

O tema do novo álbum, os Pictos e a Escócia. Foi ideia sua, ou sugestão de Uderzo?

Foi ideia minha. Tive inteira liberdade na criação da história. Entreguei uma primeira sinopse de uma página e quando foi aprovada, comecei a escrever o argumento. Como também sou desenhador, fiz também um story board com a planificação da história, quadrado a quadrado, para o desenhador seguir.

E a editora impôs algumas alterações? 

Praticamente nenhumas. Apenas Uderzo sugeriu duas pequenas alterações. Uma tinha a ver com a estação do ano em que se desenrola a acção e a outra consistiu em algumas pequenas observações a propósito da psicologia do Obélix. Uderzo esteve muito mais atento ao trabalho do desenhador.

Por falar em desenhador. Sei que Conrad não foi o desenhador inicialmente escolhido. Houve um primeiro desenhador Frédérick Mébarky, que acabou por abandonar o projecto. O que é que realmente se passou?

É simples. Frédérick não aguentou a pressão e literalmente explodiu. O problema é que ele era um desenhador do estúdio de Uderzo, que fazia ilustrações publicitárias e passava a tinta os desenhos de Uderzo, mas que não tinha nenhuma experiência da planificação e da narrativa em BD. Por isso, tinha muitas dificuldades em contar uma história em Banda Desenhada. Quando percebemos que a coisa não ia resultar, tivemos que arranjar um substituto, que foi Conrad.

 E Conrad introduziu alguma alteração na história, em relação à versão com que Mebarky tinha trabalhado?

Não, e por duas razões. Primeiro, por quando ele chegou, o story board já estava todo feito e depois, como ele teve um prazo muito curto para desenhar o álbum, o meu story board até lhe deu jeito.

E o que é que nos pode adiantar sobre o novo álbum?

Oficialmente, a única coisa que posso adiantar é que a história termina com um banquete na aldeia gaulesa, como sempre (risos)… De resto, não posso dizer nada, mas como há algumas pequenas informações que já apareceram na Internet, posso dizer que, como é habitual nos álbuns de Astérix, haverá uma série de elementos típicos da tradição do país, como o monstro de Loch Ness e vamos saber também a verdadeira razão porque a Muralha de Adriano foi construída.

Foi à Escócia fazer pesquisa para escrever a história?

Já conhecia a Escócia e voltei lá por causa do álbum. Mas o cenário não é o principal. A história passa-se numa Escócia que, mais do que corresponder à Escócia histórica real, tem que corresponder à ideia que as pessoas têm da Escócia. Ou seja, há que jogar com os estereótipos de forma divertida. Do mesmo modo, a pesquisa histórica é importante, mas não é decisiva. Quando decidi escrever sobre os Pictos, fui naturalmente investigar. Mas a verdade é que não há grande informação sobre os Pictos, o que até me deu jeito, pois assim pude inventar os meus Pictos que, na boa tradição de Astérix, são os ascendentes dos escoceses modernos.

E já tem ideias para os próximos álbuns?

Ideias, tenho algumas. Mas a verdade é que o contrato que assinei foi só para este álbum. Vamos a ver como é que as coisas correm, como é que o livro é recebido… E depois, se a editora estiver interessada, também é preciso que eu arranje uma boa história que queira contar e que agrade ao editor. Sem estar entusiasmado com a história, não consigo trabalhar.

Qual é a diferença entre trabalhar numa série como Astérix, ou em projectos mais pessoais como a série Le Retour à la Terre, feita com o seu amigo Manu Larcenet.

São coisas diferentes. Com um personagem que eu criei, sou eu que comando o jogo. No caso de Astérix, não me sinto inteiramente responsável pelo universo da série. Astérix já existia, não fui eu que o criei. As regras do jogo são outras. É um desafio muito particular.

Está em Lisboa para o lançamento de uma colecção de álbuns de Astérix, que vai ser distribuída com o jornal Público. Que pensa deste tipo de iniciativas?

Acho que estas colecções vêm de encontro à vocação da Banda Desenhada, que é chegar ao grande público. Na minha infância, lembro-me que os álbuns de Lucky Luke eram vendidos em edição de capa mole, mais baratas e isso funcionava muito bem! E acho que no caso do Astérix também vai funcionar bem. Os colecionadores têm as edições normais em capa dura e estas edições chegam a um público mais alargado. Além disso, juntar as histórias de viagem todas numa mesma colecção é uma boa ideia!


Até agora, a presença dos Lusitanos na série Astérix limitou-se a um escravo no álbum o Domínio dos Deuses, que não sabia cantar, mas recitava poesia. Será que vamos ver algum dia Astérix na Lusitânia?

Astérix na Lusitânia é um bom título para um álbum. Soa mesmo a um título de Astérix! Já vi algumas sugestões nesse sentido na Internet.
E porque não? Mas para isso preciso de conhecer Portugal. Esta é a primeira vez que aqui venho e não vou ter tempo para ver grande coisa. Tenho que voltar com tempo, conhecer o país e arranjar uma história que justifique a visita de Astérix.
Versão integral da entrevista publicada no suplemento Fugas do jornal Público de 19/10/2013

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Duas revistas em formato digital


Se a época áurea das revistas há muito terminou, as novas tecnologias têm possibilitado o aparecimento de publicações periódicos, sem as limitações, constrangimentos e custos, inerentes às publicações impressas e que necessitam de uma estrutura de venda e distribuição para chegarem aos leitores. Assim, recentemente surgiram duas novas revistas digitais, que podem ser descarregadas gratuitamente através da Internet e que, pela sua qualidade, merecem natural referência neste espaço. Falo do terceiro número do webmagazine do colectivo Lisbon Studio e de Calafrios, uma revista digital de terror, editada por Filipe Azeredo, responsável pelo blog A Filactera.

Depois de uma primeira edição em papel em 2010, lançada no VI Festival Internacional de BD de Beja, a revista do Lisbon Studio, que apresentava trabalhos dos autores que partilhavam atelier no Lisbon Studio, entrou em hibernação durantes uns tempos para regressar em formato digital em Junho de 2013, anunciando uma periodicidade bimestral que, até agora, tem sido escrupulosamente cumprida. Este 3º número do TLS relativo a Outubro/Novembro, que pode ser visto a partir do blog do Lisbon Studio, para além de uma bela capa de Nuno Duarte, que assina como o outro Nuno Duarte, para não ser confundido com o argumentista de “A Fórmula da Felicidade” e “O Baile”, conta nas suas 152 páginas, com amostras do trabalho da maioria dos artistas residentes do espaçoso atelier colectivo (falta infelizmente neste número, o João Maio Pinto), localizado perto da Estação de Santa Apolónia, com destaque para a apresentação de Crime no Hotel Lisboa, um videojogo da Nerd Monkeys, criado por Filipe Duarte Pina, com concepção visual de Nuno Saraiva e para uma amostra dos mais recentes trabalhos de Jorge Coelho para o mercado americano, como desenhador da mini-série Polarity, da Boom Studios e da revista Venon, da Marvel, para além das Previews dos próximos trabalhos de Ricardo Cabral, Joana Afonso e André Oliveira e da recuperação de uma história que Pedro Brito fez para um álbum colectivo sobre Portimão.  
Já “Calafrios”, a revista digital de terror que Filipe Azeredo começou a editar, aposta na recuperação de clássicos do terror em Banda Desenhada, que já estejam no domínio público. E, embora o nome da revista remeta para a mítica revista brasileira Calafrio, que anos 80 recuperou o melhor do terror daquele país, incluindo o trabalho do português Jayme Cortez, este “Calafrios”, centra-se nos autores da EC Comics, como Bernard Krigstein, Jack Davis, Walace Wood, Reed Crandal, Basil Woverton e Alex Toth, com este primeiro número a trazer histórias ilustradas pelos três últimos.
Duas apostas completamente diferentes, mas igualmente interessantes, com a grande vantagem de serem gratuitas, o que, nos tempos que correm, não é aspecto a negligenciar…
(TLS WEBMAG # 3 - disponível aqui
Calafrios # 1 -  disponível aqui)
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 19/10/2013

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

DC Comics UNCUT 15 - Super-Homem e Batman: Os Melhores do Mundo



Embora algumas pessoas tenham criticado a escolha deste volume, trata-se de um dos meus favoritos, tendo-me batido pela sua inclusão nesta colecção e tendo feito questão de o traduzir, para além de ter escrito o editorial. Acho que Dave Gibbons conseguiu um bom equilíbrio entre tradição e modernidade e o desenho de Steve Rude é maravilhoso, cheio de pormenores deliciosos, para além que é uma história que pode ser lida sem grande conhecimento prévio da história dos heróis.

UM CONTO DE DUAS CIDADES

Para além de serem os mais antigos, Batman e o Super-Homem são indiscutivelmente os mais importantes e dois dos mais populares super-heróis de sempre, uma popularidade que o tempo e a passagem para outros meios, como a televisão e o cinema, só ajudou a aumentar.

Criados respectivamente, em 1939 e 1938, os melhores heróis do mundo viveram aventuras separadas durante mais de dez anos, antes de dividirem o protagonismo numa mesma história. Com efeito, o primeiro de muitos encontros entre os dois maiores super-heróis da DC deu-se apenas em 1952, nas páginas da revista Superman nº 76, numa história escrita por Edmond Hamilton e desenhada por Curt Swan, cujo título, The Mightiest Team in the World, não deixava grande margem para dúvidas. E o sucesso desta reunião levou ao natural aparecimento na revista World’s Finest - onde Batman e Super-Homem já eram presenças habituais em histórias separadas - de aventuras em que os dois maiores heróis do mundo juntavam forças para enfrentar as mais variadas ameaças. Estas histórias conjuntas, publicadas entre 1954 e 1986, ano em que a revista foi cancelada, na sequência da remodelação do Universo DC motivada pela Crise nas Terras Infinitas, que já pudemos ler nesta coleção, nunca exploraram muito as diferenças evidentes entre o lado nocturno de Batman e a dimensão solar de Super-Homem.
Para isso, foi preciso esperar pelo notável O regresso do Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, que coloca Batman em confronto com o Super-Homem, aqui retratado com um homem de mão da administração Reagan, numa história que explora as profundas diferenças entre os dois heróis e que, juntamente com o Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons, mudou a face da BD americana de Super-Heróis.
Foi precisamente Dave Gibbons, o desenhador de Watchmen, a dar o passo seguinte, com a mini-série World’s Finest, de 1990, que podemos ler neste volume. Obra que assinala a sua estreia como argumentista, Os Melhores do Mundo é uma aventura que concilia a tradição da revista a que vai buscar o título, com a renovação que Miller trouxe à imagem dos dois heróis, numa história de sabor clássico que explora com grande mestria a dicotomia entre os dois heróis, que funcionam como negativo um do outro, do mesmo modo que a nocturna Gotham e a luminosa Metrópolis, são as duas faces complementares da cidade de Nova Iorque, reinventada para a BD.
Pesadelo urbanístico inspirado no lado negro de Nova Iorque, Gotham City simboliza as trevas em que Batman se move. Os imensos arranha-céus que mal deixam passar a luz do dia, decorados com gárgulas que perderam a sua função medieval de afugentar os espíritos malignos, para se tornarem meros poleiros de super-heróis e vigilantes, marcam a imagem de uma cidade que tem o seu contraponto na luminosa Metrópolis.

Mas, embora tenha sido criada primeiro do que Gotham City, Metrópolis nunca assumirá uma importância semelhante à que Gotham tem nas histórias do Batman. Para começar, enquanto Super-Homem é alguém que vem doutro lugar, (tal como os milhares de emigrantes que todos os anos aportam a Nova Iorque vindos das mais distantes paragens) antes de mais nada, do planeta Krypton e depois de Smallville, terra cujo nome denuncia claramente as suas características de pequena cidade do interior, Batman é um produto de Gotham e da violência que aí impera. Isto é, enquanto Super-Homem já era um super-herói mesmo antes de ir para a grande metrópole, Batman nasce quando os pais de Bruce Wayne são mortos num beco escuro e mal frequentado de Gotham. Por isso, Metrópolis, apesar do nome que remete para a mais mítica das cidades do cinema, a Metrópolis de Fritz Lang, é uma mera Nova Iorque idealizada, sem nada de particularmente distintivo, para além dos edifícios do Planeta Diário, onde trabalham Clark Kent e Lois Lane e da Luthor Tower, símbolo do poderio de Lex Luthor, que de mero cientista louco nas histórias iniciais, foi transformado num poderoso homem de negócios, influente a ponto de alcançar a Presidência dos Estados Unidos, em resultado das diversas reescrituras da história oficial do universo DC.
Essa dualidade luz/sombra, Metrópolis/Gotham City e a forma como os dois heróis se identificam com a sua cidade, são muito bem exploradas nesta história em que os seus principais inimigos, Joker e Lex Luthor, decidem trocar de cidades, passando cada um a entrar em confronto com o inimigo do outro, numa inesperada inversão de papeis, que vai criar dificuldades inesperadas ao Homem de Aço e ao Cavaleiro das Trevas.
Embora seja conhecido sobretudo como desenhador, o inglês Dave Gibbons mostra na sua estreia como argumentista que também sabe, e bem, escrever, construindo uma história que concilia a tradição dos comics de super-heróis com o ambiente dos contos de Charles Dickens, que o autor claramente homenageia, tal como Lewis Carol e a sua Alice. Veja-se a personagem de Byron Wylie, o proprietário do Orfanato de Midway (nome com um significado literal, pois o orfanato está realmente a meio caminho entre Metropolis e Gotham City, recolhendo órfãos das duas cidades) claramente inspirado em Fagin, o vilão de Oliver Twist, ou a forma como o protagonismo é dividido pelas duas cidades, que evoca o Tale Of Two Cities, de Dickens, cuja acção decorre entre Paris e Londres.
Para o sucesso de Os Melhores do Mundo, muito contribuiu o superior trabalho gráfico de Steve Rude, desenhador que os leitores já conhecem de X-Men: Filhos do Átomo, publicado na anterior coleção que a Levoir dedicou aos super-heróis. Rude, que construiu a maioria da sua carreira ao lado de Mike Barron na série Nexus, de que é um dos criadores, tem em Os Melhores do Mundo o seu mais importante trabalho para a DC. Com um estilo inimitável e de grande elegância, que faz uma síntese muito própria das mais diversas influências, de Jack Kirby a Alex Toth, passando por Russ Manning, Rude capta perfeitamente a dimensão icónica dos dois heróis, inspirando-se graficamente no Super-Homem da série televisiva dos irmãos Fleischer e juntando o Batman original de Bob Kane com a versão de David Mazzucchelli em Ano Um. O resultado é simultaneamente clássico e inovador e o extraordinário detalhe que Rude põe em cada imagem, justifica diversas releituras, pois há sempre coisas a acontecer em segundo plano. Pequenos apontamentos do quotidiano, em que Rude mistura um erotismo discreto com um toque de humor, que nos recorda as ilustrações de Norman Rockwell, o mestre da ilustração americana, cujas capas para a revista Saturday Evening Post, Rude homenageia na contra-capa do 3º volume da mini-série.
O sucesso de Os Melhores do Mundo levou a que se repetissem os encontros entre Batman e o Super-Homem e, curiosamente, Karl Kesel, que foi o responsável por passar a tinta o desenho de Steve Rude neste livro, vai ser o argumentista de uma mini-série de 10 números, ilustrada por Dave Taylor em 1999, que relata os sucessivos encontros entre o Homem de Aço e o Cavaleiro das Trevas ao longo de dez anos, com a acção de cada número a passar-se num ano diferente. Entre muitos outros encontros, impossíveis de enumerar neste espaço, os dois heróis partilharam a revista Superman/Batman entre 2003 e 2011, onde viveram aventuras como a que poderemos acompanhar no último volume desta coleção, que recolhe a história A Rapariga de Krypton, escrita por Jeph Loeb para os desenhos de Ian Churchill e do malogrado Michael Turner.
Nem a mais recente remodelação do Universo DC, com o lançamento dos Novos 52 desfez a dupla mais poderosa do mundo, pois um dos últimos lançamentos da linha Novos 52 foi precisamente a revista Batman/Superman, escrita por Greg Pak, com (magníficos) desenhos de Jae Lee. E se a tudo isto juntarmos o anúncio, feito na última San Diego Comic Con de que a aguardada sequela do filme Homem de Aço, dirigida por Zack Snyder vai contar com a presença do Batman, interpretado por Ben Afleck,não restam grandes dúvidas de que o Cavaleiro das Trevas e o Homem de Aço vão continuar a combater o crime, lado a lado. Seja em Metrópolis, ou em Gotham City.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

DC Comics UNCUT 14: Crise de Identidade (Parte 2)


Crise de identidade, identidades em crise

Não é fácil encontrar uma história de super-heróis mais controversa do que Crise da Identidade, ou uma história que tenha polarizado de tal modo os fãs. Não só pelo facto de nela morrerem heróis, mas pela representação crua de acontecimentos e crimes chocantes e violentos. Na história da continuidade do Universo DC esta saga é sem dúvida um momento único e marcante.

Ao longo das duas últimas décadas, as histórias dos comics de super-heróis têm oscilado entre dois pólos opostos. Crise de Identidade inscreve-se claramente na corrente "revisionista", que pretende questionar muitos dos pressupostos das histórias de super-heróis, fazendo o contraste entre os super-poderes típicos das personagens deste género e o mundo real. Por outro lado, existe uma corrente que reagiu contra o revisionismo, e que quer devolver à história de super-heróis à sua posição clássica de história positiva, mais ligada ao entretenimento puro, e a que podemos chamar de "reconstrucionista", na feliz expressão do argumentista Kurt Busiek. Revisionismo e reconstrucionismo não são obviamente categorias absolutas, são maneiras de escrever as histórias de super-heróis que sempre existiram e que são de algum modo relativas a cada época. Podemos dizer, por exemplo, que as aventuras do Lanterna Verde e do Arqueiro Verde do periodo de Denny O'Neill e Neal Adams, algumas das quais já tivemos ocasião de ler nesta colecção, com todas as suas preocupações sociais, também eram revisionistas. Mas o revisionismo que nos interessa aqui é mais negro e questiona mais profundamente os comics de super-heróis.

Esse revisionismo surgiu na década de 80 em obras incontornáveis como Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons, ou O Regresso do Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller. Apresentavam-nos histórias em que as questões ligadas à existência dos super-heróis eram levadas às suas últimas consequências, e em que a interacção entre eles e um mundo mais ou menos real era mostrada de uma maneira mais realista. Infelizmente, muitos leitores apenas retiveram desta vaga inicial de histórias o lado violento e mais negro, e toda uma geração posterior de autores viria a desenvolver comics em que a único sinónimo que parecia existir para "realismo" era "violência", quer ela servisse ou não os propósitos do argumento.

Essa violência que foi a marca de algumas das obras mais importantes da época, surgiu naturalmente como reacção a alguns dos clichés do género, em que raramente eram mostradas as consequências últimas dos confrontos entre os heróis e vilões, por exemplo, e em que quase nunca eram pensados os "efeitos secundários" destes confrontos sobre o mundo que os rodeava. Mas o "revisionismo" não tinha como regra principal a violência, ela era apenas uma das questões que eram postas. Outras questões tinham a ver com outros clichés dos comics de super-heróis, como a existência de um status quo quase eterno nos universos ficcionais, em que cada mega-saga, cada invasão extra-terrestre ou conspiração global, cada conflito de proporções cataclísmicas, pura e simplesmente não afectava em nada o ambiente à volta dos heróis, ou o facto de os heróis raramente se envolverem em questões políticas ou sociais de modo relevante.

Esta nova vaga de realismo nos comics de super-heróis levou a uma série de histórias mais negras e violentas, e a reacção não tardou. Em poucos anos, autores como Kurt Busiek, com Marvels ou Astro City (que criou com Alex Ross e com Brent Anderson, respectivamente) por exemplo, voltaram a um tipo de histórias mais clássico e em que o lado mais negro da fase anterior dava lugar a histórias mais positivas. Talvez o momento definitivo da inversão das tendências tenha sido a estreia de Grant Morrison à frente da Liga da Justiça, em que ele conscientemente tentou incutir aos membros da Liga um lado mais mítico e mais representativo das qualidades positivas da humanidade. Nas melhores histórias desta fase reconstrucionista, as lições da era anterior não foram esquecidas, e os argumentos tiveram em conta a interacção com o mundo real de modo mais coerente. Ao longo dos dez anos seguintes foram surgindo sínteses excepcionais das duas correntes, em universos ficcionais de super-heróis em que a violência era posta ao serviço de histórias com um desenvolvimento inteligente e que não fugiam das questões sociais ou políticas que rapidamente se tornam subjacentes aos conflitos super-heróicos. The Authority, sobretudo na fase de Mark Millar e Frank Quitely, mas também na fase inicial, de Warren Ellis e Bryan Hitch, ou Planetary, do mesmo Ellis (com arte de John Cassaday), são alguns dos melhores exemplos disso.

No seu melhor, qualquer história de qualquer género pode servir a causa do entretenimento, e ao mesmo tempo fazer-nos reflectir sobre o mundo que nos rodeia, a condição humana, fazendo ecoar no seu enredo ideias relevantes para o leitor. Isso é verdade para o romance policial, para a fantasia ou o romance histórico, ou mesmo cor-de-rosa. E não é diferente para as histórias de super-heróis, que pode ser, por exemplo, um dos melhores géneros para explorar as questões sobre o poder e o relacionamento de heróis e pessoas normais com ele. Mas para que isso possa funcionar, é preciso também que a "distância" entre o mundo real a que o leitor pertence, e o mundo ficcional em que a história se passa, seja gerida de modo a não quebrar a plausibilidade. Isso pode ser feito apelando ao mito e arquétípo, por exemplo, quando os mundos são muito diferentes, mas nem todas as histórias podem ser mitos. Nos comics de super-heróis isso também pode ser feito confrontando coerentemente as personagens super-poderosas com os problemas do mundo real. Crise da Identidade, inscrevendo-se na corrente revisionista, e tendo sem dúvida um lado muito negro e trágico, consegue fazê-lo de modo notável.

Como vimos em Laços de Família, a introdução ao anterior volume desta colecção que apresenta a primeira parte de Crise de Identidade, Brad Meltzer, o argumentista da saga, é um conhecido autor de romances policiais. Muitas das características que fizeram de Crise um livro tão controverso são totalmente normais, diríamos mesmo banais, num romance policial. A violência, por vezes descrita ao pormenor, é comum e costuma até ser o ponto de partida da história. As consequências dessa violência sobre as personagens são frequentemente exploradas. De certa maneira, para um autor como Meltzer é mais fácil pensar a inserção destes factos normais e trágicos da vida real no universo dos super-heróis do que para a maioria dos argumentistas de comics. Como ele próprio diz, "há um custo de se pôr um a capa de super-herói, e acho que ao longo dos anos o temos ignorado, e muito". E a reacção dos fãs à mais terrível cena do livro - a violação de Sue Dibny pelo Dr. Luz - é a prova de que a tensão entre revisionismo e reconstrucionismo continua bem viva hoje em dia. Como se os super-heróis e as suas famílias, caso existissem, pudessem escapar à violência que existe na sociedade à sua volta.

Os heróis são assim colocados frente a um dilema tremendo, e a Liga dilacerada a partir do interior. Meltzer consegue mostrar um conflito em que parece por uma vez não existir um Bem ou um Mal claros. Mas quando vemos que a resposta da Liga à violação de Sue Dibny é a violação do Dr. Luz, sentimos também o peso terrível das decisões de cada um dos super-heróis, na cena maravilhosa da votação, que é fechada pelo voto decisivo de Barry Allen, o Flash anterior ao actual, e que para muitos é ainda hoje considerado uma das personagens que encarna melhor a ética dos super-heróis da Silver Age. Mas para os heróis, e para os leitores, a violação de Sue Dibny é a prova de que no universo dos super-heróis, tal como no nosso, existem outras ameaças à família dos heróis do que simplesmente o rapto ou a morte, que poderíamos considerar como ameaças mais convencionais. E tal como no nosso universo, as respostas a essa ameaça não são facilmente descritas em termos de Bem e de Mal.

Julian Darius, um dos mais perspicazes críticos e analistas dos comics de super-heróis, afirma que "Se queremos respeitar os comics, não os devemos respeitar porque são cool, ou porque achamos que dois nerds a discutir se o Hulk consegue vencer o Super-Homem merecem respeito ou são notícia. Mas deveríamos respeitá-los como forma de arte literária capaz de contar histórias novas e que nos tocam de maneiras que outros meios não conseguem fazer (...) e por serem livros que podemos arrumar ao lado da Guerra e Paz na prateleira. Infelizmente, achamos frequentemente que são um meio estranho mas giro de contar histórias e de gerar ideias para blockbusters com montes de explosões". Mas com histórias como Crise de Identidade, com a sua sofisticação e com a excepcional caracterização das suas personagens, que à sua maneira, no seu universo super-heróico, nos parecem tão reais, o respeito que os comics de super-heróis merecem parece estar mais que garantido

José Hartvig de Freitas

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Gullerrmo Del Toro cria abertura para episódio dos Simpsons


Quase a chegar aos vinte e cinco anos de emissões, a série The Simpsons desta vez contou com um convidado especial, que dirigiu o genérico do tradicional episódio de Halloween deste ano, os clássicos Treehouse of Horror. Esse  convidado foi o cineasta mexicano Guillermo Del Toro, responsável pela transposição do Hellboy de Mike Mignola para o cinema e por filmes como o Labirinto do Fauno, que assim se junta a Bansky, Jon Kricfalusi (o criador de Ren and Stimpy), Seth Green e Bill Plympton, no restrito leque de criadores convidados para dirigir a sequência de abertura da série.

Se o episódio deste ano, o Treehouse of Horror XXIV só vai para o ar na semana do Halloween, a sequência de abertura já anda por aí na Net e está cheio de referências aos filmes e à literatura de terror em geral, como nesta imagem onde aparecem Edgar Alan Poe, Ray Bradbury e Richard Matheson, e à obra do próprio Del Toro em particular. Aqui fica então o divertido vídeo



E depois disso,  podem conferir aqui quais as referências e homenagens que detectaram e quais deixaram escapar...

sábado, 5 de outubro de 2013

DC Comics UNCUT 13: Crise de Identidade (Parte 1)


LAÇOS DE FAMÍLIA

Depois de uma crise de dimensões cósmicas, a Crise nas Terras Infinitas, cujas consequências alteraram completamente as diferentes dimensões do Universo DC, a segunda crise publicada nesta colecção tem uma dimensão claramente mais intimista e familiar, o que não lhe retira impacto e importância.

Publicada originalmente em 2004, como uma mini-série de sete números, Crise de Identidade foi o trabalho de maior impacto do escritor Brad Meltzer para a DC. Nascido em 1970, Meltzer é um popular escritor policial, com diversos títulos publicados que chegaram aos tops de vendas do New York Times, e que trabalhou também em televisão, como co-criador da série Jack & Bobby e apresentador da série Brad Metzler Decoded, produzida pelo canal Historia. Grande fã de Banda Desenhada, com uma colecção de mais de 15.000 livros, Meltzer, que chegou a dividir casa com o autor de BD Judd Winick, tem por hábito incluir referências mais ou menos discretas à BD nos seus romances, como acontece no livro The 10th Justice, em que a maioria dos Juízes do Supremo Tribunal têm o nome de personagens de Watchmen, ou em The Millionaires, em que o personagem principal se chama Oliver, em honra de Oliver Queen, o Arqueiro Verde. E foi precisamente essa homenagem que levou Bob Schreck, então editor da DC, a convidar Meltzer para substituir Kevin Smith na série Arqueiro Verde, assinando The Archer’s Quest, uma história em seis partes ilustrada por Phil Ester e Ande Parks, sendo Crise de Identidade, cujos cinco primeiros capítulos podemos ler neste volume, o seu trabalho seguinte como argumentista para a DC e o mais popular, mesmo que a sua posterior colaboração com Gene Ha na revista Justice League of America lhes tenha valido um prémio Eisner em 2008 para a Melhor História Solta (ou One Shot), atribuído à história publicada no nº 11 da dita revista.

Crise de Identidade nasceu do pedido do editor Dan Didio, para que Metzler escrevesse “uma história emocional que fosse ao âmago do que significa realmente usar uma capa e uma máscara” deixando-lhe a possibilidade de matar algum herói para dar outro impacto à história. Conforme Meltzer refere numa entrevista: “tudo o que eu queria fazer era explorar essas personagens e tentar uma abordagem mais pessoal às suas vidas. (…) Quis olhar para dentro das máscaras e explorar o verdadeiro preço de ser um herói. Há um preço a pagar por envergar uma capa e esse elemento tem sido praticamente ignorado ao longo dos tempos.” E Crise de Identidade explora precisamente a necessidade de os heróis terem uma identidade secreta e as consequências que podem resultar para as suas famílias quando essa identidade é exposta.
Se as identidades secretas facilitam a identificação dos leitores com os heróis, que têm muito mais facilidade em se sentirem próximos de um repórter tímido como Clark Kent, do que do todo-poderoso Super-Homem, a verdade é que também têm uma utilidade prática, protegendo as famílias dos heróis das ameaças dos seus inimigos. É esse medo, o medo de que poderemos não ser capazes de impedir que façam mal àqueles que nos são próximos, que até um ser de poderes quase ilimitados como o Super-Homem sente, que Brad Meltzer explora de forma admirável na história cuja primeira parte poderão ler nas páginas seguintes.

Tudo começa com o assassinato de Sue Dibny, a mulher do Homem-Elástico. Um assassinato misterioso e inexplicável, que vai levar a uma investigação policial que acaba por expor segredos indesejados. Segredos esses que vão pôr em causa a relação entre os membros da Liga da Justiça, que ultrapassaram largamente os limites éticos na tentativa de proteger aqueles que lhes estão próximos.
Se Ralph Dibny, o Homem-Elástico e a sua mulher Sue, estão muito longe de ser dos personagens mais populares da DC, tal como o Dr. Luz, o principal suspeito da morte de Sue, não passa de um vilão menor, que aparecia principalmente nas aventuras dos Novos Titãs, tendo sido escolhidos para protagonistas desta história, muito possivelmente por razões de nostalgia, pois a primeira revista de BD que Meltzer leu foi a Justice League of America # 150, de 1978, em que o Homem-Elástico salva a Liga e o Dr. Luz aparece num flash-back, a verdade é que todos ganham outra importância e uma nova dimensão nesta história. Isso sucede graças à forma exemplar como Meltzer constrói a história, fazendo-nos testemunhas da relação perfeita entre Ralph e Sue, ao mesmo tempo que, através de narrativas paralelas, destaca a importância dos laços familiares para outros heróis; seja o Super-Homem com os seus pais adoptivos, o Arqueiro Verde com o seu filho, Tim drake, o terceiro Robin com o seu pai, ou Batman e Asa Nocturna, o primeiro Robin, com a memória dos pais desaparecidos.
Numa história em que o maior protagonismo vai para heróis relativamente secundários, como Zatanna, Gavião Negro, Arqueiro Verde, ou Canário Negro, e os “pesos pesados” como o Super-Homem, Batman e Mulher-Maravilha têm uma presença mais discreta, o talento narrativo de Meltzer está também evidente na forma como atrasa o aparecimento em cena de Batman, sem com isso evitar que a sua sombra paire sobre a história desde o início, ou na forma como um mero plano da cintura da Mulher-Maravilha, nos faz perceber que ela vai utilizar o seu laço mágico para arrancar a verdade a um prisioneiro.
E se a empatia que se cria entre o leitor e o casal Dibny aumenta exponencialmente o impacto da morte de Sue, a forma como Rags Morales, o desenhador da série e Michael Bair, o responsável pela passagem a tinta, retratam o momento em que o Homem-Elástico descobre o cadáver da sua mulher, fazem dessa imagem um momento inolvidável deste livro. Um mérito que vai sobretudo para Morales, cuja opção em termos de enquadramento se revelou mais eficaz do que a opção inicial de Meltzer e que através do distorcer das feições de Ralph, consegue a tradução visual adequada para a dor sem fim que invade o Homem-Elástico. Um homem anteriormente feliz, que de um só golpe se vê privado da mulher da sua vida e do filho de ambos, ainda por nascer.

Outro exemplo da perfeita sintonia entre um argumentista, que é um excelente narrador e um desenhador que consegue levar ainda mais longe as suas ideias mais arrojadas, é a sequência do combate entre Slade Wilson, o Exterminador e os membros da Liga da Justiça, no capítulo 3, maravilhosamente coreografada e que confirma o Exterminador como um dos mais perigosos vilões do universo DC. Uma cena que Meltzer descreve assim: “aquela luta durava oito segundos na minha cabeça, mas levou-me quase uma semana a escrever. Só queria ver um vilão realmente inteligente a preparar um ataque ferozmente inteligente. Esqueçam destruir prédios, ou atirar carros – queria que o único superpoder em destaque fosse o poder da mente.” E o resultado foi tão convincente que, ao ler a cena, o editor Dan Didio não hesitou em aumentar o número de páginas da revista, de 22 para 30, de modo a Rags Morales poder desenvolver devidamente todos os detalhes deste combate inesquecível.
Apesar de pensada como uma história com uma forte carga emocional, que funcionasse de forma autónoma, a verdade é que os acontecimentos de Crise de Identidade vão ter fortes repercussões no Universo DC e as consequências desta história vão fazer-se sentir em outros títulos. Mas isso já é uma outra história. Uma história que poderão descobrir no próximo volume desta colecção, onde será finalmente revelada a identidade do assassino de Sue Dibny.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Ensaio sobre a Loucura


Depois de “O pequeno Deus Cego”, David Soares regressa à Banda Desenhada com “Palmas para o Esquilo”, uma nova colaboração com Pedro Serpa, que nos leva numa perturbadora viagem onde se esbatem as fronteiras entre a imaginação e a loucura.
Uma das especificidades (e mais-valia) da Banda Desenhada é a forma como o texto e a imagem se articulam para formarem algo de novo que, quando os autores o conseguem, é mais do que a mera soma das partes. Neste caso, ao desenho simples e agradável de Pedro Serpa, servido por cores alegres e planas, que convida o leitor a entrar de forma despreocupada na história, contrapõe-se o texto profundo e complexo de David Soares, cheio de termos pouco usuais, que obrigam à consulta de um dicionário, com resultados francamente perturbadores. Atraídos pelo desenho de Serpa, os leitores passam para o outro lado do espelho, onde o esperam, para além das imagens e dos diálogos, um texto em off, com as reflexões de David Soares sobre a loucura, uma espécie de ensaio sobre a loucura que, embora possa ser lido de forma autónoma, dialoga com e ilumina a história, que os desenhos e os diálogos contam.
No “Manifesto Anti-Dantas”, Almada Negreiros dizia que todos os seus livros deviam “ser lido pelo menos duas vezes para os muito inteligentes e daí para baixo é sempre a dobrar” e, sem querer comparar David Soares a Almada, a verdade é que essa sugestão também se aplica a “Palmas para o Esquilo”, pois numa única leitura dificilmente apreenderemos toda a complexidade do texto de David Soares
O cenário da história, o traço “linha clara” e as cores planas de Serpa, cuja simplicidade se aproxima do desenho de Paco Roca, recordaram-me um excelente livro editado recentemente em Portugal, “Rugas”, de Paco Roca, mas essas semelhanças são apenas aparentes e “Palmas para o Esquilo” está bastante mais próximo dos romances de David Soares, do que da BD de Roca, ou até de anteriores trabalhos em BD de Soares.
Apesar do traço de Serpa, aqui propositadamente (?) menos pormenorizado do que em “O Pequeno Deus Cego” ser de leitura e adesão imediatas, “Palmas para o Esquilo” não é um livro fácil. David Soares provoca e inquieta o leitor, tirando-o da sua zona de conforto. Aqueles que estão dispostos a arriscar e investir na leitura de uma história que o exige, serão certamente recompensados. Agora, cabe ao leitor decidir se se sente à altura do desafio.
 (“Palmas para o Esquilo”, de David Soares e Pedro Serpa, Kingpin Books, 52 pags, 10,99€ )
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 28/09/2013