quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Novela Gráfica V 13 - Café Budapeste

Um pouco mais tarde do que o habitual, devido à minha ida ao Festival de Lodz (de que está prometido para aqui um punhado de imagens do evento e sobretudo, da magnífica exposição dedicada à DC Comics) aqui fica o último texto desta quinta série da colecção Novela Gráfica. só foi pena que, nos últimos dois números, o espaço disponibilizado pelo Público tenha sido tão reduzido, pois são dois livros, pois são dois livros que justificavam uma análise mais aprofundada.

BUDAPESTE EM JERUSALÉM 

Novela Gráfica IV – Vol. 13
Café Budapeste
Argumento e Desenhos – Alfonso Zapico
Quinta-feira, 26 de Setembro
Por + 10,90€
Na próxima quinta-feira chega ao fim a quinta série da colecção Novela Gráfica, com Café Budapeste, de Alfonso Zapico. Um fecho em beleza, com o regresso do autor de Gente de Dublin que, depois da biografia em BD do escritor James Joyce, retorna a esta colecção com uma história de ficção ancorada na criação do estado de Israel e nas raízes do conflito israelo-palestiniano.
Primeiro trabalho de Zapico publicado directamente no mercado espanhol, Café Budapeste acompanha o destino de Yechezkel Damjanich, um jovem violinista judeu que, juntamente com a sua mãe, uma sobrevivente do Holocausto, abandona uma Budapeste devastada pela II Guerra Mundial para ir viver para Jerusalém, onde vive o seu tio Yossef. Fugindo da miséria, ambos chegam à Palestina num momento político convulsivo, pouco antes de os ingleses deixarem a região. O tio Yosef dirige o Café Budapeste, um lugar pitoresco perto da Cidade Velha, onde judeus, árabes e ocidentais coexistem ... Um oásis efémero de harmonia onde as notas do violino de Yechezkel vão dar lugar ao estrondo dos obuses de Davidka, bombas árabes, ódio e destruição.
Neste ambiente de intolerância e violência, a paixão de Yechezkel por Yaiza, um jovem de origem árabe, enfrenta ainda maiores desafios. Mas isso não os impedirá de procurarem a felicidade, numa cidade em guerra, onde o Café Budapeste é um dos últimos espaços de paz e tolerância.
Alternando de forma hábil a realidade histórica - e as questões políticas e geoestratégicas inerentes à um dos momentos mais importantes da história do Século XX, a formação do estado de Israel, cujas consequências ainda hoje se fazem sentir na região - com os dramas pessoais de Yechezkel e da sua família, Zapico constrói uma história cativante, que é um hino à tolerância e à paz entre os homens, independentemente da etnia ou credo.
Publicado originalmente no jornal Público de 26/09/2019

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Com o Lisbon Studio, no Festival de Lodz


Casa de muitos autores portugueses que conseguiram dar uma dimensão internacional ao seu trabalho, o The Lisbon Studio (TLS) celebra essa vocação global com uma exposição inserida na  edição de 2019 do Festival de BD de Lodz, que decorre de 27 a 29 de Setembro, na Polónia.

Uma mostra com produção de José de Freitas, curadoria de Bruno Caetano e textos da minha autoria, que celebra o presente, mas também o passado do TLS, centrada nos originais dos quatro artistas que estarão presentes em Lodz, Marta Teives, Ricardo Cabral, João Tércio e Nuno Saraiva, mas que inclui também arte de outros doze ilustradores portugueses que, nos últimos 10 anos passaram pelo  The Lisbon Studio: Filipe Andrade, Jorge Coelho, Nuno Plati, Ricardo Tércio, Ricardo Venâncio, Joana Afonso, Bárbara Lopes, Dileydi Florez, Patrícia Furtado, Pedro Potier, Pedro Brito e Nuno Lourenço Rodrigues.
Um total de dezasseis ilustradores para representar um país através de uma exposição que será acompanhada pela edição, por parte da editora Timoft, de uma antologia concebida especialmente para o mercado polaco, que recolhe histórias publicadas originalmente na colecção TLS Series, que a Comic Heart e G Floy têm vindo a publicar.
Criado em 1991, o Festival de Lodz é o mais importante Festival de Banda Desenhada da Polónia e do Leste europeu. Um Festival com uma grande ligação a Portugal e à BD portuguesa, traduzida na presença regular de artistas portugueses, como foi o caso de André Lima Araújo em 2018, e em projectos como o City Stories - Lodz. Uma parceria entre a AmadoraBD e o Festival de Lodz, que passou pela colaboração entre artistas portugueses e polacos na realização de histórias inéditas, de que resultou um livro e uma exposição na edição de 2010, onde estiveram presentes os criadores portugueses Ricardo Cabral, Rui Lacas, Filipe Andrade e Filipe Pina que, não por acaso, passaram todos pelo TLS.
Eu estarei por lá, acompanhando os autores do TLS e para apresentar uma comunicação sobre a BD portuguesa e conto  trazer-vos aqui um punhado de imagens desta viagem ao Festival de Lodz.

terça-feira, 24 de setembro de 2019

Novela Gráfica V 12 - Neve nos Bolsos

UM ESPANHOL NA ALEMANHA

Novela Gráfica V – Vol. 12
Neve nos Bolsos
Argumento e Desenho – Kim
Quinta-feira, 19 de Setembro
Por + 10,90€
Kim, o desenhador de A Arte de Voar e A Asa Rasgada, duas magníficas novelas gráficas escritas por António Altarriba, regressa à colecção Novela Gráfica como autor completo com Neve nos Bolsos, um relato autobiográfico da sua ida para a Alemanha e das vivências de outros espanhóis que emigraram com o mesmo objectivo, ganhar a vida.
Foi em outubro de 1963 que o jovem Joaquim Aubert Puigarnau, ainda não conhecido como Kim, deixa seus estudos em Belas Artes e aproveita o ano que tem até começar o serviço militar, para ganhar a vida na Alemanha, como tantos outros espanhóis que atravessaram a Europa à procura de trabalho. Através dos seus olhos e das suas memórias, vamos descobrir a vida desses expatriados da Espanha franquista.
 Como o próprio Kim referiu numa entrevista: Esta novela gráfica surgiu devido a uma série de coincidências. Primeiro, porque tinha menos trabalho na revista El Jueves e muitas horas livres enquanto esperava que o Antonio Altarriba acabasse o argumento de A Asa Quebrada
Segundo, porque numa visita a Angoulême conversei com um rapaz alemão e contei-lhe essa viagem, que praticamente não tinha contado a ninguém. Tinha-a encerrada na memória e nem os meus melhores amigos. Quando ele me disse que na Alemanha já quase ninguém se recorda desses milhares de espanhóis que imigraram, percebi que tinha de contar essa história.”
Um processo quase catártico, que lhe permitiu recuperar um período importante, mas não particularmente feliz da vida de Kim e da história de Espanha: “Recordar esse ano que estive na Alemanha foi uma espécie de terapia para mim. Comecei a escrever a história na segunda pessoa, como se não fosse eu o protagonista. Mas quando mostrei umas quantas páginas a Altarriba e ele me disse que se notava que o protagonista era eu e me perguntou porque não escrevia na primeira pessoa, decidi fazê-lo”.
 “Não tenho uma memória alegre. Foi um ano bastante duro, como se pode ver no livro. Ainda assim, tive a sorte de privar com um grupo de gente jovem que tentava aproveitar a vida: ríamos, fazíamos festas... Mas a gente mais velha não saia nunca, passavam o dia a trabalhar e a pensar em Espanha. Escutavam constantemente a rádio espanhola e sonhavam com poder poupar dinheiro suficiente para poderem regressar. “
Publicado originalmente no jornal Público de 21/09/2019

domingo, 22 de setembro de 2019

Balada para Sophie - Novo livro de Melo e Cavia em 2020

Quem acompanha este Blog, sabe que não costumo fazer divulgação. Mas neste caso decidi abrir uma excepção para divulgar a primeira imagem/teaser de Balada para Sophie, o próximo livro de Filipe Melo e Juan Cavia. Um livro que tem tudo para ser o melhor livro de autores portugueses (não é erro, pois apesar de ser Argentino, o Juan Cavia adquiriu recentemente nacionalidade portuguesa) publicado em 2020.
O mais ambicioso trabalho da dupla, com quase 300 páginas (a última versão que li tinha 277 e o Filipe é conhecido por ir acrescentando coisas à história) deverá estar pronto em meados do próximo ano e a versão que li, com a planificação e diálogos terminados e bem mais de 100 páginas completamente desenhadas e uma meia centena já com as cores planas, não me deixa dúvidas de que estamos perante o melhor trabalho de Filipe Melo e Juan Cavia, o que tendo em conta o alto nível de Os Vampiros e de Comer/Beber, não é coisa pouca!
Centrada na rivalidade entre dois pianistas, Balada para Sophie é uma história simultaneamente épica e intimista. Uma grande história sobre música, escolhas e o mais que os leitores verão em 2020.

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Novela Gráfica V 11 - O número 73304-23-4153-6-96-8

AS SOMBRAS DE THOMAS OTT

Novela Gráfica V – Vol. 11
O Número 73304-23-4153-6-96-8
Argumento e Desenhos –– Thomas Ott
Quinta-feira, 12 de Setembro
Por + 10,90€
Em 1833, o suíço Rodolphe Topfer, um dos pioneiros da Banda Desenhada, definiu assim, numa carta ao seu amigo Goethe, a originalidade do trabalho que acabava de criar: “este pequeno livro é de uma natureza mista. É composto por uma série de desenhos autografados a traço. Cada um desses desenhos é acompanhado de uma ou duas linhas de texto. Os desenhos sem o texto, teriam um significado obscuro; o texto, sem os desenhos, não significaria nada. O conjunto dos dois forma uma espécie de romance, tanto mais original porque não se assemelha mais a um romance do que a qualquer outra coisa”. É justamente nessa articulação e diálogo entre o texto e o desenho que reside a força e a originalidade da linguagem da BD.
Mais de 150 anos depois, Thomas Ott, um compatriota de Topfer, que além de autor de BD e ilustrador é também vocalista de uma banda rock e cineasta, demonstra que é possível contar histórias em BD recorrendo apenas ao desenho. O Número 73304-23-4153-6-96-8, décimo primeiro volume da colheita de 2019 da colecção Novela Gráfica, utiliza o registo policial como ponto de partida de uma história estética e narrativamente estimulante, contada apenas pelo recurso às imagens, sem uma única linha de diálogo.
Não que Ott tenha inventado a “BD muda” (chamemos-lhe assim por uma questão de comodidade),  género com uma importante tradição que vai desde The City de Franz Masereel, até ao Arzach de Moebius, passando por títulos como Gon de Masashi Tanaka, ou a série Love, de Frédéric Brrémaud e Federico Bertolucci, entre (muitos) outros, mas usa-a com uma eficácia e elegância pouco habituais, muito por via da técnica do scratchboard, ou grattage, em que o desenho é raspado a branco numa folha previamente coberta de tinta-da-china, criando assim uma imagem em negativo, em que a luz rasga as sombras.
Nascido em 1996, em Berna, na Suiça, Ott estudou no Kunstgewerbeschule em Zurique, antes de começar a publicar em revistas independentes na segunda metade da década de 1980. Desde as suas primeiras histórias curtas, que o imaginário e a técnica que encontramos neste O Número 73304-23-4153-6-96-8, estão presentes. Como o próprio refere numa entrevista: “Desde criança, tenho pensamentos sombrios. No meu trabalho, preocupo-me com coisas que me deixam doente, que são muito sombrias. Quando vejo esboços que fiz aos dez anos, vejo as mesmas coisas: fantasmas e monstros. A temática do meu trabalho não mudou, apenas ficou mais específica.”
O mesmo pode ser dito em relação à técnica da grattage que se tornou a sua imagem de marca e que o próprio define “como estar num quarto preto e ir deixando lentamente entrar a luz”. Dando mais uma vez a palavra a Ott: “experimentei a técnica pela primeira vez quando era estudante de arte na Escola de Design de Zurique. Pensei em fazer apenas uma história usando essa técnica, mas a verdade é que a continuo a usar.”
O resultado desta obsessão são dezenas histórias sombrias, pequenos contos de crime e castigo, entre o terror e o policial, na linha da produção da mítica editora americana EC Comics, ambientados em cenários americanos típicos do filme noir. Pequenas pérolas de narrativa visual, publicadas em diversas revistas europeias e recolhidas posteriormente em livro. Livros como Tales of Error, Hellville, Tales from the Edge, ou Cinema Panopticum, publicados em editoras com o prestígio da L’Association, em França e da Fantagraphics nos Estados Unidos.
Primeira história de fôlego feita por Thomas Ott, O Número 73304-23-4153-6-96-8 é uma perturbadora narrativa circular que conta a história de um guarda da prisão que encontra um pequeno pedaço de papel com uma combinação de números, ao limpar a cela de um prisioneiro que foi condenado à morte e posteriormente executado. Como o guarda vive uma vida solitária e monótona, os números no papel despertam a sua curiosidade. Mas, tratando-se de uma história de Thomas Ott, esses números, que primeiro lhe vão garantir uma sorte inesperada, acabam por se revelar uma verdadeira maldição, conforme o leitor poderá ver/ler.
Publicado originalmente no jornal Público de 07/09/2019

domingo, 8 de setembro de 2019

Novela Gráfica V 10 - As serpentes Cegas




EXILADOS EM NOVA IORQUE

Novela Gráfica IV – Vol. 10
As Serpentes Cegas
Argumento – Felipe Hernández Cava
Desenhos – Bartolomé Segui
Quinta-feira, 29 de Agosto
Por + 10,90€
Mais   de 70 anos volvidos sobre o seu início, a Guerra Civil de Espanha deixou feridas ainda não completamente cicatrizadas. Se para muitos estrangeiros, de Hemingway a Hugo Pratt, aquela foi a “última guerra romântica”, para os espanhóis foi um momento de horror difícil de esquecer, até porque arrastaria consigo a longa ditadura franquista. Não admira, por isso, que seja um tema em destaque na Novela Gráfica espanhola contemporânea, como o provam títulos como Os Trilhos do Acaso e este As Serpentes Cegas. Vencedor do Prémio Nacional del Cómic em 2009, As Serpentes Cegas reúne o desenhador Bartolomé Segui - que os leitores do Público conhecem de Histórias do Bairro e da adaptação do romance Tatuagem, de Manuel Vazqués Montalbán, publicados em colecções anteriores - ao escritor Filipe Hernández Cava.

Formado em História de Arte e tendo trabalhado como guionista para televisão e como curador de exposições, Cava é um dos nomes principais da ascensão da BD de autor em Espanha após a morte de Franco, graças à sua participação no colectivo El Cubri, e ao seu trabalho como director editorial de dois títulos míticos da movida madrilena, as revistas Madriz e Médios Revueltos. Como argumentista, foi responsável por obras como a trilogia dedicada a Lope de Aguirre, desenhada por Enrique Breccia, Federico del Barrio e Ricard Castells, Las Memórias de Amorós, e O Artefacto Perverso, que era o único título seu editado em Portugal até agora.
Desenhado por Federico del Barrio, O Artefacto Perverso arrebatou os prémios de melhor álbum espanhol e de melhor argumento no Salão de Barcelona de 97 e foi a primeira reflexão importante de Cava sobre a Guerra Civil espanhola, embora a acção da história decorra no período imediatamente a seguir, no auge do Franquismo. Homenagem aos desenhadores da época de ouro do tebeo espanhol, e em especial a Vanó, o autor da série Roberto Alcazar yY Pedrín, O Artefacto Perverso era também uma interessante reflexão sobre a memória e uma arrojada experiência sobre o uso da BD como meta-linguagem, com o   traço versátil de del Barrio a adaptar-se de forma espantosa aos diferentes níveis da história, de um autor de BD que cala aquilo que vê e esconde aquilo que sente.
Menos experimental em termos estéticos, com um tratamento gráfico e um formato que remetem para a Banda Desenhada franco-belga clássica e um tratamento narrativo próximo do policial negro americano, com o uso da clássica narração na primeira pessoa, As Serpentes Cegas é o culminar das reflexões de Cava sobre a Guerra Civil espanhola, e aquele livro em que, continuando a ter a memória como tema dominante, a guerra está presente de forma mais directa. Obra que critica de forma dura os excessos cometidos em nome das ideologias, As Serpentes Cegas, reflecte a própria evolução de pensamento do seu autor, que afirmou numa entrevista : “antes acreditava que a verdade era sempre revolucionária, mas agora vejo que a verdade tem muitas zonas de sombra e eu gosto de me mover nessas zonas de sombra onde muito pouca gente se atreve a transitar.“Antes, acreditava que a verdade era sempre revolucionária, mas agora vejo que a verdade tem muitas zonas cinzentas, e a mim, dá-me gozo mover-me nessas zonas de sombra, pelas quais são poucos os que se atrevem a passar.”
História de vingança entre sobreviventes espanhóis da Guerra Civil, exilados em Nova Iorque, As Serpentes Cegas confirma Cava como um dos maiores argumentistas da No-vela Gráfica espanhola, mas também a importância de Bartolomé Segui como um dos grandes desenhadores da sua geração. O desenhador maiorquino declarou na entrevista para o catálogo da Exposição dedicada aos 10 anos do Prémio Nacional del Cómic que: “a nossa intenção não era fazer uma Banda Desenhada da Guerra Civil, mas sim aproveitar uma situação histórica concreta para fazer um comic que nos servia para falar de outras coisas: o fracasso das utopias, os “esquecidos” da História, etc...”.
Um objectivo cumprido com distinção, também muito por força da excelência do trabalho gráfico de Segui.
Publicado originalmente no jornal Público de 31/08/2019

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Novela Gráfica V 9 - Como uma Luva de Veludo Forjada em Ferro

O ESTRANHO MUNDO DE DANIEL CLOWES

Novela Gráfica V – Vol. 9
Como uma Luva de Veludo Forjada em Ferro
Argumento e Desenhos – Daniel Clowes
Quinta-feira, 29 de Agosto
Por + 10,90€
Depois de Marjane Satrapi e Schuiten e Peeters, eis mais um grande nome da BD mundial que regressa ao mercado editorial nacional através da colecção Novela Gráfica. Desta vez, o nome que confirma a excepcional qualidade desta colheita de 2019 é o norte-americano Daniel Clowes.
Nascido em Cicago em 1961, Clowes cresceu no meio de uma família ecléctica, que incluía um avô professor de História Medieval; um pai carpinteiro e construtor de móveis; um irmão hippie; um padrasto, dono de uma oficina de automóveis e corredor de stock cars, que morreu num acidente de carros quando Clowes tinha apenas cinco anos; e uma mãe, dona de casa, que se viu obrigada a tomar conta da oficina, após a morte do seu segundo marido.
Leitor de comics desde a infância, com gosto e jeito para o desenho, o jovem Daniel decidiu seguir uma carreira artística, tendo-se matriculado no Pratt Institute em Brooklyn, Nova Iorque, quando acabou o liceu em 1979. Foi no Pratt que econheceu e se fez amigo do desenhador Rick Altergott, com quem criou a pequena editora independente Look Mood Comics. É aí que Clowes se vai estrear como autor de BD, no nº 1 da revista Psycho Comics, em 1981. Os seus primeiros trabalhos profissionais para a revista Cracked ajudaram-no a ganhar experiência e a tornar-se conhecido, abrindo-lhe caminho para a editoras com outro peso, como a Fantagraphics, de Garry Groth e Kim Thompson, que se tornaria a editora de Clowes, depois deste enviar a Groth a primeira história que fez com o personagem Lloyd Llewellyn. Após a estreia no nº 13 da revista Love and Rockets, dos irmãos Hernandez, a Fantagraphics publicou entre 1986 e 1987 os seis números da revista Lloyd Llewellyn, a que se seguiu em 1988 The All-New Lloyd Llewellyn, a revista que encerra a história do personagem.
É no ano seguinte que a Fantagraphics começa a publicar o título fundamental da carreira de Clowes, a revista Eightball, que com diferente formatos e periodicidades, entre 1989 e 2004, serviu para pré-publicar em capítulos alguns dos mais importantes trabalhos do autor de Chicago, como Ghost World/Mundo Fantasma, a sua obra de estreia em Portugal, adaptada ao cinema em 2001 por Terry Zwigoff, e que lançou a carreira de uma Scarlett Johansson adolescente e este Como uma Luva... cujos dez capítulos saíram nos primeiros 10 números da Eightball, tendo sido posteriormente recolhidos em livro em 1993.
Se os títulos de Clowes têm sido frequentemente adaptados ao cinema, com o aconteceu com Ghost World, Art School Confidential e Wilson e deverá acontecer com Patience, a sua mais recente novela gráfica, isso não sucedeu com Como uma Luva de Veludo moldada em Ferro, cujo universo está bastante próximo do de cineastas como David Lynch e David Cronemberg. Mas, se isso não aconteceu até agora, é pouco provável que numa Hollywood cada vez mais infantilizada e refém do politicamente correcto, haja espaço para uma história tão perturbadora e surreal como a que Clowes criou. Uma história com personagens tão estranhos, como um bruxo que dá consultas na casa-de-banho de um cinema de filmes pornográficos; um homem com crustáceos enfiados nos globos oculares para limpar uma infecção; um culto religioso liderado por um aspirante a Charles Manson; um peludo cão (ou será cadela) sem quaisquer orifícios, que se alimenta de injecções de água; uma adolescente que fuma cachimbo; ou uma rapariga sem braços e pernas, fruto de uma noite de amor entre a mãe e uma criatura aquática de forma humana. Personagens surreais e delirantes, que Clay Loudermilk, o protagonista de Como uma Luva de Veludo Forjada em Ferro encontra na sua viagem em busca dos produtores de um filme pornográfico, em que lhe pareceu reconhecer a sua esposa, desaparecida alguns anos antes.
Com esta simples premissa como ponto de partida, Daniel Clowes pegou em dois ou três sonhos seus e da ex-mulher, para construir um road movie cerebral, que elimina qualquer fronteira entre o pesadelo e a realidade. Estranho, divertido e inquietante, Como uma Luva de Veludo moldada em Ferro é um dos mais importantes e perturbadores livros de um dos maiores nomes dos comics alternativos americanos.
Publicado originalmente no jornal Público de 24/08/2019

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

NovelaGráfica V 7 - Flex Mentallo


OS PRIMEIROS PASSOS DE UMA DUPLA GENIAL

Novela Gráfica V – Vol. 7 
Flex Mentallo
Argumento – Grant Morrison
Desenhos – Frank Quitely
Quinta-feira, 15 de Agosto
Por + 10,90€
Bem conhecidos dos leitores portugueses, graças a títulos como WE3 e All Star Superman, Grant Morrison e Frank Quitely estreiam-se na colecção Novela Gráfica, na próxima quinta-feira, 15 de Agosto, com aquela que foi a sua primeira colaboração, Flex Mentallo, um clássico da Vertigo.
Publicado originalmente como uma mini-série em quatro volumes em 1996 e republicado numa edição de luxo definitiva, recolorida por Peter Doherty, em 2012, que serve de base à versão portuguesa, Flex Mentallo é muito mais do que a primeira colaboração entre Morrison e Quitely. É um exemplo de metaficção e uma reflexão sobre a história e mitologia dos comics de super-heróis e a sua importância para o mundo real. Ou como o próprio criador de Flex Mentallo, que é uma das personagens da história (e um alter ego óbvio do autor) explica aos leitores na página 101: “Criámos os comics porque sabíamos, de alguma forma, sabíamos, que faltava algo e tentámos preencher esse vazio, com histórias acerca de deuses e de super-heróis.”
Flex Mentallo nasceu durante a passagem de Morrison pela série Doom Patrol, um título clássico, criado um 1963 (o mesmo ano em que a Marvel lançou os Fantastic Four) e relançado em 1987, com o subtítulo “Os Mais Estranhos Super-Heróis do Mundo”, o que convinha perfeitamente a Morrison, que tomou conta da série em 1989, no número 19 e criou a sua versão da Doom Patrol. Uma versão incontornável e definitiva, que está na base da actual série televisiva, exibida em Portugal no canal por cabo da HBO, onde Flex Mentallo marca presença, interpretado pelo actor Devan Chandler Long.

Mas se o “quebrar da quarta parede”, colocando os personagens em confronto com o seu criador, é algo que Morrison já tinha feito antes na série Animal Man, aqui vai mais longe, traçando uma verdadeira história dos comics de super-heróis, iniciando uma reflexão sobre o género que irá culminar no seu livro Supergods. Isso é bem visível nas capas originais da mini-série, com cada uma a evocar umas das quatro idades dos Comics. A Idade do Ouro, a Idade da Prata, a Idade Sombria - que resultou do sucesso de Watchmen e de O Regresso do Cavaleiro das Trevas, cuja capa é evocada no nº 3 da mini-série – e a Idade actual, que revisita de forma crítica e nostálgica as origens do género, reinventando-o para os leitores do século XXI.
E falta falar do excelente trabalho de Quitely, que se estreou aqui no mercado americano. Mas deixemos que seja o seu conterrâneo Grant Morrison a fazê-lo: “Graças às suas fantásticas habilidades de desenho, ele é capaz de criar coisas que antes só viviam nos meus sonhos, o que eu acho fascinante. Ele consegue captar no papel a sensação exacta dos meus sonhos. Ele abordou os personagens de uma forma que os fez parecerem bastante bizarros e bastante irrealistas, e acho que isso realmente se adequou ao livro.”
Publicado originalmente no jornal Público de 10/07/2019

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Novela Gráfica V 6 - Gorazde: Zona de Segurança

CERCADOS EM GORAZDE

Novela Gráfica V – Vol. 6 
Gorazde: Zona de Segurança
Argumento e Desenhos – Joe Sacco
Quinta-feira, 08 de Agosto
Por + 10,90€
O próximo volume da colecção Novela Gráfica assinala o regresso de Joe Sacco, um dos nomes maiores da reportagem de guerra em Banda Desenhada, género que praticamente inventou com Palestina, a sua novela gráfica de estreia, publicada em Portugal no início deste século XXI.
Nascido na Ilha de Malta, mas residente em Nova Iorque, Sacco é acima de tudo um repórter que escolheu a linguagem da BD para transmitir aquilo que viu. A meio caminho entre a novela (autobio)gráfica e a reportagem pura e dura, as suas obras têm como fio condutor o próprio Joe Sacco. Ele é o narrador participante, por vezes irónico, por vezes distante, mas cuja presença se apaga gradualmente face à força dramática dos testemunhos que relata. Sacco não chega a grandes conclusões, nem apresenta soluções, limita-se a relatar o que viu. E o que viu não é nada bonito. Um retrato sem concessões, mas cheio de humanidade, dos horrores da guerra e das vidas das gentes que procuram sobreviver e encontrar alguma aparência de normalidade no meio do caos.
No cerne deste livro estão as quatro viagens que o autor fez a Gorazde, entre o final de 1995 e o início de 1996. Um pequeno enclave muçulmano em território sérvio, Gorazde foi designada pela ONU como área segura durante a Guerra da Bósnia. Uma designação optimista, pois a cidade, cercada pelas forças sérvias da Bósnia, esteve à beira da destruição por três anos e meio, com o povo de Gorazde a sofrer severas privações para manter sua cidade, enquanto o restante do leste da Bósnia era brutalmente "purificado" de sua população não-sérvia pelas tropas de Slobodan Milosevic.
Se o conflito na ex-Jugoslávia que se seguiu à morte do Marechal Tito - cuja mão de ferro conseguiu manter artificialmente unida durante quase três décadas, a então República Federal Socialista da Jugoslávia, que acabaria por se dividir numa série de pequenas repúblicas, correspondentes às diferentes comunidades étnicas e religiosas, de croatas, sérvios e muçulmanos - tem sido bastante tratado na BD, esses relatos centraram-se sempre na cidade de Sarajevo. Basta pensar em Fax de Sarajevo, de Joe Kubert, publicado na colecção de 2016, ou em Sarajevo-Tango, de Hermann, ainda inédito em português. Um aspecto que vem tornar ainda mais pertinente o esforço de Sacco, que permitiu alertar o grande público para o drama vivido em Goradze.
Para além da força dos relatos e da profunda humanidade com que Sacco os transmite, o livro vive também do traço detalhado e expressionista do desenhador. Um estilo a meio caminho entre o realista e o caricatural, feito de milhares de pequenos traços, numa técnica que se aproxima da gravura e que se revela extremamente eficaz nas cenas de conjunto. Mas além de um traço muito trabalhado, Sacco é também senhor de uma boa técnica narrativa, patente na forma dinâmica como o texto se espalha pelas páginas, ou como a planificação se vai alterando de acordo com as necessidades de cada capítulo.
Desde que foi publicado pela primeira vez em 2000, Gorazde: Zona de Segurança ganhou o Eisner de Melhor Novela Gráfica em 2001 e foi reconhecido como um dos clássicos absolutos da novela gráfica de reportagem. Um clássico que, quase vinte anos depois, chega finalmente a Portugal.
Publicado originalmente no jornal Público de 03/08/2019

sábado, 3 de agosto de 2019

Novela Gráfica V 5 - Monika

MONIKA E O DESEJO

Novela Gráfica V - Vol. 5 
Monika
Argumento – Thilde Barboni 
Desenho – Guillem March
Quarta-feira, 04 de Julho
Por + 10,90€
Monika, o quinto volume da colecção Novela Gráfica, é um triller tão movimentado como sensual. Uma história de violência e desejo, com dramas familiares, máscaras, sociedades secretas, festas sadomaso, grupos terroristas, um andróide apaixonado e uma grande carga erótica, saída da imaginação da escritora belga Thilde Barboni e magnificamente ilustrada pelo espanhol Guillem March. 
Nascido em Maiorca, em 1979, Guillem March construiu recentemente uma extensa carreira no mercado americano como ilustrador da DC Comics, a editora de Batman e Superman, onde se estreou com uma história da Hera Venenosa que os leitores portugueses puderam já ler no volume Asilo do Joker, (publicado na colecção No Coração das Trevas DC). Ligado às séries da linha do Batman, para onde tem desenhado vários títulos, com destaque para a revista da Catwoman, March tornou-se principalmente conhecido pelas centenas de belíssimas capas que ilustrou, pondo normalmente em destaque a beleza e a sensualidade das personagens femininas do universo DC.
Até pelo título (um simples nome de mulher) este Monika faz a ponte entre as duas grandes etapas do trabalho de March: a europeia e a americana. Antes de entrar no mercado americano, o desenhador maiorquino tinha trabalho publicado como autor completo em Espanha, com obras como a trilogia Sofia, Ana y Victoria, pré-publicada entre 2001 e 2004 no suplemento dominical do Jornal de Mallorca, e Laura, livro de 2006 que encerra esse ciclo feminino e que foi realizado entre a publicação do primeiro e do segundo volume de Monika. E este Monika combina perfeitamente a sensualidade e a dimensão humana dos álbuns maiorquinos (a acção de Sofia, Ana y Victoria passa-se em Maiorca, onde March nasceu e ainda vive), com a acção e espectacularidade dos comics de super-heróis, de que March se tornou um nome incontornável.
Publicado originalmente no jornal Público de 27/07/2019 

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Novela Gráfica V 4 - No Rasto de Garcia Lorca

RECORDANDO GARCÍA LORCA

Novela Gráfica V - Vol. 4 
O Rasto de García Lorca
Argumento – Carlos Hernández e El Torres 
Desenhos – Carlos Hernández
Quinta-feira, 25 de Julho
Por + 10,90€
Nome maior da poesia e do teatro espanhol e figura incontornável da cultura mundial, a quem a morte trágica deu uma dimensão mítica, Federico García Lorca é o protagonista do quarto volume da colecção Novela Gráfica, que chega aos quiosques de todo o país no dia 25 de Julho, mas que dois dias antes será objecto de uma apresentação e lançamento na Fundação José Saramago, com a presença de Pilar del Rio, uma das autoras do prefácio.
Se as biografias de escritores, ou poetas são um tema bastante presente na novela gráfica espanhola contemporânea – basta pensar em Gente de Dublin, a biografia que Alfonso Zapico fez de James Joyce, publicada na colecção de 2018 – este O Rasto de García Lorca, para além de ser o primeiro, é diferente. Uma diferença que passa por traçar o retrato do poeta através da marca deixada por Federico Lorca em todos os que com ele conviveram - desde figuras célebres como Buñuel e Dalí, que não sai nada bem visto, até personagens bem mais anónimas, como Eládio, o criado anão do Hotel em Havana, onde Lorca se hospedou - nos locais por onde passou: pessoas que partilharam a vida e a morte do poeta, em cidades como Granada, Madrid, Havana ou Nova Iorque.
O ilustrador Carlos Hernández, que tem aqui o seu primeiro trabalho de grande fôlego, aliou-se a El Torres, o premiado argumentista de O Fantasma de Gaudi, para traçar doze momentos da vida de Garcia Lorca. Doze peças de um puzzle que, uma vez juntas, apresentam ao leitor um retrato bastante nítido do fundador da Barraca.
Embora o nome dos dois autores apareça em pé de igualdade na capa, a verdade é como refere modestamente El Torres, foi Carlos “quem comandou o barco” enquanto ele, como vem na ficha técnica se limitou a “limpar e dar brilho e esplendor” às suas ideias. Algo natural, pois Carlos Hernández é natural de Granada e, como refere numa entrevista: “como granadino, Federico García Lorca está no meu subconsciente e tem sido, desde que me lembro, o referente cultural da minha cidade, apesar das cinzas do passado e de um controverso silêncio de que a cidade ainda não se conseguiu de todo libertar. Lorca significa muito para qualquer um que tenha sensibilidade para sentir os seus passos naqueles recantos da cidade que ainda conservam o seu rasto.” Por isso, a história abre e fecha com as memórias de Alfonsito, um vizinho de Lorca, personagem inspirada no pai do próprio Carlos Hernández, que foi contemporâneo do poeta.
Dando mais uma vez a palavra a Carlos Hernández: “A premissa inicial foi de não contar a sua vida como mais uma biografia, mas antes construir diferentes relatos biográficos com uma certa independência, de que Lorca é o protagonista elíptico, muitas vezes ausente e outras não, mas sempre reflectindo, através do olhar dos seus amigos ou conhecidos, esse magnetismo, vitalidade e carismática presença que encontramos nas descrições de todos aqueles que o conheceram em vida. Por isso, escolhemos os temas em função de diversas prioridades. Por exemplo, contar algo da sua viagem a Nova Iorque, a sua estadia em La Habana, falar de sua relação com Dalí e Buñuel, a Residência de estudantes, relatar o seu dia-a-dia com a Barraca, e também mostrar a face sinistra de Granada, através do antigo soldado que se gabava de ter morto Lorca, uma história autêntica que as pessoas mais velhas da minha cidade ainda recordam.”
Graficamente, Hernández, que fez um sólido trabalho de pesquisa que dá grande veracidade à sua reconstituição de época, optou por um registo a sépia, que nos remete para as fotografias antigas, com resultados extremamente evocativos e poéticos. Mas onde o seu trabalho brilha mais é em termos narrativos, em momentos como a (surreal, mas verídica) entrevista a Salvador Dalí, ou as memórias de Luís Buñuel, em 1928, em que as palavras dos dois são acompanhadas por imagens que remetem para o filme Un Chien Andalou, que Dalí e Buñuel realizaram.
Publicado originalmente no jornal Público de 20/07/2019

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Novela Gráfica V 3 - A Febre de Urbicanda


Como acontece nos casos em que sou o autor do prefácio do livro, em vez de transcrever o texto do Público ( que podem sempre ler, carregando na imagem abaixo) aqui vos deixo o prefácio. É sempre um prazer escrever sobre As Cidades Obscuras e ainda mais sobre este livro, que foi o primeiro da série que comprei, em 1986, na FNAC de Les Halles, em Paris. Também por essas memórias, e pelo muito que me liga a essa série e aos seus autores, é sempre bom regressar a Urbicanda, ou a qualquer outra Cidade Obscura.

REGRESSO A URBICANDA


No mesmo ano em que nos países francófonos se conclui a edição integral em quatro volumes da série As Cidades Obscuras, eis que finalmente é reeditado em Portugal um dos títulos fundadores do universo criado por François Schuiten e Benoit Peeters, A Febre de Urbicanda. Objecto de uma primeira edição nacional, no final da década de 80 do século XX, o clássico de Schuiten e Peeters regressa agora numa edição definitiva que, para além de um dossier final sobre a lenda da Estrutura, inclui também a história A Última Visão de Eugen Robick, feita em 1997 para o número final da revista (A Suivre) onde a série nasceu.
Efectivamente, tudo começou em 1983, nas páginas da revista (A Suivre) com Samaris, a primeira das Cidades Obscuras dada a conhecer por Schuiten e Peeters. na história Les Murailles de Samaris.  O que era inicialmente para ser uma aventura independente, de homenagem à Arte Nova e à arquitectura em trompe l’oeil, viria a dar origem a uma série de histórias autónomas, passadas num mesmo universo que os próprios autores definem como sendo um reflexo deslocado da Terra, mas num tempo indefinido, parado algures na transição do século XIX para o XX.
Não sendo a primeira, A Febre de Urbicanda é, efectivamente a história que melhor abarca o conceito de “Roman BD” – termo associado à revista (A Suivre) que em França designou inicialmente a Novela Gráfica – com histórias preto e branco de longo fôlego, estruturadas em capítulos e marcadas pela ausência de um limite de páginas pré-estabelecido, e que, de facto, fundou o universo da série “a posteriori”. Aspecto que fica bem patente logo nas páginas iniciais de BD, ambientadas no gabinete de Robick, cujas paredes estão decoradas com um grande mapa do Continente Obscuro, onde são visíveis nomes de cidades como Alaxis, Xhystos e Samaris. Do mesmo modo, aquando da posterior reedição em livro de As Muralhas de Samaris, os autores acrescentaram algumas páginas no final, em que aparece um jovem Eugen Robick, então a viver em Xhystos, criando assim uma ligação entre os dois livros, cuja acção, percebe-se então, tem lugar no mesmo universo: o universo das Cidades Obscuras (designação inventada por Jean Paul Mougin, director da (A Suivre). Um universo que é constituído por uma série de cidades fantásticas, verdadeiros protagonistas de histórias fascinantes, que têm como pano de fundo as relações entre a arquitectura, as emoções e o poder. Histórias que procuram responder a uma questão fundamental: até que ponto as características de uma cidade podem moldar o comportamento dos seus habitantes e a evolução da própria narrativa?
Conforme refere Benoit Peeters: “o cenário, para nós não é um elemento secundário: é a partir dele que o conjunto da narrativa se organiza. Na maior parte das bandas desenhadas, o motor e o centro da narrativa é uma personagem que se reencontra, álbum após álbum. Completamente diferente é o projecto das Cidades Obscuras, em que é uma cidade que dá a cada história a sua unidade; não uma cidade real que trabalhos de localização permitissem alcançar, mas uma cidade inteiramente fictícia, fragmento de um universo paralelo cuja imagem global se desenha pouco a pouco”.
Neste caso, a cidade é Urbicanda, uma utopia arquitectónica baseada no rigor do planeamento e na simetria, em que o crescimento geométrico de um misterioso cubo feito de uma matéria desconhecida, vem perturbar e transformar a vida dos seus habitantes e a imagem da própria cidade. Embora o nome de Robick, o urbitecto responsável pela imagem uniforme da cidade, remeta para o cubo de Rubik, brinquedo quebra-cabeças muito em voga nos anos 80, e a história tenha precisamente seis capítulos – tantos quanto as faces de um cubo - a principal fonte de inspiração para o urbitecto foi o próprio pai de Schuiten, Robert Schuiten, arquitecto de profissão, tal como as cidades construídas de raiz, como Brasília -  que os autores só visitaram em 1997, ano da morte do pai de Schuiten – serviram de inspiração para Urbicanda. A mesma Brasília, traçada por Óscar Neimeyer,  onde reencontraremos Robick, na história curta para o último número da revista (A Suivre) que encerra este volume.

Para além da arquitectura fascista e dos projectos utópicos de Boulée e Ledoux,  expressamente citados na carta de Robick à Comissão das Altas Instâncias, que abre o livro, o universo imponente de Urbicanda é particularmente inspirado em trabalhos realizados por estudantes de arquitectura das Belas-Artes de Paris na década de 30. O que nos remete para outra das características marcantes da série, o recurso a uma ficção-científica “retro”, extrapolada a partir das utopias e dos projectos futuristas do princípio do século e de finais do século XIX.
Ao contrário de um Edgar P. Jacobs – de quem François Schuiten é um profundo admirador, como o demonstrar o recente Blake e Mortimer que desenhou - que, quando se propôs descrever o futuro em A Armadilha Diabólica, acaba, em vez disso, por retratar, com poucas extrapolações, a tecnologia de 1958, a tecnologia da Exposição Universal que vira dois anos antes em Bruxelas, o universo das Cidades Obscuras está mais fora do tempo. Nas palavras de Peeters, “o universo que descrevemos é um universo ligeiramente deslocado, mas cheio de elementos tirados do nosso universo. Evoca, de facto, aquilo que teria acontecido se tivesse havido uma espécie de falha temporal, se em lugar de evoluir no sentido que nós conhecemos, a arquitectura e as técnicas tivessem ligeiramente bifurcado a partir de um certo estádio, para seguir até ao fim uma direcção que, na realidade, foi muito depressa abandonada”.
Série maior da BD franco-belga, que cedo ultrapassou os limites da própria Banda Desenhada, para dar origem a livros ilustrados, documentários, um guia de viagens, exposições, intervenções cenográficas, um congresso que teve lugar em Coimbra em 1998 – cujas actas foram recolhidas no livro As Cidades Visíveis - e até a Estações de Metro, em Paris e Bruxelas, as Cidades Obscuras são um marco incontornável na história da Banda Desenhada e A Febre de Urbicanda é um das melhores portas de entrada nesse universo fascinante.
Publicado originalmente como prefácio do livro A Febre de Urbicanda, terceiro volume da colecção Novela Gráfica de 2019

domingo, 14 de julho de 2019

Novela Gráfica V 2 - Frango com Ameixas

O HOMEM QUE SE DEIXOU MORRER

Novela Gráfica V - Vol 2
Frango com Ameixas
Argumento e Desenhos – Marjane Satrapi
Quinta-feira, 13 de Junho
Por + 10,90 € 
Depois de Paco Roca no volume inicial, a Colecção Novela Gráfica de 2019 abre as suas portas a outro grande nome da BD europeia, Marjane Satrapi, que se estreia no catálogo do Público e da Levoir com o seu trabalho mais consistente, Frango com Ameixas.
Terceira mulher a assegurar presença na Colecção Novela Gráfica, depois de Zeina Abirached na Colecção de 2016 e Pénélope Bagieu na Colecção de 2018, Satrapi nasceu  no Irão em 1969, no seio de uma família de esquerda com grande peso no país (o bisavô foi o último Imperador da dinastia Qajar e o avô chegou a ser Primeiro Ministro) e tinha tinha apenas dez anos quando se deu a revolução que levou ao exílio do Xá e à instauração de uma República Islâmica, tendo vivido por dentro um momento fulcral da história do seu país. Um momento que soube transpor para o papel com eficácia, sensibilidade e rigor, em Persépolis, o título que lhe deu fama e que a própria adaptou ao cinema, num filme de animação co-realizado com Vincent Paronnaud.
Se Persépolis tinha uma carga autobiográfica dominante - algo natural em alguém como Satrapi, que viveu acontecimentos marcantes e que, como a própria confessou numa entrevista “tenho uma excelente memória, o meu cérebro não faz qualquer selecção. Lembro-me de tudo. O que é muito bom quando queremos trabalhar, mas é muito mau quando queremos viver” - Frango com Ameixas parte de factos reais relacionados com a história familiar da autora, para construir uma narrativa mais rica e muito menos linear do que em Persépolis, sendo evidente uma evolução de Marjane enquanto contadora de histórias, bem expressa na forma como ela gere a revelação sobre o verdadeiro motivo para Nasser se deixar morrer.
Actualmente a viver em França, Satrapi, que frequentou o Liceu Francês de Teerão até 1980, tem uma formação cultural muito próxima cultura francesa, incluindo no campo da BD. Também aqui as referências de Satrapi são francesas especialmente David B. e os autores da editora francesa L’Association, o que é natural pois para além de não existir tradição de BD no Irão, a autora partilhou o atelier com Cristophe Blain (o autor de “Isaac, o Pirata”, cuja namorada da altura era a melhor amiga de Marjane), Emmanuel Guibert, Joann Sfar e o próprio David B., que a encorajou a passar a sua vivência ao papel e assina a introdução do primeiro volume da edição original francesa de Persépolis. Muito longe de ter o virtuosismo de David B., um mestre do preto e branco, Satrapi defende-se ainda assim bastante bem, graças a um grafismo muito depurado e quase Naif mas de grande eficácia narrativa, servido por um preto e branco contrastado, que guia o olhar do leitor para o que é essencial. Um estilo que se mantém reconhecível em Frango com Ameixas, embora com evidentes melhorias em termos de utilização da perspectiva.
O livro que chegará às bancas com o Público na próxima quinta-feira e que venceu o prémio de melhor álbum no Festival de Angoulême de 2005 e foi adaptado ao cinema pela própria Satrapi em 2011, num filme com a portuguesa Maria de Medeiros no elenco, conta a história de Nasser Ali Khan, tio-avô de Marjane, um famoso músico que viveu no Irão de 1958. Na sequência de uma discussão familiar, o seu tar, o instrumento de que é virtuoso e que é o seu bem mais precioso, é partido. Nenhum outro tar o irá satisfazer e Nasser vai perder o gosto pela música. Tomado de uma melancolia imensa, decide deixar-se morrer, levando-nos numa viagem às suas emoções, aos seus sonhos e à sua história pessoal, que se mistura com a do seu Irão natal num período conturbado da sua história.
Se em Persépolis a realidade histórica é o fulcro da narrativa, aqui é apenas o ponto de partida, pois como a autora confessa a propósito do tio-avô: “dele, tudo o que vi, foi uma fotografia de família em que ele tinha um ar tão romântico e evocativo e, ao mesmo, muito intenso e muito belo... e sabia que tinha sido um grande músico e tinha morrido de tristeza. Só isso.” E “isso” é o ponto de partida para uma narrativa fascinante, que mistura sonho e realidade, história e ficção, amor e sofrimento e em que cada história contém em si outras histórias.
Publicado originalmente no jornal Público de 06/07/2019

quinta-feira, 11 de julho de 2019

Os Caçadores de Tesouros em destaque na apresentação da colecção Novela Gráfica


OS CAÇADORES DE TESOUROS EM DESTAQUE 
NA APRESENTAÇÃO DA COLECÇÃO NOVELA GRÁFICA 2019

Com moderação de Helena Pereira, editora do Público, o auditório do jornal recebeu na passada quarta-feira, 3 de Julho, a apresentação da colecção Novela Gráfica de 2019. Aposta arriscada, como alguns editores concorrentes fizeram questão de referir na altura, a Novela Gráfica soube conquistar um público próprio, mais alargado do que os habituais coleccionadores de Banda Desenhada e também mais diversificado em termos de género. 
Foi esta história de cinco anos que, a editora da Levoir, Sílvia Reig, e o autor deste texto, evocaram, satisfazendo a curiosidade dos interessados quanto ao critérios de selecção das diferentes colecções que, partindo de uma lista inicial de mais de uma trintena de títulos, a que se estão sempre a juntar novos títulos, tem permitido lançar ao logo dos últimos cinco anos, colecções anuais  de 12 a 15 volumes, onde clássicos incontornáveis como Mort Cinder, de Oesterheld e Breccia, V de Vingança, de Alan Moore e David LloydUm Contrato com Deus, de Will Eisner, Foi Assim a Guerra das Trincheiras, de Tardi, O Diário do Meu Pai, de Taniguchi, ou Sharaz’De, de Toppi, convivem lado a lado com títulos mais recentes, de autores contemporâneos, principalmente espanhóis, que a colecção deu a conhecer aos leitores, com o sucesso que conhecemos.  Mesmo autores, como Paco Roca, ou Jiro Taniguchi que objectivamente já tinham trabalho publicado em Portugal, foi através da colecção Novela Gráfica que se tornaram verdadeiramente populares junto dos leitores portugueses. Outro aspecto abordado, foi a ausência de autores portugueses a partir da segunda série, o que se deve sobretudo à inexistência de propostas inéditas de autores nacionais que se encaixem nos critérios da colecção.
Marcada pela diversidade, de formatos (respeitando sempre o formato original de publicação, algo que causou alguma estranheza inicial aos leitores, mas que foi rapidamente vencida), de temas, de registos gráficos, de nacionalidades, a colecção Novela Gráfica é um bom exemplo de liberdade e de versatilidade. Liberdade e versatilidade que a linguagem da arte sequencial permite. Arte sequencial foi um termo utilizado por Will Eisner, autor que, com Contrato com Deus - título que, não por acaso, inaugurou a primeira colecção, em 2015 - também ajudou a vulgarizar o termo Graphic Novel, que numa tradução mais literal do que exacta, deu origem à Novela Gráfica, expressão usada tanto em Portugal, como em Espanha e no Brasil.
Naturalmente, esta quinta série reflecte essa aposta firme na liberdade e na diversidade, juntando clássicos como Frango com Ameixas,de Marjane SatrapiGoradze: área de Segurança, de Joe SaccoA Febre de Urbicanda, de Schuiten e Peeters, ou  Como uma Luva de Ferro Forjada em Aço,  de Daniel Clowes, a títulos extremamente recentes como O Tesouro do Cisne Negro, de Paco Roca e Guillermo Corral, ou Neve nos Bolsos, de Kim e obras estética e narrativamente mais arriscadas como O Número 73304-23-4153-6-96-8, de Thomas Ott, uma história inteiramente sem palavras ilustrada usando a técnica da grattage, que assinala a estreia em Portugal do autor suíço
Aproveitando o facto de O Tesouro do Cisne Negro, de Paco Roca e Guillermo Corral, título que abre esta colecção, ser inspirado em factos reais, presenciados pelo próprio Corral, mais concretamente no caso verídico, cujos desenvolvimentos o Público acompanhou, da fragata espanhola Nuestra Señora de las Mercedes, afundada no século XVII em águas territoriais portuguesas, junto à costa algarvia, que foi saqueada pela empresa americana Odyssey, liderada pelo conhecido caçador de tesouros Greg Stemm, a apresentação da colecção foi pretexto para uma interessantíssima conversa sobre as ameaças ao património subaquático, com Alexandre Monteiro, arqueólogo e Investigador da Universidade Nova de Lisboa (que prefaciou a edição portuguesa de O Tesouro do Cisne Negro ) e Paulo Costa, Investigador do Instituto de História Contemporânea.
Alexandre Monteiro explicou o método de funcionamento destas empresas de caçadores de tesouros, que quando descobrem um achado vão lá e destroem todo o contexto, aspirando literalmente os destroços, porque só lhes interessam mesmo os objectos de valor. Estas são empresas cotadas em bolsa, que mais do que dos tesouros que conseguem encontrar/pilhar, vivem do investimento dos seus accionistas - que adiantam dinheiro com mira nos lucros de tesouros fabulosos, que normalmente não passam de miragens - e que se aproveitam da fraqueza dos Estados com quem negoceiam.
A esse respeito, a situação que se passou em Cabo Verde é exemplar: “uma dessas empresas estabeleceu um protocolo como Governo, segundo o qual ficariam com todos os objectos descobertos repetidos, como moedas, mas deixando aos países a possibilidade de guardar os itens únicos. Só que, e é aqui onde está o truque, ressalvando a possibilidade de lhes cobrar a despesa de retirar esse objecto do fundo do mar. Na prática, quando no naufrágio de Passa Pau foi descoberto um astrolábio seiscentista banhado a prata e o Estado o quis guardar, apresentaram uma despesa de várias centenas de milhares de dólares. O resultado foi que o instrumento acabou vendido pela Sotheby’s, sem qualquer benefício para o país.”
Como explicou Paulo Costa, no caso dos navios de guerra do século XX, afundados durante as duas Guerras Mundiais, o que interessa aos caçadores de tesouros já não é o conteúdo dos navios, mas sim o seu metal, que por estar submerso antes do início da era atómica, em 1945, não tem vestígios de radiação, o que torna esse metal mais valioso.
Enquadrada com a realidade, a história contada por Roca e Corral ganha outra pertinência, até porque o que se passou com a Nuestra Señora de las Mercedes, ameaça repetir-se em 2019 com a nau Santa Rosa, uma embarcação portuguesa de 66 canhões, carregada com dezenas de toneladas de ouro, afundada em 1726, com 700 portugueses a bordo, que se encontra em águas territoriais brasileiras, ao largo do Cabo Santo Agostinho, Pernambuco. Um navio já localizado em 1998, mas que só agora, com a subida de Bolsonaro ao poder, o Governo brasileiro concedeu autorização à Odyssey, a Ithaca do Cisne Negro para operações de resgate deste navio português.
Resta esperar que o Governo português mostre a mesma coragem com a Santa Rosa que o Governo Espanhol demonstrou com a Nuestra Señora de las Mercedes. Embora a situação seja bastante melhor, desde que em 1997, Manuel Maria Carrilho revogou a lei promulgada por Santana Lopes, que abria a porta à concessão de partes da costa a empresas privadas para levantar naufrágios históricos e nesse mesmo ano foi criada uma lei para a arqueologia subaquática, que permitiu a Portugal ser um dos primeiros países a aderirem à Convenção da UNESCO para Protecção do Património Cultural Subaquático, a falta de meios continua a ser gritante.
Publicado originalmente no jornal Público de 11/07/2019