segunda-feira, 29 de julho de 2019

Novela Gráfica V 4 - No Rasto de Garcia Lorca

RECORDANDO GARCÍA LORCA

Novela Gráfica V - Vol. 4 
O Rasto de García Lorca
Argumento – Carlos Hernández e El Torres 
Desenhos – Carlos Hernández
Quinta-feira, 25 de Julho
Por + 10,90€
Nome maior da poesia e do teatro espanhol e figura incontornável da cultura mundial, a quem a morte trágica deu uma dimensão mítica, Federico García Lorca é o protagonista do quarto volume da colecção Novela Gráfica, que chega aos quiosques de todo o país no dia 25 de Julho, mas que dois dias antes será objecto de uma apresentação e lançamento na Fundação José Saramago, com a presença de Pilar del Rio, uma das autoras do prefácio.
Se as biografias de escritores, ou poetas são um tema bastante presente na novela gráfica espanhola contemporânea – basta pensar em Gente de Dublin, a biografia que Alfonso Zapico fez de James Joyce, publicada na colecção de 2018 – este O Rasto de García Lorca, para além de ser o primeiro, é diferente. Uma diferença que passa por traçar o retrato do poeta através da marca deixada por Federico Lorca em todos os que com ele conviveram - desde figuras célebres como Buñuel e Dalí, que não sai nada bem visto, até personagens bem mais anónimas, como Eládio, o criado anão do Hotel em Havana, onde Lorca se hospedou - nos locais por onde passou: pessoas que partilharam a vida e a morte do poeta, em cidades como Granada, Madrid, Havana ou Nova Iorque.
O ilustrador Carlos Hernández, que tem aqui o seu primeiro trabalho de grande fôlego, aliou-se a El Torres, o premiado argumentista de O Fantasma de Gaudi, para traçar doze momentos da vida de Garcia Lorca. Doze peças de um puzzle que, uma vez juntas, apresentam ao leitor um retrato bastante nítido do fundador da Barraca.
Embora o nome dos dois autores apareça em pé de igualdade na capa, a verdade é como refere modestamente El Torres, foi Carlos “quem comandou o barco” enquanto ele, como vem na ficha técnica se limitou a “limpar e dar brilho e esplendor” às suas ideias. Algo natural, pois Carlos Hernández é natural de Granada e, como refere numa entrevista: “como granadino, Federico García Lorca está no meu subconsciente e tem sido, desde que me lembro, o referente cultural da minha cidade, apesar das cinzas do passado e de um controverso silêncio de que a cidade ainda não se conseguiu de todo libertar. Lorca significa muito para qualquer um que tenha sensibilidade para sentir os seus passos naqueles recantos da cidade que ainda conservam o seu rasto.” Por isso, a história abre e fecha com as memórias de Alfonsito, um vizinho de Lorca, personagem inspirada no pai do próprio Carlos Hernández, que foi contemporâneo do poeta.
Dando mais uma vez a palavra a Carlos Hernández: “A premissa inicial foi de não contar a sua vida como mais uma biografia, mas antes construir diferentes relatos biográficos com uma certa independência, de que Lorca é o protagonista elíptico, muitas vezes ausente e outras não, mas sempre reflectindo, através do olhar dos seus amigos ou conhecidos, esse magnetismo, vitalidade e carismática presença que encontramos nas descrições de todos aqueles que o conheceram em vida. Por isso, escolhemos os temas em função de diversas prioridades. Por exemplo, contar algo da sua viagem a Nova Iorque, a sua estadia em La Habana, falar de sua relação com Dalí e Buñuel, a Residência de estudantes, relatar o seu dia-a-dia com a Barraca, e também mostrar a face sinistra de Granada, através do antigo soldado que se gabava de ter morto Lorca, uma história autêntica que as pessoas mais velhas da minha cidade ainda recordam.”
Graficamente, Hernández, que fez um sólido trabalho de pesquisa que dá grande veracidade à sua reconstituição de época, optou por um registo a sépia, que nos remete para as fotografias antigas, com resultados extremamente evocativos e poéticos. Mas onde o seu trabalho brilha mais é em termos narrativos, em momentos como a (surreal, mas verídica) entrevista a Salvador Dalí, ou as memórias de Luís Buñuel, em 1928, em que as palavras dos dois são acompanhadas por imagens que remetem para o filme Un Chien Andalou, que Dalí e Buñuel realizaram.
Publicado originalmente no jornal Público de 20/07/2019

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Novela Gráfica V 3 - A Febre de Urbicanda


Como acontece nos casos em que sou o autor do prefácio do livro, em vez de transcrever o texto do Público ( que podem sempre ler, carregando na imagem abaixo) aqui vos deixo o prefácio. É sempre um prazer escrever sobre As Cidades Obscuras e ainda mais sobre este livro, que foi o primeiro da série que comprei, em 1986, na FNAC de Les Halles, em Paris. Também por essas memórias, e pelo muito que me liga a essa série e aos seus autores, é sempre bom regressar a Urbicanda, ou a qualquer outra Cidade Obscura.

REGRESSO A URBICANDA


No mesmo ano em que nos países francófonos se conclui a edição integral em quatro volumes da série As Cidades Obscuras, eis que finalmente é reeditado em Portugal um dos títulos fundadores do universo criado por François Schuiten e Benoit Peeters, A Febre de Urbicanda. Objecto de uma primeira edição nacional, no final da década de 80 do século XX, o clássico de Schuiten e Peeters regressa agora numa edição definitiva que, para além de um dossier final sobre a lenda da Estrutura, inclui também a história A Última Visão de Eugen Robick, feita em 1997 para o número final da revista (A Suivre) onde a série nasceu.
Efectivamente, tudo começou em 1983, nas páginas da revista (A Suivre) com Samaris, a primeira das Cidades Obscuras dada a conhecer por Schuiten e Peeters. na história Les Murailles de Samaris.  O que era inicialmente para ser uma aventura independente, de homenagem à Arte Nova e à arquitectura em trompe l’oeil, viria a dar origem a uma série de histórias autónomas, passadas num mesmo universo que os próprios autores definem como sendo um reflexo deslocado da Terra, mas num tempo indefinido, parado algures na transição do século XIX para o XX.
Não sendo a primeira, A Febre de Urbicanda é, efectivamente a história que melhor abarca o conceito de “Roman BD” – termo associado à revista (A Suivre) que em França designou inicialmente a Novela Gráfica – com histórias preto e branco de longo fôlego, estruturadas em capítulos e marcadas pela ausência de um limite de páginas pré-estabelecido, e que, de facto, fundou o universo da série “a posteriori”. Aspecto que fica bem patente logo nas páginas iniciais de BD, ambientadas no gabinete de Robick, cujas paredes estão decoradas com um grande mapa do Continente Obscuro, onde são visíveis nomes de cidades como Alaxis, Xhystos e Samaris. Do mesmo modo, aquando da posterior reedição em livro de As Muralhas de Samaris, os autores acrescentaram algumas páginas no final, em que aparece um jovem Eugen Robick, então a viver em Xhystos, criando assim uma ligação entre os dois livros, cuja acção, percebe-se então, tem lugar no mesmo universo: o universo das Cidades Obscuras (designação inventada por Jean Paul Mougin, director da (A Suivre). Um universo que é constituído por uma série de cidades fantásticas, verdadeiros protagonistas de histórias fascinantes, que têm como pano de fundo as relações entre a arquitectura, as emoções e o poder. Histórias que procuram responder a uma questão fundamental: até que ponto as características de uma cidade podem moldar o comportamento dos seus habitantes e a evolução da própria narrativa?
Conforme refere Benoit Peeters: “o cenário, para nós não é um elemento secundário: é a partir dele que o conjunto da narrativa se organiza. Na maior parte das bandas desenhadas, o motor e o centro da narrativa é uma personagem que se reencontra, álbum após álbum. Completamente diferente é o projecto das Cidades Obscuras, em que é uma cidade que dá a cada história a sua unidade; não uma cidade real que trabalhos de localização permitissem alcançar, mas uma cidade inteiramente fictícia, fragmento de um universo paralelo cuja imagem global se desenha pouco a pouco”.
Neste caso, a cidade é Urbicanda, uma utopia arquitectónica baseada no rigor do planeamento e na simetria, em que o crescimento geométrico de um misterioso cubo feito de uma matéria desconhecida, vem perturbar e transformar a vida dos seus habitantes e a imagem da própria cidade. Embora o nome de Robick, o urbitecto responsável pela imagem uniforme da cidade, remeta para o cubo de Rubik, brinquedo quebra-cabeças muito em voga nos anos 80, e a história tenha precisamente seis capítulos – tantos quanto as faces de um cubo - a principal fonte de inspiração para o urbitecto foi o próprio pai de Schuiten, Robert Schuiten, arquitecto de profissão, tal como as cidades construídas de raiz, como Brasília -  que os autores só visitaram em 1997, ano da morte do pai de Schuiten – serviram de inspiração para Urbicanda. A mesma Brasília, traçada por Óscar Neimeyer,  onde reencontraremos Robick, na história curta para o último número da revista (A Suivre) que encerra este volume.

Para além da arquitectura fascista e dos projectos utópicos de Boulée e Ledoux,  expressamente citados na carta de Robick à Comissão das Altas Instâncias, que abre o livro, o universo imponente de Urbicanda é particularmente inspirado em trabalhos realizados por estudantes de arquitectura das Belas-Artes de Paris na década de 30. O que nos remete para outra das características marcantes da série, o recurso a uma ficção-científica “retro”, extrapolada a partir das utopias e dos projectos futuristas do princípio do século e de finais do século XIX.
Ao contrário de um Edgar P. Jacobs – de quem François Schuiten é um profundo admirador, como o demonstrar o recente Blake e Mortimer que desenhou - que, quando se propôs descrever o futuro em A Armadilha Diabólica, acaba, em vez disso, por retratar, com poucas extrapolações, a tecnologia de 1958, a tecnologia da Exposição Universal que vira dois anos antes em Bruxelas, o universo das Cidades Obscuras está mais fora do tempo. Nas palavras de Peeters, “o universo que descrevemos é um universo ligeiramente deslocado, mas cheio de elementos tirados do nosso universo. Evoca, de facto, aquilo que teria acontecido se tivesse havido uma espécie de falha temporal, se em lugar de evoluir no sentido que nós conhecemos, a arquitectura e as técnicas tivessem ligeiramente bifurcado a partir de um certo estádio, para seguir até ao fim uma direcção que, na realidade, foi muito depressa abandonada”.
Série maior da BD franco-belga, que cedo ultrapassou os limites da própria Banda Desenhada, para dar origem a livros ilustrados, documentários, um guia de viagens, exposições, intervenções cenográficas, um congresso que teve lugar em Coimbra em 1998 – cujas actas foram recolhidas no livro As Cidades Visíveis - e até a Estações de Metro, em Paris e Bruxelas, as Cidades Obscuras são um marco incontornável na história da Banda Desenhada e A Febre de Urbicanda é um das melhores portas de entrada nesse universo fascinante.
Publicado originalmente como prefácio do livro A Febre de Urbicanda, terceiro volume da colecção Novela Gráfica de 2019

domingo, 14 de julho de 2019

Novela Gráfica V 2 - Frango com Ameixas

O HOMEM QUE SE DEIXOU MORRER

Novela Gráfica V - Vol 2
Frango com Ameixas
Argumento e Desenhos – Marjane Satrapi
Quinta-feira, 13 de Junho
Por + 10,90 € 
Depois de Paco Roca no volume inicial, a Colecção Novela Gráfica de 2019 abre as suas portas a outro grande nome da BD europeia, Marjane Satrapi, que se estreia no catálogo do Público e da Levoir com o seu trabalho mais consistente, Frango com Ameixas.
Terceira mulher a assegurar presença na Colecção Novela Gráfica, depois de Zeina Abirached na Colecção de 2016 e Pénélope Bagieu na Colecção de 2018, Satrapi nasceu  no Irão em 1969, no seio de uma família de esquerda com grande peso no país (o bisavô foi o último Imperador da dinastia Qajar e o avô chegou a ser Primeiro Ministro) e tinha tinha apenas dez anos quando se deu a revolução que levou ao exílio do Xá e à instauração de uma República Islâmica, tendo vivido por dentro um momento fulcral da história do seu país. Um momento que soube transpor para o papel com eficácia, sensibilidade e rigor, em Persépolis, o título que lhe deu fama e que a própria adaptou ao cinema, num filme de animação co-realizado com Vincent Paronnaud.
Se Persépolis tinha uma carga autobiográfica dominante - algo natural em alguém como Satrapi, que viveu acontecimentos marcantes e que, como a própria confessou numa entrevista “tenho uma excelente memória, o meu cérebro não faz qualquer selecção. Lembro-me de tudo. O que é muito bom quando queremos trabalhar, mas é muito mau quando queremos viver” - Frango com Ameixas parte de factos reais relacionados com a história familiar da autora, para construir uma narrativa mais rica e muito menos linear do que em Persépolis, sendo evidente uma evolução de Marjane enquanto contadora de histórias, bem expressa na forma como ela gere a revelação sobre o verdadeiro motivo para Nasser se deixar morrer.
Actualmente a viver em França, Satrapi, que frequentou o Liceu Francês de Teerão até 1980, tem uma formação cultural muito próxima cultura francesa, incluindo no campo da BD. Também aqui as referências de Satrapi são francesas especialmente David B. e os autores da editora francesa L’Association, o que é natural pois para além de não existir tradição de BD no Irão, a autora partilhou o atelier com Cristophe Blain (o autor de “Isaac, o Pirata”, cuja namorada da altura era a melhor amiga de Marjane), Emmanuel Guibert, Joann Sfar e o próprio David B., que a encorajou a passar a sua vivência ao papel e assina a introdução do primeiro volume da edição original francesa de Persépolis. Muito longe de ter o virtuosismo de David B., um mestre do preto e branco, Satrapi defende-se ainda assim bastante bem, graças a um grafismo muito depurado e quase Naif mas de grande eficácia narrativa, servido por um preto e branco contrastado, que guia o olhar do leitor para o que é essencial. Um estilo que se mantém reconhecível em Frango com Ameixas, embora com evidentes melhorias em termos de utilização da perspectiva.
O livro que chegará às bancas com o Público na próxima quinta-feira e que venceu o prémio de melhor álbum no Festival de Angoulême de 2005 e foi adaptado ao cinema pela própria Satrapi em 2011, num filme com a portuguesa Maria de Medeiros no elenco, conta a história de Nasser Ali Khan, tio-avô de Marjane, um famoso músico que viveu no Irão de 1958. Na sequência de uma discussão familiar, o seu tar, o instrumento de que é virtuoso e que é o seu bem mais precioso, é partido. Nenhum outro tar o irá satisfazer e Nasser vai perder o gosto pela música. Tomado de uma melancolia imensa, decide deixar-se morrer, levando-nos numa viagem às suas emoções, aos seus sonhos e à sua história pessoal, que se mistura com a do seu Irão natal num período conturbado da sua história.
Se em Persépolis a realidade histórica é o fulcro da narrativa, aqui é apenas o ponto de partida, pois como a autora confessa a propósito do tio-avô: “dele, tudo o que vi, foi uma fotografia de família em que ele tinha um ar tão romântico e evocativo e, ao mesmo, muito intenso e muito belo... e sabia que tinha sido um grande músico e tinha morrido de tristeza. Só isso.” E “isso” é o ponto de partida para uma narrativa fascinante, que mistura sonho e realidade, história e ficção, amor e sofrimento e em que cada história contém em si outras histórias.
Publicado originalmente no jornal Público de 06/07/2019

quinta-feira, 11 de julho de 2019

Os Caçadores de Tesouros em destaque na apresentação da colecção Novela Gráfica


OS CAÇADORES DE TESOUROS EM DESTAQUE 
NA APRESENTAÇÃO DA COLECÇÃO NOVELA GRÁFICA 2019

Com moderação de Helena Pereira, editora do Público, o auditório do jornal recebeu na passada quarta-feira, 3 de Julho, a apresentação da colecção Novela Gráfica de 2019. Aposta arriscada, como alguns editores concorrentes fizeram questão de referir na altura, a Novela Gráfica soube conquistar um público próprio, mais alargado do que os habituais coleccionadores de Banda Desenhada e também mais diversificado em termos de género. 
Foi esta história de cinco anos que, a editora da Levoir, Sílvia Reig, e o autor deste texto, evocaram, satisfazendo a curiosidade dos interessados quanto ao critérios de selecção das diferentes colecções que, partindo de uma lista inicial de mais de uma trintena de títulos, a que se estão sempre a juntar novos títulos, tem permitido lançar ao logo dos últimos cinco anos, colecções anuais  de 12 a 15 volumes, onde clássicos incontornáveis como Mort Cinder, de Oesterheld e Breccia, V de Vingança, de Alan Moore e David LloydUm Contrato com Deus, de Will Eisner, Foi Assim a Guerra das Trincheiras, de Tardi, O Diário do Meu Pai, de Taniguchi, ou Sharaz’De, de Toppi, convivem lado a lado com títulos mais recentes, de autores contemporâneos, principalmente espanhóis, que a colecção deu a conhecer aos leitores, com o sucesso que conhecemos.  Mesmo autores, como Paco Roca, ou Jiro Taniguchi que objectivamente já tinham trabalho publicado em Portugal, foi através da colecção Novela Gráfica que se tornaram verdadeiramente populares junto dos leitores portugueses. Outro aspecto abordado, foi a ausência de autores portugueses a partir da segunda série, o que se deve sobretudo à inexistência de propostas inéditas de autores nacionais que se encaixem nos critérios da colecção.
Marcada pela diversidade, de formatos (respeitando sempre o formato original de publicação, algo que causou alguma estranheza inicial aos leitores, mas que foi rapidamente vencida), de temas, de registos gráficos, de nacionalidades, a colecção Novela Gráfica é um bom exemplo de liberdade e de versatilidade. Liberdade e versatilidade que a linguagem da arte sequencial permite. Arte sequencial foi um termo utilizado por Will Eisner, autor que, com Contrato com Deus - título que, não por acaso, inaugurou a primeira colecção, em 2015 - também ajudou a vulgarizar o termo Graphic Novel, que numa tradução mais literal do que exacta, deu origem à Novela Gráfica, expressão usada tanto em Portugal, como em Espanha e no Brasil.
Naturalmente, esta quinta série reflecte essa aposta firme na liberdade e na diversidade, juntando clássicos como Frango com Ameixas,de Marjane SatrapiGoradze: área de Segurança, de Joe SaccoA Febre de Urbicanda, de Schuiten e Peeters, ou  Como uma Luva de Ferro Forjada em Aço,  de Daniel Clowes, a títulos extremamente recentes como O Tesouro do Cisne Negro, de Paco Roca e Guillermo Corral, ou Neve nos Bolsos, de Kim e obras estética e narrativamente mais arriscadas como O Número 73304-23-4153-6-96-8, de Thomas Ott, uma história inteiramente sem palavras ilustrada usando a técnica da grattage, que assinala a estreia em Portugal do autor suíço
Aproveitando o facto de O Tesouro do Cisne Negro, de Paco Roca e Guillermo Corral, título que abre esta colecção, ser inspirado em factos reais, presenciados pelo próprio Corral, mais concretamente no caso verídico, cujos desenvolvimentos o Público acompanhou, da fragata espanhola Nuestra Señora de las Mercedes, afundada no século XVII em águas territoriais portuguesas, junto à costa algarvia, que foi saqueada pela empresa americana Odyssey, liderada pelo conhecido caçador de tesouros Greg Stemm, a apresentação da colecção foi pretexto para uma interessantíssima conversa sobre as ameaças ao património subaquático, com Alexandre Monteiro, arqueólogo e Investigador da Universidade Nova de Lisboa (que prefaciou a edição portuguesa de O Tesouro do Cisne Negro ) e Paulo Costa, Investigador do Instituto de História Contemporânea.
Alexandre Monteiro explicou o método de funcionamento destas empresas de caçadores de tesouros, que quando descobrem um achado vão lá e destroem todo o contexto, aspirando literalmente os destroços, porque só lhes interessam mesmo os objectos de valor. Estas são empresas cotadas em bolsa, que mais do que dos tesouros que conseguem encontrar/pilhar, vivem do investimento dos seus accionistas - que adiantam dinheiro com mira nos lucros de tesouros fabulosos, que normalmente não passam de miragens - e que se aproveitam da fraqueza dos Estados com quem negoceiam.
A esse respeito, a situação que se passou em Cabo Verde é exemplar: “uma dessas empresas estabeleceu um protocolo como Governo, segundo o qual ficariam com todos os objectos descobertos repetidos, como moedas, mas deixando aos países a possibilidade de guardar os itens únicos. Só que, e é aqui onde está o truque, ressalvando a possibilidade de lhes cobrar a despesa de retirar esse objecto do fundo do mar. Na prática, quando no naufrágio de Passa Pau foi descoberto um astrolábio seiscentista banhado a prata e o Estado o quis guardar, apresentaram uma despesa de várias centenas de milhares de dólares. O resultado foi que o instrumento acabou vendido pela Sotheby’s, sem qualquer benefício para o país.”
Como explicou Paulo Costa, no caso dos navios de guerra do século XX, afundados durante as duas Guerras Mundiais, o que interessa aos caçadores de tesouros já não é o conteúdo dos navios, mas sim o seu metal, que por estar submerso antes do início da era atómica, em 1945, não tem vestígios de radiação, o que torna esse metal mais valioso.
Enquadrada com a realidade, a história contada por Roca e Corral ganha outra pertinência, até porque o que se passou com a Nuestra Señora de las Mercedes, ameaça repetir-se em 2019 com a nau Santa Rosa, uma embarcação portuguesa de 66 canhões, carregada com dezenas de toneladas de ouro, afundada em 1726, com 700 portugueses a bordo, que se encontra em águas territoriais brasileiras, ao largo do Cabo Santo Agostinho, Pernambuco. Um navio já localizado em 1998, mas que só agora, com a subida de Bolsonaro ao poder, o Governo brasileiro concedeu autorização à Odyssey, a Ithaca do Cisne Negro para operações de resgate deste navio português.
Resta esperar que o Governo português mostre a mesma coragem com a Santa Rosa que o Governo Espanhol demonstrou com a Nuestra Señora de las Mercedes. Embora a situação seja bastante melhor, desde que em 1997, Manuel Maria Carrilho revogou a lei promulgada por Santana Lopes, que abria a porta à concessão de partes da costa a empresas privadas para levantar naufrágios históricos e nesse mesmo ano foi criada uma lei para a arqueologia subaquática, que permitiu a Portugal ser um dos primeiros países a aderirem à Convenção da UNESCO para Protecção do Património Cultural Subaquático, a falta de meios continua a ser gritante.
Publicado originalmente no jornal Público de 11/07/2019 

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Novela Gráfica V 1 - O Tesouro do Cisne negro


PACO ROCA REGRESSA NO ARRANQUE 
DA QUINTA SÉRIE DA NOVELA GRÁFICA

Novela Gráfica V
Vol 1
O Tesouro do Cisne Negro
Argumento - Guillermo Corral Van Damme
Desenhos – Paco Roca
Quinta-feira, 04 de Julho
Por + 10,90 €
O Verão já está aí e, mesmo que o sol esteja ainda algo tímido, para os leitores do Público está época do ano tornou-se sinónimo de Novela Gráfica. Assim, e pelo quinto ano consecutivo as Novelas Gráficas regressam com uma nova série de treze títulos, cujo primeiro volume chega aos quiosques de todo o país já na próxima quinta-feira, 4 de Julho.
Para abrir esta quinta série não poderia haver título melhor do que O Tesouro de Cisne Negro, o mais recente livro de Paco Roca, um dos nomes maiores da novela gráfica espanhola contemporânea.
Autor completo, o criador de A Casa, Rugas, O Inverno do Desenhador e Os Trilhos do Acaso, desta vez divide tarefas com o diplomata e escritor Guillermo Corral para contar em Banda Desenhada uma história inspirada em factos reais, presenciados pelo próprio Corral. Com efeito, a história do tesouro do navio Cisne Negro, nome que se dá aos navios afundados descobertos com a sua carga intacta, descoberto pela empresa Ithaca, dirigida por Frank Stern, um ex-agente da bolsa convertido em caçador de tesouros e da luta que o Estado espanhol travou em tribunal para recuperar esse espólio, é, como revela o arqueólogo subaquático Alexandre Monteiro no interessantíssimo prefácio, claramente inspirada no caso real da fragata espanhola Nuestra Señora de las Mercedes, afundada em águas territoriais portuguesas, junto à costa algarvia, que foi saqueada pela empresa americana Odyssey, liderada pelo conhecido caçador de tesouros Greg Stemm.
Se a subtil mudança de nomes é justificada por razões legais, a identificação entre a história (muito bem) contada por Roca e os acontecimentos reais que envolveram a profanação dos destroços da Nuestra Señora de las Mercedes é perfeitamente óbvia e transparente, consistindo em mais um motivo de interesse suplementar para a leitura deste livro. Não é que o Tesouro do Cisne Negro precisasse disso, pois estamos perante uma história absolutamente fascinante, que se lê de um fôlego, com imenso prazer e que daria uma bela série de televisão, o que, tudo indica, irá mesmo acontecer, pois a editora Astiberri já vendeu os direitos audiovisuais a uma produtora espanhola.
Em termos visuais e narrativos, Paco Roca dá mais uma demonstração do seu virtuosismo, alternando um registo mais tradicional, com imagens com mapas e esquemas que permitem uma mais fácil apreensão da informação, ou na parte em que se relatam as circunstâncias em que La Merced foi afundada pela marinha britânica, a BD dá lugar a um  texto acompanhado por desenhos clássicos de página inteira, que nos remetem para os livros de aventuras do século XIX.
Mas, naturalmente, O Tesouro do Cisne Negro está longe de ser o único motivo de interesse desta colecção. Uma colecção onde há lugar para oito títulos de autores que se estreiam na colecção do Público e da Levoir. Autores incontornáveis, como Marjane Satrapi, com o seu Frango com Ameixas, Daniel Clowes com o surreal e “lynchiano” Como uma Luva de Veludo Forjada em Ferro, Joe Sacco, com Goradze: área de Segurança, Grant Morrison e Frank Quitelly com Flex Mentallo Schuiten e Peeters com A Febre de Urbicanda, um dos títulos mais emblemáticos da série As Cidades Obscuras e outros menos conhecidos dos leitores portugueses, como Guillem March e Thilde Barboni, com o sensual Monika, Thomas Ott com o inovador O Número 73304-23-4153-6-96-8 e Luís Férrer Ferrer e o veterano Juan Escandell com Dias Sombrios.
A par destas estreias, temos o regresso de um punhado de autores espanhóis já com presenças em colecções anteriores, como Kim, que depois das colaborações com Antonio Altarriba, surge agora como autor completo com Neve nos Bolsos, El Torres, o escritor de O Fantasma de Gaudi, que agora se junta ao ilustrador Carlos Hernández para seguir O Rasto de Garcia Lorca e o desenhador Bartolomé Seguí (Histórias do Bairro e A Tatuagem) que agora se junta a Filipe Hernandéz Cava, em As Serpentes Cegas, título vencedor do Prémio Nacional del Comic espanhol, em 2009. Em suma, treze boas razões para entre 4 de Julho e 26 de Setembro, estar bem atento aos quiosques.
Publicado originalmente no jornal Público de 04/07/2019

terça-feira, 2 de julho de 2019

Apresentação da colecção Novela Gráfica 2019

CINCO ANOS DA NOVELA GRÁFICA NO PÚBLICO

Tudo começou em 2015, com a publicação pelo Público, em colaboração com a Levoir, da primeira Colecção dedicada à Novela Gráfica. Uma aposta inovadora, num estilo de Banda Desenhada com um pendor mais literário, longe das características bem codificadas das anteriores colecções de BD franco-belga e Comics de super-heróis que o jornal Publico vinha editando desde 2003.
Iniciada, naturalmente, com Um Contrato com Deus, de Will Eisner, título que muitos consideram como o fundador do género, esta colecção podia ser perfeitamente definida por um único termo: liberdade. Liberdade temática, de registo gráfico, de formato, de número de páginas, numa utilização plena das imensas possibilidades da Banda Desenhada para fazer aquilo que os autores melhor sabem e querem fazer: contar histórias. Histórias que podiam ser autobiográficas, adaptações de obras literárias, biografias, de terror, de fantasia, de crítica social, de guerra, poéticas, ou profundamente humanas. Tudo dependia da vontade e do talento dos autores.
Autores vindos dos quatro cantos do Planeta, numa demonstração de diversidade, que ficou bem patente logo na primeira série, que incluía americanos como Eisner e Crumb, franceses como Moebius, Baudoin e Tardi, sul-americanos como Jodorowsky, Oesterheld, Breccia e Danilo Beiruth, espanhóis como Altarriba e Kim, para além do português Miguel Rocha, do suíço Cosey e do japonês Taniguchi, com estes dois últimos a repetirem presença em posteriores colecções, como de resto aconteceu também com Moebius, Tardi, Altarriba e Kim.
O sucesso junto dos leitores – que não se limitou aos coleccionadores habituais de BD, ajudando a criar um novo tipo mais alargado de público com interesses culturais mais abrangentes - e o reconhecimento traduzido pelos prémios atribuídos pelos principais eventos nacionais de BD, como o Festival da Amadora e a Comic Con, mostraram que esta era uma aposta certa e com futuro. Por isso, ao longo das colecções seguintes manteve-se a aposta na diversidade e na qualidade, recuperando clássicos como Mort Cinder, de Orsterheld e Breccia, V de Vingança, de Alan Moore e David Lloyd (que esteve em Lisboa para o lançamento do livro), Ronin, de Frank Miller, Aqui Mesmo, de Tardi e Forrest e O Último Recreio, de Altuna e Trillo, ao mesmo tempo que se mostrava aos leitores a extraordinária pujança da actual Novela Gráfica espanhola, bem representada em autores que se tornaram recorrentes nestas colecções, como Paco Roca, Kim, Miguelanxo Prado e Bartolomé Seguí.
Mas a aposta na Novela Gráfica não se ficou por estas colecções anuais. Está também patente em títulos pontuais, como A Casa, de Paco Roca, ou a biografia de Billie Holliday, de Munõz e Sampayo, entre outros. Além disso, inspirados pelo sucesso das colecções do Público e da Levoir, a maioria das editoras generalistas, incluindo aquelas com pouca ou nenhuma tradição na edição de BD, como a Porto Editora e a Relógio de Água, começaram também a publicar Novelas Gráficas, termo que já está perfeitamente enraizado no vocabulário dos leitores.
Na colecção de 2019, onde os autores em estreia são mais do que os que regressam, mantém-se a aposta na diversidade, bem patente no facto de albergar autores de sete nacionalidades diferentes, dois dos quais são mulheres. Uma presença feminina que acontece pela segunda vez, depois de Zeina Abirached na Colecção de 2016. E se em termos de género há uma evidente melhoria em relação às colecções anteriores, em termos de nacionalidades, para além de diversos autores espanhóis e americanos, temos uma iraniana e uma belga, um francês, um suíço, um belga e dois escoceses.
A abrir a Colecção, temos o regresso de um dos mais populares e prestigiados autores espanhóis da actualidade, que esta colecção ajudou a tornar conhecido dos leitores portugueses, Paco Roca, com o seu mais recente livro, O Tesouro do Cisne Negro, uma história inspirada no caso real da pilhagem dos destroços de um galeão espanhol afundado no século XVIII ao largo do Algarve. Mas Paco Roca não é o único regresso - num alinhamento onde não faltam as estreias, que serão objecto de análise num texto à parte. Também de volta está El Torres, o argumentista de O Fantasma de Gaudí, presente com O Rasto de Garcia Lorca, uma biografia do poeta, visto por aqueles que o conheceram e ilustrada por Carlos Hernandéz.
Outro regresso é o de Bartolomé Seguí, desenhador de Histórias do Bairro e Tatuagem, que agora, ao lado do escritor Felipe Hernandéz Cava assina As Serpentes Cegas, um policial negro passado em Nova Iorque, com a Guerra Civil espanhola como pano de fundo, que valeu à dupla o Prémio Nacional del Comic em 2009. Igualmente de retorno está Kim, o desenhador de A Arte de Voar e A Asa Quebrada, mas que desta vez não conta com a presença de António Altarriba, seu cúmplice habitual, aventurando-se a solo com Neve nos Bolsos, um relato autobiográfico sobre a sua experiência com imigrante na Alemanha durante os anos 60.
Finalmente, Alfonzo Zapico, o autor de Gente de Dublin, a biografia de James Joyce que foi um dos grandes sucessos da colecção de 2018, está de volta com Café Budapeste, uma história tocante sobre a convivência entre árabes e judeus na cidade de Jerusalém, antes e depois do reconhecimento do Estado de Israel.


AUTORES EM ESTREIA NESTA QUINTA SÉRIE

Se, com a honrosa excepção de A Febre de Urbicanda todos os restantes títulos desta quinta colecção são inéditos em Portugal, isso não invalida que alguns dos seus autores sejam velhos conhecidos dos leitores portugueses, mesmo que só agora se estreiem na colecção Novela Gráfica.
É o caso da autora e realizadora Marjane Satrapi, bem conhecida por Persépolis, a sua autobiografia em BD e que chega ao catálogo da Levoir com Frango com Ameixas, obra baseada na história de um seu tio-avô e que, tal como Persépolis, também teve direito a uma adaptação cinematográfica, que contou com a portuguesa Maria de Medeiros como protagonista. O mesmo sucede com a dupla Schuiten e Peeters, cuja série As Cidades Obscuras teve a maioria dos seus títulos editados em Portugal, onde os seus autores já estiveram por diversas vezes, mas raros são os que se encontram ainda disponíveis. Não é o caso de A Febre de Urbicanda, um dos títulos mais emblemáticos da série, premiado em Angoulême em 1985, esgotado em Portugal há mais de 20 anos e que agora regressa numa cuidada edição definitiva, com dezoito páginas inéditas.
Bem conhecidos dos leitores e com vasta presença no catálogo da Levoir, são Grant Morrison e Frank Quitely, autores de WE3 e All Star Superman, que se estreiam na colecção de 2019 com Flex Mentallo: Herói do Mistério, uma reflexão sobre os super-heróis com um toque meta narrativo, tão característico de Morrison.
Igualmente com obra publicada em Portugal, estão os americanos Daniel Clowes e Joe Sacco. O primeiro, autor do livro Mundo Fantasma – que deu origem a um filme protagonizado por Scarlett Johansson - apresenta-se nesta colecção com uma das suas obras mais emblemáticas, o surreal e “lynchiano” Como uma Luva de Veludo Forjada em Ferro história pré-publicada em capítulos na revista Eightball, que valeu a Clowes o Eisner de Melhor Escritor/Artista em 200 e 2002. Já o segundo, autor de Palestina, está presente com Goradze: Área de Segurança, mais uma das suas reportagens de guerra, género de que é claramente o nome mais representativo, desta vez sobre o conflito na ex-Jugoslávia.
Resta falar dos autores que têm a sua estreia absoluta em Portugal nesta colecção. Por ordem de entrada em cena na colecção, temos Guillem March, autor espanhol com trabalho publicado no mercado francês e americano, onde trabalhou em vários títulos do universo Batman, que se estreia com Monika, um sensual triller psicológico, escrito pela escritora belga Thilde Baroni, que assim entrou de forma fulgurante na BD.
Estreia absoluta – em todos os sentidos – é a do suíço Thomas Ott com O Número 73304-23-4153-6-96-8, primeiro título completamente sem diálogos nestes cinco anos de história da colecção Novela Gráfica (O Idiota, de André Diniz, esteve lá perto…) e que foi também a primeira novela gráfica de fôlego de um autor especializado em histórias curtas, que é também músico e cineasta e que, utilizando a técnica de grattage – em que o desenho é raspado sobre uma página coberta de tinta negra, criando uma imagem em negativo -  cria páginas únicas e de grande impacto visual e narrativo.
Finalmente, Dias Sombrios assinala a estreia em Portugal de uma figura histórica da BD espanhola do século XX. O veterano Juan Escandell, autor com uma carreira de mais de cinquenta anos, pertencente à mítica escola da editora Bruguera – companhia que esteve em destaque no livro O Inverno do Desenhador, de Paco Roca- e que trabalhou com Victor Mora em Capitan Trueno e que aqui ilustra um romance do seu conterrâneo Lluís Ferrer Ferrer, baseado no caso real de um avião alemão abatido ao largo de Ibiza em 1944.


CINCO TEMAS EM DESTAQUE

Nesta quinta colecção de Novelas Gráficas, são também cinco os temas em que se podem encaixar os títulos que a compoem, mesmo que essas categorias, como veremos, não sejam exactamente estanques.
BIOGRAFIA – Nesta categoria enquadra-se, naturalmente, No rasto de García Lorca, de El Torres e Carlos Hernández, em que momentos-chave da vida do malogrado poeta, são narrados na perspectiva de quem os testemunhou, como peças de um puzzle que juntas, traçam a imagem de um homem singular. Também Frango com Ameixas, de Marjane Satrapi, para além da dimensão autobiográfica, não deixa de ser uma biografia do tio-avô da autora, o músico Nasser Ali, mesmo que se centre mais na sua morte, do que propriamente na sua vida.

CRIAR NOVOS MUNDOS – É o que fazem Grant Morrison e Frank Quitelly em Flex Mentallo, em que heróis e vilões desenhados por uma criança ganham vida num mundo distópico, mas com grandes semelhanças com o que conhecemos. Uma ligeira extrapolação também presente em Monika, de Tilde Barboni e Guillem March, em que problemas bem reais como o terrorismo religioso, convivem com elementos de ficção científica, como um androide que adquire consciência própria. Mas o exemplo mais óbvio dessa criação de novos mundos é A Febre de Urbicanda, de Benoit Peeters e François Schuiten, magnífica porta de entrada para o universo das Cidades Obscuras, mundo utópico com grandes semelhanças e pontos de passagem com o nosso, mas em versão steampunk e com uma série de cidades-estado em que a arquitectura condiciona a todos níveis, a própria cidade, o dia-a-dia dos seus habitantes e a evolução da própria história.

BASEADO EM FACTOS REAIS – O melhor exemplo possível de uma história baseada em factos reais, é O Tesouro do Cisne Negro, de Guillermo Corral e Paco Roca, que parte da pilhagem de um galeão espanhol, naufragado na costa portuguesa, por parte de uma empresa americana de caçadores de tesouros, para, mudando os nomes dos protagonistas e do próprio barco, contar uma  história fascinante, em que, qualquer semelhança com a realidade é bem mais do que uma simples coincidência…   Também Dias Sombrios, de Lluís Ferrer Ferrer e Juan Escandel parte de um facto histórico, o derrube de um avião alemão em frente a Portinatx, perto de Ibiza, nas Ilhas Baleares, para criar uma história de ficção que extrapola sobre o destino do seu piloto.
Obviamente também baseado em factos reais é Neve nos Bolsos o relato autobiográfico de Kim, sobre a sua experiência pessoal como imigrante na Alemanha, que nos conta não só a sua própria vivências, mas as experiências de muitos outros imigrantes com quem se cruzou.

REPORTAGEM DE GUERRA – Melhor exemplo possível de reportagem de guerra é Goradze: Área de Segurança, assinado por Joe Sacco, o maior nome a nível mundial neste registo. Embora se trate claramente de uma obra de ficção, Café Budapeste, de Alfonzo Zapico, pela forma rigorosa e bem documentada como descreve as tensões étnicas e religiosas que afectaram o dia-a-dia dos habitantes de Jerusalém, após o reconhecimento do estado de Israel, também se pode enquadrar nesta categoria, pois todos sabemos como esses ódios e tensões contribuíram para um estado de guerra que se mantém aceso até hoje, o mesmo sucedendo, de certo modo, com Dias Sombrios, que parte de um acontecimento real da II Guerra Mundial, para construir uma história de ficção.. 

REINVENÇÃO DE GÉNEROS CLÁSSICOS – Nesta colecção não faltam exemplos como um género perfeitamente codificado como o policial negro, pode ser reinventado das mais diversas maneiras. Veja-se As Serpentes Cegas, de Filipe Harnandéz Cava e Bartolomé Seguí, em que uma história de gangsters em Nova Iorque serve para falar da realidade da Guerra Civil espanhola. Também Como Uma Luva de Veludo Forjada em Ferro, parte de uma estrutura vagamente policial, para uma perturbadora e surreal viagem ao lado mais sombrio do ser humano. Finalmente, também O Número 73304-23-4153-6-96-8, de Thomas Ott utiliza o registo policial como ponto de partida de uma história estética e narrativamente inovadora.


A COLECÇÃO

1 – O Tesouro do Cisne Negro
04 de Julho
Argumento – Guillermo Corral Van Damme
Desenhos –Paco Roca
Maio de 2007. A principal empresa de caçadores de tesouros do mundo anuncia a descoberta, em águas do Atlântico, do maior tesouro submarino jamais encontrado. De acordo com a escassa informação difundida o tesouro provêm de um misterioso navio, o Cisne Negro.
No entanto, indícios apontam para que se trate na realidade de uma fragata espanhola afundada. Começa assim uma fascinante trama jurídica e política, cujas origens remontam a acontecimentos ocorridos há muitos séculos, na qual um pequeno grupo de funcionários estatais vai lutar na defesa da história e do património.
Inspirado em factos reais, presenciados pelo argumentista Gullermo Corral, o novo livro de Paco Roca é mais um exemplo do talento e versatilidade deste autor.

2 – Frango com Ameixas

11 de Julho
Argumento e Desenhos – Marjane Satapri
Nasser Ali Khan é um famoso músico que vive no Irão de 1958. Na sequência de uma discussão familiar, o seu tar, o instrumento de que é virtuoso e que é o seu bem mais precioso, é partido. Nenhum outro tar o irá satisfazer e Nasser vai perder o gosto pela música. Tomado de uma melancolia imensa, decide deixar-se morrer, levando-nos numa viagem às suas emoções, aos seus sonhos e à sua história pessoal, que se mistura com a do seu Irão natal num período conturbado da sua história.
Em Frango com Ameixas, livro vencedor do prémio de Melhor Álbum de Angoulême em 2005, Marjane Satrapi parte da história real do seu tio-avô para construir uma ficção fascinante..

3  – A Febre de Urbicanda
18 de Julho
Argumento – Benoit Peeters e François Schuiten
Desenhos – François Schuiten
Eugen Robick, o urbitecto responsável pelo plano de urbanização que pretende restituir a simetria à cidade de Urbicanda, é confrontado com a descoberta de um misterioso cubo, feito de uma matéria desconhecida, cujo crescimento geométrico vem perturbar e transformar profundamente a imagem da própria cidade e a vida dos seus habitantes.
Reflexão fascinante sobre arquitectura e poder e um verdadeiro tratado sobre a narrativa sequencial, as Cidades Obscuras, de Schuiten e Peeters, são uma série incontornável da Banda Desenhada franco- belga, que tem na Febre de Urbicanda um dos seus títulos seminais, vencedor do prémio de Melhor Livro, No Festival de Angoulême de 1985.

4 – O Rasto de García Lorca
25 de Julho
Argumento – El Torres 
Desenhos – Carlos Hernández
Através de histórias reais e testemunhos sobre o genial poeta, nesta novela gráfica descobrimos a marca deixada por Federico Lorca em todos os que com ele conviveram nos locais por onde passou: cidades como Granada, Madrid, Havana ou Nova Iorque. El Torres, o premiado argumentista de O Fantasma de Gaudi, alia-se ao ilustrador Carlos Hernández para reconstruir de forma tão subtil como marcante, a figura de Lorca através do olhar de quem partilhou a vida e a morte do poeta.

5 –Monika
01 de Agosto
Argumento – Thilde Barboni 
Desenho – Guillem March
Monika, uma artista visual e performer, concorda em esconder Theo, um brilhante inventor prestes a construir um cobiçado andróide. Com a ajuda do seu amigo hacker, Monika investiga o desaparecimento da sua irmã. Ela é então arrastada para o submundo das "bailes mascarados", onde conhece e seduz Christian Epson, um carismático político que foi o último homem a ver Erika, a irmã desaparecida, cujo envolvimento com um grupo terrorista vai colocar em perigo a vida de Monika. Um triller movimentado e sensual, magnificamente ilustrado por Guillem March.

6 – Gorazde: Zona de Segurança
08 de Agosto
Argumento e Desenho – Joe Sacco
No final de 1995 e início de 1996, o repórter e autor de BD Joe Sacco viajou quatro vezes para Gorazde, uma área segura designada pela ONU durante a Guerra da Bósnia, que estava à beira da destruição por três anos e meio. Ainda cercados por forças sérvias da Bósnia, o povo maioritariamente muçulmano de Gorazde sofrera pesados ataques e severas privações para manter sua cidade, enquanto o restante do leste da Bósnia era brutalmente "purificado" de sua população não-sérvia. Desde que foi publicado pela primeira vez em 2000, Gorazde: Zona de Segurança foi reconhecido como um dos clássicos absolutos da novela gráfica de reportagem.

07 –Flex Mentallo: Herói do Mistério
15 de Agosto
Argumento – Grant Morrison
Desenhos – Frank Quitely
Antes ele era Herói da Praia ... e da Patrulha do Destino. Agora Flex Mentallo, o Homem do Mistério Muscular, regressa para investigar as relações sinistras de seu ex-companheiro, The Fact, e um misterioso astro do rock cuja conexão com Flex pode ser a chave para salvar os dois. Depois de reformular a Patrulha do Destino, na série da Vertigo que influenciou a actual série televisiva, Morrison junta-se ao seu habitual cúmplice Frank Quitelly, para explorar a história de um dos seus mais carismáticos elementos, Flex Mentallo.

08 – Dias Sombrios
22 de Agosto
Argumento – Lluís Ferrer Ferrer
Desenhos – Juan Escandel
Em 10 de janeiro de 1944, durante uma batalha aérea sobre a ilha de Ibiza, um avião britânico Bristol Beaufighter derrubou uma aeronave alemão Junkers Ju 88 que finalmente caiu na costa ao norte de Portinatx. Com base neste acontecimento real, o escritor Lluís Ferrer Ferrer construiu uma história de ficção, que anos mais tarde o veterano desenhador Juan Escandell, um dos nomes mais importantes da escola Bruguera, adaptou à Banda Desenhada nesta Novela Gráfica.

09 – Como uma Luva de Veludo Forjada em Ferro
29 de Agosto
Argumento e Desenhos – Daniel Clowes
Clay, o protagonista de Como uma Luva de Veludo moldada em Ferro parte em busca de produtores de um filme pornográfico em que pensou reconhecer a sua esposa, desaparecida alguns anos antes.
Com esta simples premissa como ponto de partida, Daniel Clowes constrói um road movie cerebral, que elimina qualquer fronteira entre o pesadelo e a realidade.
Nesse caos nocturno, Clowes leva o leitor a vislumbrar a sombra fugidia e arrepiante de um horror íntimo e universalmente compartilhado. Um dos mais importantes e perturbadores livros de um dos nomes maiores dos comics alternativos americanos.

10– As Serpentes Cegas
29 de Agosto
Argumento -  Filipe Harnandéz Cava
Desenho – Bartolomé Segui
Nova Iorque, 1939. Um homem misterioso instala-se num pequeno hotel à procura de um certo Ben Koch, um espanhol que não respeitou um pacto. O dono da pensão, Red, diz que não tem notícias de Ben, o que o homem não acredita. Decide esperar por ele, acabando por descobrir que Koch foi visto  a destruir um túmulo com um martelo. Qual terá sido o motivo da fúria de Koch e onde se esconde ele? Duas perguntas para as quais o FBI também procura respostas...
Uma história de vingança com a Guerra Civil espanhola e a Grande Depressão em Nova Iorque como pano de fundo, vencedora do Prémio Nacional del Comic em 2009.

11 – O Número 73304-23-4153-6-96-8
12 de Setembro
Argumento e Desenho – Thomas Ott
Ao limpar a cela de um prisioneiro que foi condenado à morte e posteriormente executado, um guarda da prisão encontra um pequeno pedaço de papel com uma combinação de números. No calor do momento, ele guarda-o no bolso. Como o guarda vive uma vida solitária e monótona, os números no papel despertam sua curiosidade.
 Mas esses números, que primeiro lhe vão garantir uma sorte inesperada, acabam por se revelar uma maldição que o leva à loucura e à morte. Um triller surpreendente contado apenas pelo recurso às imagens, sem uma única linha de diálogo, por um dos mais singulares criadores da BD europeia, o suíço Thomas Ott.

12 – Neve nos Bolsos
19 de Setembro
Argumento e Desenhos – Kim
Em outubro de 1963, o jovem Joaquim Aubert, ainda não conhecido como Kim, pede boleia numa estrada no sul de França. Ele deixou seus estudos em Belas Artes e tem um ano para começar o serviço militar, tempo que vai aproveitar para ganhar a vida na Alemanha. Joaquim chega a terras germânicas como tantos outros espanhóis que atravessaram a Europa à procura de trabalho. Através dos seus olhos e das suas memórias, vamos descobrir a vida desses expatriados da Espanha franquista.
Kim, o desenhador de A Arte de Voar e A Asa Rasgada, traça-nos este retrato autobiográfico da sua ida para a Alemanha e das vivências de outros espanhóis que emigraram com o mesmo objectivo, ganhar a vida.

13 – Café Budapeste
26 de Setembro
Argumento e Desenhos – Alfonso Zapico
Yechezkel Damjanich é um jovem violinista judeu que abandona uma Budapeste devastada pela II Guerra Mundial para ir viver para Jerusalém, onde vive o seu tio Yossef. Fugindo da miséria, ambos chegam à Palestina num momento político convulsivo, pouco antes de os ingleses deixarem a região. O Tio Yosef dirige o Café Budapeste, um lugar pitoresco perto da Cidade Velha, onde judeus, árabes, ocidentais coexistem... Um oásis efémero de harmonia onde as notas do violino de Yechezkel vão dar lugar ao estrondo dos obuses de Davidka, bombas árabes, ódio e destruição.
Publicado originalmente no jornal Público de 29/06/2019