De todos os volumes desta colecção, este é o meu favorito! Também por isso, para além da selecção das histórias e do editorial, fiz questão de traduzi-lo. O editorial não sofreu qualquer alteração por parte da DC, pelo que a maior limitação foi mesmo o espaço disponível, que não me permitiu falar deste punhado de histórias incontornáveis, com o desenvolvimento que justificam. Espero vir a fazê-lo brevemente.
OS TEMPOS ESTÃO A MUDAR
The Times They Are a-Changin', cantava Bob Dylan em 1964 no tema título do seu terceiro álbum. E nos anos seguintes, um pouco por todo o lado, esses sinais de mudança tornavam-se cade vez mais evidentes. Os EUA estavam envolvidos na Guerra do Vietnam, de onde só sairiam, derrotados, em 1973. O reverendo Martin Luther King Jr., opositor declarado à guerra no Vietnam, que em 1964 tinha ganhado o Prémio Nobel da Paz, pelo seu combate não violento contra a discriminação racial, é assassinado em Memphis, no Tennessee, em Abril de 1968. Precisamente um mês antes de estalar em Paris uma revolta estudantil que pretendia levar “a imaginação ao poder”. Um mês depois, a 5 de Junho, em Los Angeles, o Senador Robert Kennedy, que seguindo as pisadas do irmão, se tinha candidatado à presidência dos E.U.A., tem o mesmo destino de John F. Kennedy, sendo assassinado a tiro, abrindo o caminho para a vitória de Richard Nixon nas Presidenciais, em Novembro desse ano.
Apenas os super-heróis não se apercebiam dos problemas de um mundo em convulsão, continuando a combater as mesmas ameaças galácticas, derrotando pela enésima vez os mesmos vilões fantasiados, não se dando conta que o mundo à sua volta estava a mudar. Até que em 1970, o lendário editor Julius Schwartz, um judeu de Nova Iorque apaixonado pela ficção científica e pela fantasia, tendo sido agente de escritores como Ray Bradbury e Robert Bloch, se lembrou de entregar o destino da revista Green Lantern, título então à beira do cancelamento devido às fracas vendas, nas mãos do argumentista Denny O’Neil.
O’Neil, que além de escritor tinha trabalhado como jornalista, procurou trazer para a Banda Desenhada uma mistura de ficção e jornalismo, na linha dos escritores que admirava, os “novos jornalistas” como Norman Mailer, Truman Capote e Hunter S. Thompson e a série Green Lantern podia ser o terreno ideal para essa experiência, de trazer temas do quotidiano socialmente relevantes para um universo dominado pela fantasia.
Como o próprio refere, na introdução a uma reedição da série, em 2004: “O que aconteceria se puséssemos um super-herói num cenário real, tendo que lidar com problemas da vida real? Comecemos pela personagem. O Lanterna Verde era, para todos os efeitos, um polícia. Um polícia incorruptível, obviamente, com intenções nobres, mas um polícia, um cripto-fascista: cumpria ordens, exercia a violência de acordo com as instruções dos seus superiores, cuja autoridade nunca questionava. Se assistia a alguma infração à lei, o seu instinto dizia-lhe para atacar quem não cumpriu a lei, sem se interrogar quanto aos seus motivos. Não foi essa mentalidade que mandou as tropas americanas para a Coreia e o Vietnam? (…) Não é que o Lanterna Verde fosse mau (…) ele apenas nunca teve nenhum motivo para duvidar das suas motivações. Aqui estava um bom ponto de partida. Ia dar-lhe dúvidas.
Enquanto magicava em possíveis histórias, apercebi-me que o Lanterna Verde necessitava de um parceiro, alguém com quem discutir. O Arqueiro Verde era a escolha lógica e não só por causa dos nomes. O Arqueiro Verde era o “bombeiro de serviço” dos heróis da DC. Andava por aí desde 1941, mas nunca foi suficientemente popular para ter uma revista própria. (…) Tirei partido dessa existência fluida numa história da Liga da Justiça, fazendo-o perder a sua fortuna e com isso arrastar os seus amigos para uma crise. Tive autorização para fazer isso porque nenhum dos editores se parecia preocupar muito com ele; ninguém estava minimamente interessado no que acontecia ao Arqueiro Verde. Por coincidência, Neal Adams, tinha alterado a sua aparência, redesenhado o seu uniforme, e acrescentado uma barba, numa história para a revista Brave & Bold, escrita por Bob Haney. Assim, o Arqueiro Verde já tinha um uniforme novo e um estatuto social diferente. Porque não dar-lhe também uma nova personalidade, especialmente porque a antiga era tão indefinida que ninguém sabia bem qual era? Ele podia ser um anarquista saudável e com pelo na venta, em contraste com o calmo e cerebral cidadão-modelo que era o Lanterna Verde. Formariam as duas partes em diálogo sobre os assuntos que decidíssemos abordar nas histórias”.
Embora O’Neil tenha escrito a primeira história pensando que seria o veterano Gil Kane, então o desenhador regular da série, a desenhá-la, Schwartz decidiu entregar essa missão ao jovem Neal Adams, que tinha feito um excelente trabalho ao criar o novo uniforme do Arqueiro e o resultado só veio confirmar a visão de Schwartz na escolha dos autores certos para cada herói.
Vindo da ilustração e da publicidade, Neal Adams concilia o dinamismo próprio dos comics de super-heróis, com um hiper-realismo no tratamento das feições, que se revela extremamente adequado a uma série que introduz os problemas da sociedade moderna, num universo de ficção heroica. Ao longo do livro qua vão ler, são inúmeros os exemplos da excelência do traço dinâmico de Adams e do seu notável talento narrativo. Mas detenhamo-nos apenas numa sequência da primeira história, uma sequência de três quadrados, dos mais reproduzidos da história da BD, em que um velho negro confronta o Lanterna Verde com a sua passividade face ao racismo. A cena passa-se no terraço de um prédio em ruinas, mas esse cenário, mostrado na página anterior, está ausente desta sequência, pois só iria distrair os leitores da importância do diálogo. Em vez disso, a cor dos fundos, diferente nos três quadrados, transmite emoções, desde a raiva do velho negro, simbolizada pelo fundo vermelho, até o desmoronar das certezas do Lanterna Verde, que o fundo cinzento e cheio de ruído, tal como a sua postura, de um homem abatido e envergonhado, bem traduzem.
E, mesmo que o talento de Adams fale por si, não resisto a citar mais uma vez O’Neil, a propósito da arte de Neal Adams: “ele é um indivíduo imensamente talentoso, com uma abordagem própria à arte da Banda Desenhada. No fundo é um realista cuja imaginação consegue esticar os parâmetros das coisas-tal-como-são, de modo a incluir o extravagante e o fantástico. “Se os super-heróis existissem”, disse-me uma vez, “tinham que se parecer com os meus desenhos”.
Nas histórias de Adams e O’Neil, o Lanterna Verde vai trocar os combates intergalácticos a que estava habituado, pela realidade da América profunda, que percorre na companhia do Arqueiro Verde e de um dos guardiões. Uma América onde há racismo, trabalho escravo e a lei protege os corruptos. Uma América que chora a morte dos Kennedy e de Luther King, com uma juventude que procura fugir à ameaça real da guerra do Vietnam refugiando-se na droga. Tudo temas controversos, aqui tratados de forma directa e sem grandes subtilezas. Veja-se o famoso díptico de histórias dedicado ao problema das drogas, em que o Arqueiro Verde descobre que o seu pupilo Speedy, é viciado em heroína. Para além do inesperado de ver um super-herói, mesmo júnior, entregue a um vício mortal, há ainda a posição pouco confortável do Arqueiro Verde, demasiado ocupado a tentar mudar o mundo para se aperceber do drama que tinha em sua casa. Uma história incontornável, que representou um verdadeiro choque para os leitores da época e trouxe a Banda Desenhada para as primeiras páginas dos jornais, para além de ter motivado uma carta de agradecimento do Presidente da Câmara de Nova Iorque, pela forma realista e responsável como um tema tão importante para a juventude, foi tratado.
Nesta série, que embora escrita e publicada no início da década de 70, está firmemente ancorada na década de 60, não falta uma homenagem a Bob Dylan e aos cantores de protesto, através da personagem de Johnny Walden, cuja música incentiva os habitantes de Desolation, uma pequena aldeia mineira, a lutarem contra o dono da mina que os escraviza. Memorável é também a história que encerra este volume, em que a figura de Jesus Cristo é actualizada para o século XX, através de Isaac, um líder ecologista disposto a morrer pelos seus ideais, que acaba crucificado na asa de um avião.
Apesar do impacto que a série teve, e da qualidade e da relevância das histórias que publicaram, a colaboração da dupla limitou-se a apenas doze números, os nºs 76 a 89 da revista Green Lantern publicados entre 1970 e 1972, para além de quatro histórias curtas, publicadas como complemento na revista Flash, entre 1973 e 1974. O seu esforço não foi suficiente para salvar a revista, que foi cancelada no nº 89. Mas então a dupla já estava mais centrada noutra aventura. Reformular o Batman, em histórias inesquecíveis, como as que tivemos o privilégio de ler no volume anterior desta colecção.
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