terça-feira, 17 de setembro de 2013
O Sangue e as Cinzas
Um dos períodos mais fascinantes da História da Humanidade, o Império Romano tem sido fonte de inspiração constante para os autores franco-belgas de BD. Basta pensar em séries como “Alix”, ou até mesmo “Astérix”, cuja acção se situa durante o governo de Júlio César. Mas, com a excepção desses clássicos, nas últimas décadas a Roma imperial deixou gradualmente de ser cenário habitual de aventuras, tanto na BD como no cinema. Se no cinema, o sucesso de um filme como “O Gladiador”, de Ridley Scott parece ter ressuscitado o “Peplum”, já na BD esse regresso dá-se mais cedo, em 1998, com “Murena”, a série de Dufaux e Delaby, que a Asa continua a editar no mercado nacional, tendo conseguido “apanhar” a edição francesa, com a publicação quase simultânea neste Verão dos tomos 8 e 9.
Argumentista de séries como “Rapaces” e “Jessica Blandy”, Dufaux já tinha tentado uma incursão pela BD histórica com a série “Giacomo C.”, passada na Veneza do século XIX, mas este “Murena” é claramente a sua aproximação mais feliz ao género e um dos seus trabalhos mais consistentes. Embora aqui, para além do talento narrativo de Dufaux, cuja eficácia é inquestionável, há também que contar com a grande riqueza do material que lhe serve de inspiração, pois a história do Império Romano, com todo um cortejo de sexo, violência, intrigas palacianas e corrupção, tem todos os ingredientes para prender o leitor, mais facilmente até do que uma história de ficção.
E “Murena”, aproveita muito bem o pano histórico em que se desenrola a acção, introduzindo personagens ficcionais num contexto histórico real, que acaba por ser o mais interessante da narrativa inventada por Dufaux, em que a lenda se apoia na História. Nesse aspecto, o jovem Murena, filho de Lola Paulina, a amante do Imperador Cláudio, que dá nome ao livro, revela-se um personagem muito menos interessante do que a personagem real de Agripina, a mãe de Nero, que tudo fez para colocar o seu filho no trono de Roma, ou do que o próprio Nero, em grande destaque nos mais recentes volumes da série.
E os dois últimos volumes centram-se precisamente no grande incêndio que quase destruiu Roma e que a lenda (e o romance “Quo Vadis” e o filme que o adapta) atribuiu a Nero, mas que nesta história resulta de um acto acidental de Lucius Murena.
Mas se a autoria do incêndio de Roma nunca foi provada, sendo um acidente a hipótese mais provável, a verdade é que o incêndio criou o pretexto ideal para uma perseguição aos cristãos, que o Imperador Nero não soube, não quis, ou não pode evitar. Por isso, mais do que Murena, é São Pedro que assume o protagonismo neste nono volume, que culmina com o seu martírio.
A eficácia do argumento de Dufaux tem correspondência, em termos gráficos, no traço clássico e pormenorizado de Philippe Delaby, um desenhador belga, com grande traquejo em termos de BD histórica (logo em 1994 ganhou o Prémio Clio atribuído pelo Salon Historique de Paris, com o álbum “Richard Coeur de Lion”, escrito pelo veterano Yves Duval) cujas páginas revelam um sólido trabalho de documentação e um apurado sentido narrativo. E, para quem acompanha a série deste o início, é evidente o modo como o traço de Delaby foi ganhando leveza, personalidade, e um espectacular sentido de composição, que brilha a grande altura no volume oito, dedicado ao incêndio de Roma. Não restam grandes dúvidas que Delaby é um dos grandes desenhadores realistas da actualidade, e o seu trabalho em “Murena”, onde é muito bem secundado pelo excelente trabalho de cores de Sebastien Girard, é a prova disso mesmo.
Agora que a edição portuguesa está finalmente a par com a original francesa, seria bom que a Asa reeditasse os volumes 1 e 2 da série, há muito esgotados, para que mais leitores possam descobrir uma das grandes séries franco-belgas das últimas décadas.
(“Murena 8: A Vingança das Cinzas”, de Dufaux e Delaby, Edições Asa, 56 pags, 16,50 €
“Murena 9: Espinhos”, de Dufaux e Delaby, Edições Asa, 48 pags, 16,50 €)
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 14/09/2013
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