Este volume, que é um dos meus favoritos da colecção, deveria logicamente ter publicado primeiro do que Herança Maldita, o vol 2 da colecção, cuja acção não só é posterior, mas deriva directamente dos acontecimentos narrados neste volume, mas por razões comerciais, a DC achou melhor publicar primeiro a história em que Batman conhece e treina o seu filho, do que a saga em que conhece Talia, a mãe do seu filho e esse filho é gerado... Por isso, se por acaso ainda não leram nenhum dos volumes, sugiro que comecem por este e só depois leiam o Herança Maldita...
BATMAN CONTRA O DEMÓNIO
Se quisermos encontrar a palavra que melhor define a passagem de Neal Adams e Denny O'Neil pela série Batman, entre os finais dos anos 60 e inícios da década de 70, essa palavra será mudança. Uma palavra que traduz bem o zeitgeist (espírito da época) de uma América a braços com a guerra do Vietname e a ainda a recuperar do pesadelo da morte de Kennedy, que assinalou o princípio do fim do sonho americano, que o escândalo de Watergate que levou à demissão de Nixon em 1974, enterraria de vez.
Nessa América em mudança, é natural que os jovens leitores já não se identificassem com a versão kitsch do Batman que marcou a década de 60, de que a série televisiva com Adam West foi o expoente máximo em termos mediáticos. Daí a necessidade de criar um novo herói para uma nova era, um Batman mais sombrio e realista, na linha da dura realidade que rodeava os leitores. Julius Schwartz, o editor da DC encarregue da personagem, sabia quem eram os homens certos para esse trabalho e optou por reunir novamente o escritor Denny O'Neil com o desenhador Neal Adams, depois da revolucionária passagem da dupla pela série Lanterna Verde/Arqueiro Verde, de que poderemos ler uma selecção dos melhores episódios no próximo volume desta colecção.
Se Adams, com o seu traço único, que alia um realismo fotográfico a uma planificação dinâmica e espectacular, já tinha desenhado e modernizado a imagem de Batman na série The Brave And the Bold, ilustrando histórias de Bob Hanney, O'Neill, que começou a sua carreira como repórter especializados em assuntos criminais, vai introduzir uma série de alterações na vida da personagem, que farão com que os leitores percebam que estão perante um novo Batman, um Batman diferente. Para além do tom das histórias, mais sombrias e realistas, essas mudanças passam pela ida de Robin para a Universidade de Hudson, colocando fim ao duo dinâmico e levando Bruce Wayne a trocar a Mansão Wayne, demasiado grande para ele e o seu mordomo Alfred viverem lá sozinhos, por um luxuoso apartamento com terraço no centro de Gotham. Mas, a mais importante de todas essas mudanças e aquela que nos interessa especialmente foi o aparecimento de um novo inimigo do Batman, um inimigo diferente, sem uniformes vistosos, ou superpoderes, mas com os meios, a motivação e o intelecto que lhe permitem afirmar-se como uma tremenda ameaça para o Cavaleiro das Trevas. Esse vilão é Ra's Al Ghul.
Com um nome de origem árabe, sugerido por Schwartz, que numa tradução literal significa "cabeça do demónio", Ra's Al Ghul revela-se um adversário poderoso, com a perspicácia e os meios que lhe permitem descobrir a identidade secreta de Batman. Um homem a quem o Poço de Lázaro, dispositivo que lhe permite regenerar o corpo, dá uma espécie de imortalidade, e que está obcecado com a sua missão de transformar o mundo decadente que o rodeia num mundo melhor, sem crime, nem poluição. Uma missão que pretende cumprir a todo o custo, independente dos milhões de pessoas que seria preciso sacrificar para tornar esse sonho realidade. E que, embora tenha pelo Batman grande respeito e até admiração, não hesitará em matá-lo, caso o Cavaleiro das Trevas se atravesse no seu caminho.
O nome de origem árabe e o uso do terrorismo como meio de impor a sua ideologia, poderão levar alguns leitores a ver na personagem de Ra’s Al Ghul uma alusão, mais ou menos indirecta, ao terrorismo islâmico, mas esta é claramente uma interpretação abusiva, pois na época o terrorismo não era ainda um tema que tivesse grande impacto no público americano, para além de ser então, tanto na Europa como Médio Oriente, um processo mais colectivo, sem um líder carismático e claramente identificável. Parece-nos pois mais provável a interpretação de Jess Nevins, no livro Heroes and Monsters, que defende que a filiação de Ra’s Al Ghul vem mais de personagens da literatura pulp, como o Dr. Fu Manchu, de Sax Rohner. E a verdade é que Ra’s Al Ghul partilha com o Dr. Fu Manchu uma série de características, para além da origem não ocidental. Ambos são autênticos génios que pretendem a todo o custo moldar o mundo aos seus ideais. Os dois comandam uma rede de assassinos bem treinados, a Liga das Sombras de Al Ghul e os Si-Fan de Fu Manchu. E ambos têm filhas belas e independentes, Talia e Fah So Luee, que se vão envolver romanticamente com os inimigos dos pais, Batman e Sir Denis Nayland Smith
E a sua filha Tália é outro aspecto que torna Ra’s Al Ghul uma personagem fundamental do universo DC. Uma mulher fatal, tão bela quanto perigosa, que se vai tornar o grande amor de Batman, apesar de muitas vezes estarem em lados diferentes da barricada. E essa história de amor, que as actividades criminosas de Talia e do seu pai, tornam proibido, vem revelar uma dimensão mais humana do Cavaleiro das Trevas, dividido entre o amor e o dever.
Curiosamente, Talia até aparece antes do pai nas aventuras do Batman, salvando a vida do herói numa história publicada em Maio de 1971 no nº 411 da revista Detective Comics, que O’Neil escreveu para os desenhos de Bob Brown e Dick Giordano e que, por uma questão de espaço não incluímos neste volume. E se o nome de Ra’s Al Ghul é aqui referido pela primeira vez, a sua primeira aparição física acontece apenas um mês depois, na história A Filha do Demónio, que abre este volume, em que Dick Giordano passa a tinta os desenhos de Neal Adams, de quem, curiosamente, era o editor na série Deadman. A imagem imediatamente identificável de Ra’s Al Ghul, com a testa larga, ausência de sobrancelhas que acentuam o olhar penetrante, nariz aquilino e lábios finos, é da inteira responsabilidade de Adams, que quis desenhar uma personagem que fosse imediatamente reconhecível, mesmo sem um uniforme colorido. Como refere O’Neil numa entrevista: “ na altura, não tinha nenhuma ideia para o visual dele. Foi uma surpresa quando vi o que Neal tinha feito com a personagem. Mas foi uma surpresa muito agradável.”
Embora o trabalho de Denny O’Neil com Ra’s Al Ghul seja incontornável, tanto nas histórias que escreveu para Neal Adams, como em trabalhos posteriores, como a novela gráfica Birth of the Demon, ilustrada por Norm Bretfogle que explora o passado de Al Ghul, entre a história e a lenda, O’ Neil não foi o único a utilizar a personagem em histórias com grande impacto na mitologia do Cavaleiro das Trevas. Para além de inúmeros exemplos na Banda Desenhada, veja-se a trilogia cinematográfica que Cristopher Nolan dedicou ao Cavaleiro das Trevas, em que Ra’s Al Ghul e a Liga das Sombras têm um papel fundamental, no primeiro e no terceiro filme.
Outro exemplo da importância de Ra’s Al Ghul na mitologia do Batman é O filho do Demónio, a novela gráfica de Mike W. Barr e Jerry Bingham que encerra este volume. Uma história épica, ilustrada de forma dinâmica por Bingham, com os cenários a acção e a grandiosidade dos melhores filmes de James Bond, em que Batman e Ra’s Al Ghul se aliam para derrotar Quain, um fanático religioso que tinha sido responsável pela morte da mãe de Talia e pretendia provocar a 3ª Guerra Mundial. É nesta história que se desenvolve até às últimas consequências o romance entre Batman e Talia. Uma complexa história de amor, finalmente consumado, e que vai dar origem a um filho.
Filho de cuja existência Batman só terá conhecimento anos mais tarde, quando Grant Morrison decide reintegrar Damian - assim se chama a criança que Talia vai criar e educar como um guerreiro - na continuidade oficial do Cavaleiro das Trevas. Isso aconteceu numa história que os leitores puderam acompanhar na saga Herança Maldita, já publicada no volume 2 desta coleção.
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