domingo, 29 de julho de 2018

Colecção Novela Gráfica IV 8 - Tatuagem


PEPE CARVALHO, DA LITERATURA 
PARA A NOVELA GRÁFICA

Novela Gráfica IV – Vol. 8
Tatuagem
Argumento – Hernán Migoya (a partir do romance de Manuel Vázquez Montalbán)
Desenho – Bartolomé Segui
Quarta-feira, 25 de Julho
Por + 10,90€
Depois de Sharaz’ De, a peculiar adaptação que Sérgio Toppi fez das Mil e Uma Noites, na primeira coleção e de O Idiota, de Dostoievski, na radical interpretação, quase sem palavras, de André Diniz, na anterior série, a colecção Novela Gráfica abre as portas na próxima quarta-feira a mais uma adaptação à Banda Desenhada de um texto literário. Neste caso, o romance Tatuagem de Manuel Vázquez Montalbán, adaptado por Hernán Migoya e ilustrado por Bartolomé Seguí, o desenhador de Histórias do Bairro, um dos melhores livros da colecção anterior.
Publicado originalmente em Espanha em 1974, Tatuagem é a primeira aventura do detective Pepe Carvalho, personagem criada por Montalbán dois anos antes, em Yo maté a Kennedy, romance em que Carvalho ainda não tinha abandonado a C.I.A. para se estabelecer como detective privado em Barcelona. Partindo dos clichés do romance noir americano para o transcender, Montalbán criou uma personagem muito peculiar com Pepe Carvalho, o detective de origem galega, que no passado esteve ligado tanto à C.I.A. como ao Partido Comunista espanhol e que se revela um intelectual desencantado - que aos poucos vai queimando, livro a livro, a sua recheada biblioteca - e um verdadeiro amante da gastronomia, um dos aspectos que, para além da militância no Partido Comunista, mais o aproxima do seu criador. Tendo-se tornado muito rapidamente um dos mais populares personagens do romance policial europeu, Carvalho protagonizou, entre 1972 e 2004, dezoito romances, trinta contos, uma peça de teatro e onze livros de cozinha, para além de três séries de televisão e de quatro longas-metragens.
Só faltava a Pepe Carvalho uma adaptação à Banda Desenhada, o que acabou por acontecer em 2018, por iniciativa da editora Norma, que promoveu o encontro entre o escritor Hernán Migoya e Daniel Vázquez Sallés, o filho de Montalbán. Migoya, que foi editor da mítica revista El Vibora, escolheu para seu cúmplice nesta aventura gráfica o desdenhador Bartolomé Seguí, que aqui mostra a sua versatilidade optando por um estilo gráfico mais realista, distinto do usado em Histórias de Bairro, e também por uma paleta de cores distinta, discreta e ligeiramente sombria, que se adequa perfeitamente ao tom desta história, onde não há inocentes.
Outro dos desafios que se deparavam a Seguí, foi dar um rosto definitivo ao detective, que tendo tido diferentes caras no cinema e na televisão, tem finalmente um rosto mais próximo do imaginado por Montalbán, o do actor Ben Gazzara, que nunca interpretou o papel de Carvalho no cinema. Ou, como refere Migoya no dossier gráfico que encerra o livro: “assim, cumprimos à nossa maneira um desejo do mestre Montalbán.”
Como em qualquer história policial que se preze, tudo começa com um assassinato misterioso. No caso de Tatuagem, o que espoleta a acção é o cadáver de um homem novo, com a cara comida pelos peixes e uma tatuagem na omoplata com a frase “Nasci para revolucionar o inferno”, que aparece numa praia de Barcelona e cuja identidade Carvalho é contratado para descobrir. Um inquérito que o vai levar das ramblas de Barcelona aos canais de Amsterdão, para desvendar a identidade do misterioso homem. Mas, como geralmente acontece no romance noir, de Chandler a Hammet, de Spilanne a Montalbán, bem mais importante do que a descoberta do criminoso, ou do desvendar do mistério, é todo o percurso percorrido pelas personagens e as suas reflexões. Ou por outras palavras, mais importante do que chegar ao destino, é apreciar a viagem. O que é fácil quando temos Pepe Carvalho como companhia.
Publicado originalmente no jornal Público de 21/07/2018

sexta-feira, 20 de julho de 2018

Colecção Novela Gráfica IV 7 - Destemidas

A FORÇA DAS MULHERES

Novela Gráfica IV – Vol. 7 
Destemidas
Argumento e Desenhos – Pénélope Bagieu
Quarta-feira, 18 de Julho
Por + 10,90€
Depois da libanesa Zeina Abirached, com A Dança das Andorinhas na segunda série, em 2016, a colecção Novela Gráfica volta finalmente a ter um título assinado por uma mulher, Destemidas, da francesa Pénélope Bagieu, um livro que recolhe as biografias de 15 mulheres notáveis.
O projecto de As Destemidas começou em 2016, num blogue do jornal francês Le Monde, em que todas as segundas-feiras, Pénélope Bagieu colocava online a biografia em Banda Desenhada de uma mulher destemida. A ideia não foi fácil de vender ao jornal, mas ao fim de 30 biografias, posteriormente recolhidas em dois livros, o primeiro dos quais corresponde à edição portuguesa do Público e da Levoir, o sucesso foi tal, que a série, já editada nos Estados Unidos, está actualmente a ser adaptada para uma série de animação televisiva, realizada naturalmente por uma mulher, a iraniana Sarah Saidan e a exibir pelo canal televisivo France 5.
Pénélope Bagieu que reside em Nova Iorque desde 2015, tem um bacharelato em Artes Decorativas e divide a sua actividade entre a BD, o cinema, a animação e uma banda rock de que é baterista. Mas foi precisamente o seu trabalho na BD, seja nos blogues ou em livro, que lhe valeu o grau de Cavaleiro de Artes e Letras, atribuído pelo Ministério da Cultura francês, em 2013.
Bagieu, descreve assim o processo de pesquisa que teve de realizar para Destemidas: “metade foi uma pesquisa biográfica detalhada e outra metade sem pesquisa alguma. Primeiro, assegurei-me de que todos os elementos que tinha estavam correctos e depois transformei a realidade. Tentei imaginar como é que as personagens teriam reagido aos acontecimentos. A tua função é fazeres com que os leitores gostem das personagens.” Personagens reais, tão diferentes como Clémentine Delait, a mulher barbuda; Nzinga (ou Ginga) a mítica rainha de Angola; Margaret Hamilton, a actriz que deu a cara à bruxa de O Feiticeiro de Oz, entre outras personagens aterrorizadoras; Patria, Adela, Monerva e Maria Teresa, as quatro irmãs Mirabal, mais conhecidas como Las Mariposas, que na República Dominicana do ditador Rafael Trujillo, pagaram com a própria vida a sua luta pela liberdade; Josephina van Gorkum, que na Holanda do século XIX lutou contra a Pilarização que impunha a separação entre católicos e protestantes; Lozen, a guerreira apache, irmã de Victorio, que se bateu ao lado de outro grande chefe apache, Geronimo; Annette Kellerman, a famosa nadadora e actriz, responsável pela modernização do fato de banho feminino; Delia Akeley, a exploradora cuja vida está ligada ao continente africano; Joséphine Baker, a famosa dançarina, actriz e cantora americana, que depois de ter feito carreira em Paris, regressa ao seu país para lutar pelos direitos cívicos e contra a segregação racial; Tove Jansson, a ilustradora finlandesa criadora dos Mumins; Agnodice, a primeira ginecologista da Grécia clássica; Leymanh Gbowee, activista liberiana pelos direitos das mulheres, que recebeu o Prémio Nobel da Paz em 2011; Giorgina Reid, a senhora italo-americana, cuja perseverança e conhecimentos de arquitectura permitiram salvar o farol de Montauk, na ilha de Long Island, da erosão marítima; Christine Jorgensen, o primeiro e mais célebre transgénero americano, cujo exemplo público foi decisivo na luta pela identidade de género; e Wu Zetian, a primeira Imperatriz chinesa, cuja força e personalidade marcaram a história da China.
O resultado desta mistura entre investigação rigorosa e liberdade artística, são quinze biografias, leves e divertidas, desenhadas num estilo simples mas eficaz, de quinze mulheres de diferentes épocas, que deixaram a sua marca na História.
Publicado originalmente no jornal Público de 14/07/2018

quarta-feira, 11 de julho de 2018

Colecção Novela Gráfica IV 6 - Uma Irmã

HÈLENE, OU A INICIAÇÃO SEXUAL

Novela Gráfica IV – Vol. 6 
Uma Irmã
Argumento e Desenhos – Bastien Vivès
Sexta, 04 de Agosto
Por + 10,90€
Depois de Polina, o seu trabalho mais premiado, publicado na colecção do ano passado, Bastien Vivès regressa à colecção Novela Gráfica com Uma Irmã, o seu mais recente trabalho.
Nascido em Paris em 1984, Vivès é um autor tão talentoso como produtivo e versátil, de tal maneira que aos 27 anos já tinha 11 livros publicados, tendo ganho o prémio Revelação no Festival de Angoulême em 2009, com Le Gout du Chlore e o prémio das Livrarias de BD, o Grande Prémio da Crítica da ACBD (a Associação de Jornalistas e Críticos de BD franceses) e o prémio Haxtur para a Melhor Novela Gráfica em Espanha, com Polina, que foi também adaptado (muito livremente) ao cinema, num filme que passou de forma discreta pelos cinemas portugueses.
Alternando as Novelas gráficas, com o manga europeu Last Man, ou títulos mais próximos do franco-belga tradicional, como a série história Pour L’Empire, com Merwan Chabane, ou La Grande Odalisque, um triller mesmo a pedir uma adaptação cinematográfica, Vivès tem-se afirmado como um dos grandes nomes da moderna BD franco-belga.
Uma Irmã, o livro de Vivès que motiva este texto, mostra bem o total domínio da narrativa em Banda Desenhada que Vivès conseguiu. Com um registo gráfico muito próximo do usado em Polina, este novo livro, sobre a descoberta da sexualidade por parte de um adolescente, pode provocar alguma controvérsia, nestes tempos em que  impera o politicamente correcto.
Obra de ficção, mas onde é fácil procurar referências autobiográficas, Uma Irmã é contado na perspectiva de Antoine, um adolescente tímido de 13 anos, com grande talento para o desenho que descobre a sexualidade com Hélène, uma rapariga de 16 anos que vem passar férias com a família. Mas embora haja elementos que se inspiram nas férias de infância de Vivès, que também tem um irmão mais novo, como Titi e também passava a vida a desenhar, o livro não conta apenas coisas que o autor viveu, mas sobretudo, que gostaria de ter vivido. Como o próprio refere: “Antes de eu ter nascido, a minha mãe teve um aborto espontâneo. Foi uma coisa em que eu sempre pensei. Podia ter tido uma irmã mais velha. Tive uma infância muito feliz, muito acompanhado, que me deixou boas recordações. Mas ter uma irmã mais velha podia talvez ter-me ajudado na minha relação com as raparigas. O único modelo feminino que tinha em casa era a minha mãe. Gostaria de ter tido uma maior proximidade com as raparigas. E como fazer Banda Desenhada é satisfazer os seus sonhos, fazer nascer personagens, modificar um pouco a sua história, criei para Antoine uma experiência que gostaria de ter vivido...”
Mais do que uma história de amor, Uma Irmã é uma história de descoberta, marcada pela inocência dos dois irmãos, face a uma rapariga mais velha, como Hélène, que vai ajudar Antoine a conhecer um pouco do misterioso mundo feminino Dando mais uma vez a palavra a Bastien Vivès: “queria que eles tivessem algumas relações sexuais, mas sem passar verdadeiramente ao acto. Que eles se descobrissem um ao outro, como o poderiam fazer uma irmã mais velha e o seu irmão. Sem nada de violento, ou de agressivo entre eles. Os três juntos, vão formar uma pequena família onde a Hélène se vai sentir bem desde o início.”
Graficamente, o traço de Vivès estão cada vez mais depurado e sensual, transmitindo uma sensação de leveza e simplicidade. Um desenho diáfano a preto e branco (com o cinzento, como segunda cor, a dar volume) que sugere, mais do que mostra, como fica evidente em pormenores tão simples, como apenas desenhar os olhos das personagens quando é estritamente necessário para a narrativa, o que dá uma força muito maior a esses olhares. Também as cenas eróticas são tratadas com grande elegância e sobriedade, evitando cair num registo pornográfico, que seria muito mais difícil de evitar com um traço mais realista.
História de grande subtileza e ambiguidade sobre a adolescência, o desejo e o sentido de família, Uma Irmã confirma a maturidade e o talento de um grande autor.
Publicado originalmente no jornal Público de 07/07/2018

segunda-feira, 9 de julho de 2018

Colecção Novela Gráfica IV 5 - O Farol/ O jogo Lúgubre

OS PRIMEIROS PASSOS DE UM GRANDE AUTOR

Novela Gráfica IV -   Vol. 5 
O Farol e O Jogo Lúgubre
Argumento e Desenhos – Paco Roca
Quarta-feira, 04 de Julho
Por + 10,90€
Depois de O Inverno do Desenhador, Os Trilhos do Acaso e A CasaPaco Roca, um dos mais importantes e premiados autores espanhóis da actualidade, regressa com naturalidade à colecção Novela Gráfica com um volume que recolhe duas histórias anteriores a Rugas, que foi o título que o lançou a nível internacional. São elas O Farol, de 2004, e O Jogo Lúgubre, de 2001. Trabalhos que surgem nas suas versões mais recentes, pois Roca, de cada vez que reedita um dos seus livros, faz questão de introduzir alterações.

O Farol, história que abre este quinto volume, tem como protagonista Francisco, um jovem soldado republicano que tenta escapar da guerra civil. Na sua fuga, ele vai ser salvo de morrer afogado por Telmo, o excêntrico faroleiro de um farol desactivado, num lugar isolado da costa, perto da fronteira com França. E é precisamente Telmo que vai guiar Francisco numa jornada iniciática pelos clássicos da literatura de aventura, de As Viagens de Gulliver, às 20.000 Léguas Submarinas, passando pela Ilha do Tesouro, até à Odisseia. Essa dimensão literária é acentuada pela citação que fecha a história, não identificada na BD, mas que, como Roca refere no prefácio, pertence ao conto de Jorge Luís Borges, História dos dois que sonharam, incluído no livro História Universal da Infâmia. Um belíssimo conto inspirado nas Mil e Uma Noites e que serviu também de inspiração a Paulo Coelho para o seu Alquimista. Publicado originalmente num registo de bicromia, em que ao preto e branco se junta um azul acinzentado, que nas edições mais recentes, como a da Levoir, passou a um azul mais marinho, O Farol é uma bela homenagem de Paco Roca às leituras da sua infância, uma canção em favor da liberdade e da imaginação.
Em O Jogo Lúgubre, o seu primeiro trabalho como autor completo, Roca fez uma incursão pelo terror. Como o próprio reconhece, o ponto de partida foi o Drácula de Bram Stoker, romance epistolar incontornável, cuja influência em O Jogo Lúgubre é evidente até no nome do protagonista, Jonás Arquero, tradução livre para espanhol de Jonathan Harker, o narrador do romance de Stoker.
Mas deixemos que seja o próprio Paco Roca a contar como tudo se passou: “Provavelmente o ponto de partida foi o romance Drácula, de Bram Stroker (…) Tentei perceber como Bram Stoker tinha conseguido converter um herói romeno real no ícone do terror que todos conhecemos. Pensei que se poderia usar esse tratamento com outra personagem real. Alguém misterioso, excêntrico, que nos pudesse inquietar. A primeira opção foi Gaudí, um homem solitário, muito religioso, ligado à maçonaria e que viveu os últimos anos de vida na catedral que estava a construir.
A história podia ser algo como O Fantasma da Ópera, ou O Museu de Cera, mas na Sagrada Família. Mas acabei por encontrar uma personagem que podia dar mais luta e com umas motivações que podia entender melhor. Além disso, ajustava-se perfeitamente ao Drácula. Era uma pessoa que vivia num lugar perdido e de difícil acesso, que escandalizava os seus habitantes, que o não percebiam e habitava uma casa velha junto a um cemitério. Uma personagem cuja moral estava à margem da sociedade da sua época e inclusive, como ele dizia, necessitava do contacto da sua terra natal para poder viver. Essa personagem era Dalí.”
Dalí que, por questões legais aparece com outro nome, mas que surge em O Jogo Lúgubre, de uma forma que certamente lhe agradaria, como agradará aos leitores de Roca.
Publicado originalmente no jornal Público de 30/06/2018