terça-feira, 27 de agosto de 2013

DC Comics UNCUT 7 - Crise nas Terras Infinitas (Parte 1)



Embora a partir do volume 6, os editoriais tenham sofrido poucas e nenhumas alterações por parte da DC, decidimos continuar a divulgá-los neste blog, até porque em alguns casos, aproveitámos para acrescentar algumas coisas que não couberam na versão impressa, que tem um limite rígido entre os 8.000 e os 9.000 caracteres. Aqui fica pois o texto do José de Freitas para o Volume 1 da Crise nas Terras Infinitas, um dos títulos mais aguardados pelos leitores.

No cruzamento das estradas infinitas

Hoje em dia, a palavra Crise para um leitor da DC significa exactamente a saga que o leitor tem neste momento em mãos, a Crise nas Terras Infinitas. Mas ao longo das décadas, houve muitas outras Crises, que ajudaram a consolidar um dos aspectos mais marcantes do universo DC, o multiverso dos super-heróis que está na origem desta saga.

Em 1961, na história Flash of Two Worlds (Flash#123, Set. 1961 USA), as barreiras entre mundos quebravam-se. O Flash conseguia atravessar as dimensões e chegar a uma outra Terra, onde encontraria outro Flash, o Flash da Golden Age dos comics, dos anos 40. Baptizada Terra-2, os leitores descobririam rapidamente que nessa Terra os heróis da Terra-1, o mundo em que decorriam as aventuras que a DC publicava então, eram personagens de ficção para os heróis da Terra-2. A DC descobria assim uma solução brilhante para explicar porque razão os heróis cujas aventuras então contava não tinham envelhecido, ou tinham mudado de personalidade ou poderes: as aventuras dos anos 40 tinham decorrido num mundo paralelo, diferente do actual. Ao mesmo tempo, esta solução permitia à DC reutilizar muitas dessas personagens antigas, ressuscitando os heróis da Golden Age, o que inaugurou a época das Crises - números especiais que saíam anualmente e em que se juntavam os super-heróis da Terra-1 com os da Terra-2. Assim, logo em 1963 era lançada a história Crise na Terra-1 nas páginas da revista Justice League of America #21, a que se seguiria uma Crise na Terra-2 no número seguinte. E no ano seguinte a Crise saltaria para a Terra-3 - baptizada o mundo mais perigoso de todos, porque os heróis que os leitores conheciam tão bem eram aqui vilões!

E o número de Terras iria crescendo, lentamente formando um vasto multiverso em que era possível encontrar as variações mais incríveis e por vezes fantasiosas. Nalgumas Terras a DC instalou outros super-heróis que não pertenciam originalmente ao seu universo, e que tinha absorvido através da aquisição de outras empresas. Noutros casos, os conceitos foram ainda mais longe. Na Terra-2, os heróis da Terra-1 eram personagens de ficção (e vice-versa na Terra-1), mas e os autores? Quem eram? Pouco tardou para que os próprios autores da DC aparecessem nalgumas destas histórias, com ramificações filosóficas e meta-ficcionais aparentes. O Flash é atirado para a nossa Terra real, e procura "o único homem neste mundo que será capaz de acreditar em mim e ajudar-me, o editor daquela revista de comics do Flash"! O multiverso expandia-se como uma função de onda quântica, explorando todos os estados possíveis dos comics, qual gato de Schrödinger, ao mesmo tempo morto, vivo, e todos os estados intermédios! Mas uma tal explosão de criatividade trouxe consigo vários problemas, e o multiverso estava só à espera de aparecer um observador capaz de colapsar essa onda de mundos, de lhes dar um estado determinado, de decidir se o gato estava morto ou vivo.

Esse colapso da função de onda do universo DC viria em 1985, pela ocasião do 50º aniversário da editora, num evento colossal, a Crise que têm nas mãos, já não Crise da Terra-2 ou Terra-3, ou mesmo da Terra-8, mas Crise nas Terras Infinitas! A continuidade do universo DC tinha atingido uma complexidade tremenda, e para um leitor novo podia parecer demasiado avassaladora. Um único universo já representa um "mundo" de dificuldades, quanto mais quando esse mundo se multiplica por inúmeros mundos paralelos. Para além disso, todas estas Terras eram por vezes usadas para justificar histórias menos lógicas, ou como dei ex machina capazes de resolver qualquer dificuldade. O herói morria no início da história, mas o final revelava que era só um duplo de uma das Terras paralelas, por exemplo. Conseguir manter uma continuidade de heróis, com histórias que vinham desde antes da Segunda Guerra Mundial, mas se espalhavam por mundos paralelos, começava a ser uma tarefa hercúlea. A DC decidiu então actualizar o seu universo, criando um mega-evento que iria reorganizar toda a sua continuidade.

O trabalho de criar esta história recaiu sobre o argumentista Marv Wolfman e o artista George Peréz, dois dos nomes maiores da DC, que a completaram sob a forma de uma série de doze números. Nascido em 1946, Wolfman começou a trabalhar para os comics no final dos anos 60, com algumas histórias para Teen Titans da DC, antes de trabalhar durante os anos 70 para a Marvel, tanto como escritor, como editor. Ficou particularmente conhecido pelo seu trabalho em Tomb of Dracula, em colaboração com Gene Colan, ainda hoje considerado um dos melhores comics de terror de todos os tempos. Nos anos 80 regressou à DC, onde voltou a escrever histórias para os Teen Titans, que se tornaram num dos grandes sucessos da editora. Foi aqui que iniciou a sua colaboração com George Pérez. Pérez está indelevelmente ligado à Crise nas Terras Infinitas que o estabeleceu como talvez o maior desenhador de super-heróis da sua época - com ênfase na metade Super da palavra. Pérez nasceu em Porto-Rico em 1954, no seio duma família humilde que se mudou depois para Nova Iorque. Durante os anos 70 estreou-se nos comics em títulos da Marvel, antes de começar a desenhar a série Teen Titans com Wolfman. Foi o seu trabalho nesta série que o estabeleceu e lhe deu fama. Quando os dois foram recrutados para escrever e desenhar a Crise nas Terras Infinitas, a arte de Pérez explodiu de criatividade e atingiu uma escala grandiosa raramente vista nos comics de super-heróis. Ainda hoje os seus desenhos continuam a servir de verdadeira bitola de comparação para todas as histórias à escala cósmica. Pérez está também para sempre ligado à Mulher Maravilha, já que na segunda metade dos anos 80 ajudou a relançar e a recontar a origem desta heroína. Ao longo das décadas seguintes, ambos os autores continuaram a estar ligados ao universo dos super-heróis, com Wolfman a passar também cada vez mais tempo a escrever para a indústria da animação e do cinema, e Pérez a trabalhar em inúmeros projectos de super-heróis, dentre os quais podemos destacar o célebre crossover Liga da Justiça/Vingadores. São dois dos nomes maiores da banda-desenhada americana, e têm a seu crédito dezenas de histórias, personagens e aventuras de entre as mais marcantes de sempre.

A Crise nas Terras Infinitas arrancaria quase um ano antes da mini-série, com o surgimento do Monitor, uma estranha personagem quase omnisciente, que fez breves aparições em muitas histórias da DC ao longo dos meses. Tratava-se duma estratégia original que estabeleceu o carácter misterioso do Monitor e a sua importância. O Monitor era o oposto do Anti-Monitor, o vilão da série, cujo propósito era nada mais, nada menos, do que a destruição de todo o Multiverso, a cuja origem ambos tinham assistido. E para impedir essa destruição, os heróis viajariam até aos fins do tempo, e até ao nascimento do universo, e teriam que se sujeitar por fim ao colapso de infinitas dimensões num só universo, que se transformaria finalmente no único universo dos super-heróis da DC. Toda a continuidade da DC seria reajustada, por vezes retroactivamente. O multiverso anterior, com os seus mundos paralelos infinitos, tinha sido um erro cósmico causado por uma interferência aquando da sua origem, e agora tudo tinha voltado à "normalidade". Esta explicação serviu para racionalizar muitas das decisões editoriais tomadas pela DC, em que algumas personagens desapareceram, outras colapsaram várias encarnações numa só, com uma origem nova, outras saltaram da Terra-2 para a Terra-1 e assim por diante, e as próprias memórias dos sobreviventes se reajustaram a esta nova realidade. Dizemos “sobreviventes”, porque alguns dos maiores super-heróis da DC morreram nesta saga, como veremos no segundo volume.

É impossível exagerar o impacto e a importância desta saga, não só no universo da DC, mas em todo o género dos comics de super-heróis. Foi uma das primeiras vezes em que as decisões editoriais conscientes dos autores, de transformar um universo de modo a reorganizá-lo radicalmente, foram postas tão à vista, mas sem que isso prejudicasse a qualidade da história. Crise nas Terras Infinitas foi assim certamente a melhor prenda que a DC podia ter recebido, e oferecido aos seus leitores simultaneamente, pelo seu aniversário de meio-século: uma saga que lhe proporcionou o fôlego para encarar o meio-século seguinte com confiança e segurança, e com um universo coerente e acabado de renascer. E as histórias fenomenais que uma nova geração de autores criou para a DC no seguimento da Crise, recontando as origens dos maiores heróis de todos os tempos para uma nova geração de leitores, são disso a maior prova.

José Hartvig de Freitas

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