EXILADOS EM NOVA IORQUE
Novela Gráfica IV – Vol. 10
As Serpentes Cegas
Argumento – Felipe Hernández Cava
Desenhos – Bartolomé Segui
Quinta-feira, 29 de Agosto
Por + 10,90€
Mais de 70 anos volvidos sobre o seu início, a Guerra Civil de Espanha deixou feridas ainda não completamente cicatrizadas. Se para muitos estrangeiros, de Hemingway a Hugo Pratt, aquela foi a “última guerra romântica”, para os espanhóis foi um momento de horror difícil de esquecer, até porque arrastaria consigo a longa ditadura franquista. Não admira, por isso, que seja um tema em destaque na Novela Gráfica espanhola contemporânea, como o provam títulos como Os Trilhos do Acaso e este As Serpentes Cegas. Vencedor do Prémio Nacional del Cómic em 2009, As Serpentes Cegas reúne o desenhador Bartolomé Segui - que os leitores do Público conhecem de Histórias do Bairro e da adaptação do romance Tatuagem, de Manuel Vazqués Montalbán, publicados em colecções anteriores - ao escritor Filipe Hernández Cava.
Formado em História de Arte e tendo trabalhado como guionista para televisão e como curador de exposições, Cava é um dos nomes principais da ascensão da BD de autor em Espanha após a morte de Franco, graças à sua participação no colectivo El Cubri, e ao seu trabalho como director editorial de dois títulos míticos da movida madrilena, as revistas Madriz e Médios Revueltos. Como argumentista, foi responsável por obras como a trilogia dedicada a Lope de Aguirre, desenhada por Enrique Breccia, Federico del Barrio e Ricard Castells, Las Memórias de Amorós, e O Artefacto Perverso, que era o único título seu editado em Portugal até agora.
Desenhado por Federico del Barrio, O Artefacto Perverso arrebatou os prémios de melhor álbum espanhol e de melhor argumento no Salão de Barcelona de 97 e foi a primeira reflexão importante de Cava sobre a Guerra Civil espanhola, embora a acção da história decorra no período imediatamente a seguir, no auge do Franquismo. Homenagem aos desenhadores da época de ouro do tebeo espanhol, e em especial a Vanó, o autor da série Roberto Alcazar yY Pedrín, O Artefacto Perverso era também uma interessante reflexão sobre a memória e uma arrojada experiência sobre o uso da BD como meta-linguagem, com o traço versátil de del Barrio a adaptar-se de forma espantosa aos diferentes níveis da história, de um autor de BD que cala aquilo que vê e esconde aquilo que sente.
Menos experimental em termos estéticos, com um tratamento gráfico e um formato que remetem para a Banda Desenhada franco-belga clássica e um tratamento narrativo próximo do policial negro americano, com o uso da clássica narração na primeira pessoa, As Serpentes Cegas é o culminar das reflexões de Cava sobre a Guerra Civil espanhola, e aquele livro em que, continuando a ter a memória como tema dominante, a guerra está presente de forma mais directa. Obra que critica de forma dura os excessos cometidos em nome das ideologias, As Serpentes Cegas, reflecte a própria evolução de pensamento do seu autor, que afirmou numa entrevista : “antes acreditava que a verdade era sempre revolucionária, mas agora vejo que a verdade tem muitas zonas de sombra e eu gosto de me mover nessas zonas de sombra onde muito pouca gente se atreve a transitar.“Antes, acreditava que a verdade era sempre revolucionária, mas agora vejo que a verdade tem muitas zonas cinzentas, e a mim, dá-me gozo mover-me nessas zonas de sombra, pelas quais são poucos os que se atrevem a passar.”
Um objectivo cumprido com distinção, também muito por força da excelência do trabalho gráfico de Segui.
Publicado originalmente no jornal Público de 31/08/2019
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