OS CAÇADORES DE TESOUROS EM DESTAQUE
NA APRESENTAÇÃO DA COLECÇÃO NOVELA GRÁFICA 2019
Com moderação de Helena Pereira, editora do Público, o auditório do jornal recebeu na passada quarta-feira, 3 de Julho, a apresentação da colecção Novela Gráfica de 2019. Aposta arriscada, como alguns editores concorrentes fizeram questão de referir na altura, a Novela Gráfica soube conquistar um público próprio, mais alargado do que os habituais coleccionadores de Banda Desenhada e também mais diversificado em termos de género.
Foi esta história de cinco anos que, a editora da Levoir, Sílvia Reig, e o autor deste texto, evocaram, satisfazendo a curiosidade dos interessados quanto ao critérios de selecção das diferentes colecções que, partindo de uma lista inicial de mais de uma trintena de títulos, a que se estão sempre a juntar novos títulos, tem permitido lançar ao logo dos últimos cinco anos, colecções anuais de 12 a 15 volumes, onde clássicos incontornáveis como Mort Cinder, de Oesterheld e Breccia, V de Vingança, de Alan Moore e David Lloyd, Um Contrato com Deus, de Will Eisner, Foi Assim a Guerra das Trincheiras, de Tardi, O Diário do Meu Pai, de Taniguchi, ou Sharaz’De, de Toppi, convivem lado a lado com títulos mais recentes, de autores contemporâneos, principalmente espanhóis, que a colecção deu a conhecer aos leitores, com o sucesso que conhecemos. Mesmo autores, como Paco Roca, ou Jiro Taniguchi que objectivamente já tinham trabalho publicado em Portugal, foi através da colecção Novela Gráfica que se tornaram verdadeiramente populares junto dos leitores portugueses. Outro aspecto abordado, foi a ausência de autores portugueses a partir da segunda série, o que se deve sobretudo à inexistência de propostas inéditas de autores nacionais que se encaixem nos critérios da colecção.
Marcada pela diversidade, de formatos (respeitando sempre o formato original de publicação, algo que causou alguma estranheza inicial aos leitores, mas que foi rapidamente vencida), de temas, de registos gráficos, de nacionalidades, a colecção Novela Gráfica é um bom exemplo de liberdade e de versatilidade. Liberdade e versatilidade que a linguagem da arte sequencial permite. Arte sequencial foi um termo utilizado por Will Eisner, autor que, com Contrato com Deus - título que, não por acaso, inaugurou a primeira colecção, em 2015 - também ajudou a vulgarizar o termo Graphic Novel, que numa tradução mais literal do que exacta, deu origem à Novela Gráfica, expressão usada tanto em Portugal, como em Espanha e no Brasil.
Naturalmente, esta quinta série reflecte essa aposta firme na liberdade e na diversidade, juntando clássicos como Frango com Ameixas,de Marjane Satrapi, Goradze: área de Segurança, de Joe Sacco, A Febre de Urbicanda, de Schuiten e Peeters, ou Como uma Luva de Ferro Forjada em Aço, de Daniel Clowes, a títulos extremamente recentes como O Tesouro do Cisne Negro, de Paco Roca e Guillermo Corral, ou Neve nos Bolsos, de Kim e obras estética e narrativamente mais arriscadas como O Número 73304-23-4153-6-96-8, de Thomas Ott, uma história inteiramente sem palavras ilustrada usando a técnica da grattage, que assinala a estreia em Portugal do autor suíço
Aproveitando o facto de O Tesouro do Cisne Negro, de Paco Roca e Guillermo Corral, título que abre esta colecção, ser inspirado em factos reais, presenciados pelo próprio Corral, mais concretamente no caso verídico, cujos desenvolvimentos o Público acompanhou, da fragata espanhola Nuestra Señora de las Mercedes, afundada no século XVII em águas territoriais portuguesas, junto à costa algarvia, que foi saqueada pela empresa americana Odyssey, liderada pelo conhecido caçador de tesouros Greg Stemm, a apresentação da colecção foi pretexto para uma interessantíssima conversa sobre as ameaças ao património subaquático, com Alexandre Monteiro, arqueólogo e Investigador da Universidade Nova de Lisboa (que prefaciou a edição portuguesa de O Tesouro do Cisne Negro ) e Paulo Costa, Investigador do Instituto de História Contemporânea.
Alexandre Monteiro explicou o método de funcionamento destas empresas de caçadores de tesouros, que quando descobrem um achado vão lá e destroem todo o contexto, aspirando literalmente os destroços, porque só lhes interessam mesmo os objectos de valor. Estas são empresas cotadas em bolsa, que mais do que dos tesouros que conseguem encontrar/pilhar, vivem do investimento dos seus accionistas - que adiantam dinheiro com mira nos lucros de tesouros fabulosos, que normalmente não passam de miragens - e que se aproveitam da fraqueza dos Estados com quem negoceiam.
A esse respeito, a situação que se passou em Cabo Verde é exemplar: “uma dessas empresas estabeleceu um protocolo como Governo, segundo o qual ficariam com todos os objectos descobertos repetidos, como moedas, mas deixando aos países a possibilidade de guardar os itens únicos. Só que, e é aqui onde está o truque, ressalvando a possibilidade de lhes cobrar a despesa de retirar esse objecto do fundo do mar. Na prática, quando no naufrágio de Passa Pau foi descoberto um astrolábio seiscentista banhado a prata e o Estado o quis guardar, apresentaram uma despesa de várias centenas de milhares de dólares. O resultado foi que o instrumento acabou vendido pela Sotheby’s, sem qualquer benefício para o país.”
Como explicou Paulo Costa, no caso dos navios de guerra do século XX, afundados durante as duas Guerras Mundiais, o que interessa aos caçadores de tesouros já não é o conteúdo dos navios, mas sim o seu metal, que por estar submerso antes do início da era atómica, em 1945, não tem vestígios de radiação, o que torna esse metal mais valioso.
Enquadrada com a realidade, a história contada por Roca e Corral ganha outra pertinência, até porque o que se passou com a Nuestra Señora de las Mercedes, ameaça repetir-se em 2019 com a nau Santa Rosa, uma embarcação portuguesa de 66 canhões, carregada com dezenas de toneladas de ouro, afundada em 1726, com 700 portugueses a bordo, que se encontra em águas territoriais brasileiras, ao largo do Cabo Santo Agostinho, Pernambuco. Um navio já localizado em 1998, mas que só agora, com a subida de Bolsonaro ao poder, o Governo brasileiro concedeu autorização à Odyssey, a Ithaca do Cisne Negro para operações de resgate deste navio português.
Resta esperar que o Governo português mostre a mesma coragem com a Santa Rosa que o Governo Espanhol demonstrou com a Nuestra Señora de las Mercedes. Embora a situação seja bastante melhor, desde que em 1997, Manuel Maria Carrilho revogou a lei promulgada por Santana Lopes, que abria a porta à concessão de partes da costa a empresas privadas para levantar naufrágios históricos e nesse mesmo ano foi criada uma lei para a arqueologia subaquática, que permitiu a Portugal ser um dos primeiros países a aderirem à Convenção da UNESCO para Protecção do Património Cultural Subaquático, a falta de meios continua a ser gritante.
Publicado originalmente no jornal Público de 11/07/2019
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