BALAS, BRACELETES E BONDAGE
EMBORA PARTE INTEGRANTE DA TRINDADE DOS HERÓIS DA DC (NA QUAL INVARIAVELMENTE FIGURA EM DESTAQUE, DEVIDAMENTE ACOMPANHADA PELOS OUTROS DOIS ÍCONES SUPER-HOMEM E BATMAN), NÃO SERÁ INJUSTO DIZER QUE A MULHER-MARAVILHA É BASTANTE MENOS CONHECIDA E COMPREENDIDA QUE OS SEUS DOIS COMPANHEIROS PELO PÚBLICO EM GERAL
O que não é de admirar, tendo em conta que os puristas da personagem — que goza da afeição de alguns dos mais ferrenhos e dedicados fãs do mundo dos comics — consideram que a maior parte dos autores que escrevem sobre a Mulher-Maravilha também não a compreendem nem sabem tratar com a devida justiça. Em defesa destes autores, há que dizer que a personagem tem origens no mínimo conturbadas, debate-se com uma série de contradições que estão na base do seu ser e, directamente ou por tabela, sofreu talvez o maior número de crises de identidade de qualquer outro super-herói: embaixadora, pacifista, guerreira, símbolo sexual, deusa, porta-estandarte do feminismo, ícone americano, virgem imaculada e mandatária de práticas sexuais alternativas. Quer sejam ou não actualmente reconhecidas, todas estas facetas em nada facilitam a tarefa de ir ao cerne da questão essencial à abordagem convincente a qualquer figura fictícia: quem é esta personagem? Quem é, afinal de contas, a Mulher-Maravilha?
Criada em 1941 pelo psicólogo e escritor William Moulton Marston, que sentia haver uma lacuna por preencher no meio dos comics, a Mulher-Maravilha foi concebida como um novo tipo de super-herói: uma mulher que triunfaria, não através da violência, mas do amor. Para criar a personagem, Marston inspirou-se em Elizabeth, a sua esposa, e Olive Byrne, a amante que com eles vivia numa relação polígama. Baseada nas características a que essas duas mulheres emancipadas davam corpo — e mesmo no guarda-roupa e nos acessórios que uma delas usava, segundo reza a história — a Mulher-Maravilha seria, segundo Marston, propaganda psicológica para um novo tipo de mulher que, a ver dele, deveria mandar no mundo (Marston especializara-se em Estudos de Género, e uma das suas teorias defendia que os EUA se tornariam num matriarcado). Uma heroína logo à partida pouco convencional, portanto.
Nessa génese reside logo uma das primeiras contradições inatas que caracterizam a personagem: Marston quis criar uma super-heroína por achar que a falta de força e poder dos arquétipos femininos tinha como consequência o facto de as raparigas já nem quererem «ser raparigas». Dessa forma, não desejariam ser ternas, submissas e pacíficas, as qualidades que, segundo Marston, eram desprezadas devido à sua fraqueza inata. A solução passaria, portanto, por criar uma personagem feminina que tivesse a força do Super-Homem e a complementasse com os encantos de uma mulher bela e sã de espírito, ensinando dessa forma às jovens raparigas as virtudes da submissão através de uma heroína insubmissa, cujo tremendo poder as deixaria mais aberta à ideia de serem... submissas. E não só: originalmente, a Mulher-Maravilha era Diana, princesa de uma tribo de amazonas que residiam num matriarcado na chamada Ilha Paraíso, onde homem algum alguma vez assentara pé. Além de ser a campeã de uma raça de mulheres já de si detentoras de atributos físicos e psíquicos sobre-humanos, Diana fora moldada a partir de argila por Hipólita, rainha das amazonas, e a deusa Afrodite concedera-lhe vida — uma história com assumidos paralelos com a de Pigmaleão, rei de Chipre, que esculpiu a mulher ideal e desejou de forma tão ardente que ela vivesse, que Afrodite se compadeceu dele e concedeu vida à estátua. Em suma: uma forma de vida artificial com super-poderes, nascida num berço dourado e criada numa sociedade isolacionista deveria inspirar jovens raparigas a quererem «ser raparigas». Mas adiante.
Quando um avião americano se despenha na Ilha Paraíso, Diana salva o piloto, naquele que é o seu primeiro contacto com um homem, e apaixona-se por ele, voluntariando-se e ganhando posteriormente o direito de o levar de volta ao «mundo do Homem», ao vencer um desafio decretado pela sua mãe. A princesa segue então com o piloto para os EUA, onde ganha pela primeira vez o cognome de «Mulher-Maravilha» e onde se torna num ícone americano, vestida a rigor (ou despudor, a avaliar pelo código de vestuário que lhe foi subsequentemente imposto, cobrindo as suas costas descaradamente expostas) com as cores da bandeira ao combater forças nazis e, ocasionalmente, super-vilões ao lado do seu amado. As suas aventuras cedo lhe mereceram um lugar na Sociedade da Justiça da América — o primeiro grupo de super-heróis da história dos comics — na qual, apesar de ser dos membros mais poderosos, recebeu de pronto o não lá muito prestigiante título de secretária. A razão da notoriedade da Mulher-Maravilha não se prendeu, contudo, tanto com o facto de ser uma super-heroína num meio dominado por homens, mas sim com o elemento que desde então tem estado inextricavelmente ligado a toda a mitologia da personagem: o subtexto de bondage. Marston era adepto de práticas sexuais alternativas, e explorou a fundo o conceito de submissão, que implementava regularmente nas histórias da personagem que criou; consta que há um painel da Mulher-Maravilha numa situação de bondage em quase todos os números escritos por Marston, e muitas das capas retratam a heroína aprisionada às mãos de homens, presa com correntes, grilhetas ou corda. Tão transversal era este aspecto à realidade da Mulher-Maravilha, que mesmo os famosos braceletes que a heroína usa (habitualmente para desviar balas, numa pose que se tornou icónica) são símbolos da derrota e cativeiro das amazonas às mãos de Hércules, e foram durante muito tempo conhecidos como os «braceletes da submissão», com os quais as amazonas juraram fidelidade a Afrodite. O que por sua vez deu origem à chamada «Lei de Afrodite», segundo a qual uma amazona perderia os seus poderes caso se visse acorrentada ou atada por um homem(!), algo que sucedeu bastantes vezes ao longo da carreira da Mulher-Maravilha. Consta que a situação chegou a um ponto tal, que foi pedido a Marston que reduzisse em 50-75% o número de situações nas quais a heroína se via acorrentada. Quase caso para dizer que a Mulher-Maravilha era um comic «maroto», portanto.
Mas os inimigos também não escapavam a esse tratamento, e mesmo neste tomo temos várias instâncias de pessoas presas ou atadas em contexto de submissão (conseguirá o caro leitor encontrá-las a todas?). Supostamente, tudo isto estava relacionado com o contexto alargado em que o criador da Mulher-Maravilha via os elementos de bondage e submissão, estabelecendo uma ligação entre eles e as suas teorias acerca da reabilitação de criminosos (Marston trabalhara como psicólogo numa prisão). E, diga-se em abono da verdade, no início da carreira a Mulher-Maravilha não era de facto adepta de bater em criminosos e metê-los na prisão, mas sim de os reabilitar. Uma das pedras basilares dessa abordagem era o conceito da «submissão amorosa», segundo a qual a bondade para com outros resultaria em submissão voluntária derivada de ágape, o vínculo que liga duas almas que se compreendem mutuamente, tal como preconizado pelos antigos. Já com os homens a coisa talvez não fosse tão romântica assim, pois os escritos de Marston defendiam a ideia de que as mulheres não só podiam, como inevitavelmente acabariam por escravizar homens através do sexo, dominando-os dessa forma.. É aqui que entra um dos mais conhecidos elementos da Mulher-Maravilha: o Laço da Verdade, mais um elemento de bondage, este com o condão de obrigar as pessoas a dizerem a verdade (apropriado, tendo em conta que Marston, verdadeiro polímata, foi pioneiro da ideia básica por detrás do polígrafo, embora a importância do seu papel na concepção do engenho seja ponto de discórdia). No entanto, durante vários anos não houve qualquer alusão a um «laço da verdade»: era apenas o «laço mágico» ou o «laço dourado», e o seu o único condão era o de obrigar quem por ele era atado a obedecer à pessoa que o prendera. Embora pudesse de facto ser usado para obrigar alguém a dizer a verdade, não deixava de ser essencialmente uma ferramenta de dominação, bem como uma extensão do poder de sedução e coerção feminino que está ao alcance de qualquer mulher, e que Marston tanto invocava como o motivo pelo qual deveriam ser as mulheres a mandar no mundo. O laço apenas viria a ser oficialmente conhecido como o «Laço da Verdade» uns quarenta anos mais tarde, quando a faceta bondage da Mulher-Maravilha estava já reduzida a mero elemento folclórico da sua história. Antes disso, todavia, houve uma série de televisão de culto, com a vistosa Lynda Carter no papel principal (EUA, 1975), que até hoje continua a ser a maior afirmação de notoriedade da personagem. Nesta série, o laço da Mulher-Maravilha obrigava as pessoas a dizerem a verdade, mas de resto não tinha o poder de obrigar ninguém a fazer coisa nenhuma, o que o tornou um objecto um pouco menos sujeito às piadas de índole sexual que durante anos tinham perseguido a Mulher-Maravilha — até porque a personagem já recebera entretanto uma «limpeza» de imagem após passar das mãos de Marston para as de outros autores na década de 50. O feminismo radical tornou-se mais moderado e os elementos helénicos e mitológicos passaram a representar um papel mais importante nas histórias da personagem, cujos poderes se deviam agora explicitamente às bênçãos dos deuses gregos: a beleza de Afrodite, a sabedoria de Atena, a celeridade de Hermes e a força de Hércules. Aqui reside mais uma contradição da personagem: aquela que se queria como o modelo feminino arquetípico a seguir por todas as mulheres era, na verdade, um receptáculo divino, cujos atributos físicos lhe tinham sido concedidos por deidades masculinas, e logo por uma que escravizara a sua tribo em tempos. Uma contradição da qual os autores pareceram cientes, afirmando que Diana era tão sábia quanto Atena e tão bela quanto Afrodite, mas mais forte do que Hércules e mais rápida do que Hermes, num algo chauvinista jogo de semântica. Tudo isso deixou de fazer diferença nos anos 60, altura na qual, salvo algumas excepções, a popularidade dos super-heróis estava em queda. Em resposta ao zeitgeist de então e à popularidade de séries televisivas de espiões como Os Vingadores, a Mulher-Maravilha prescinde dos seus poderes, uniforme e título, assumindo em definitivo a identidade de Diana Prince e tornando-se numa agente secreta à imagem de Emma Peel. Dos seus anteriores elementos restava apenas o ubíquo bondage e os laivos feministas, mas as histórias de guerra e super-vilões deram lugar a aventuras de espionagem, artes marciais e — num claro sinal dos tempos — a abertura de uma butique de acessórios da subcultura mod. Esta fase durou até ao início dos anos 70, quando a Mulher-Maravilha recuperou os seus poderes e voltou à primeira forma, chegando ao ponto de regressar no tempo à 2ª Guerra Mundial, como para matar saudades. Esta reviravolta deu-se muito por culpa da activista feminista Gloria Steinem, que crescera a ler a Mulher-Maravilha e que se insurgiu numa série de artigos e ensaios contra aquilo que via como um rebaixar do estatuto da mais famosa super-heróina de todas. Tudo viria a mudar novamente em 1985, na Crise das Terras Infinitas (também a não perder nesta colecção). Neste evento sem precedentes, a DC Comics premiu o botão «Reiniciar» para todo o seu universo, e a Mulher-Maravilha não foi excepção, vendo novamente alterados vários aspectos da sua história, desta feita pela mão do lendário George Pérez. A origem a partir da argila manteve-se, mas os deuses que concederam os poderes a esta encarnação da personagem eram algo diferentes: a beleza de Afrodite, a sabedoria de Atena, a habilidade de discernir a verdade de Héstia, a perícia na caça de Artemisa e a força de Deméter, que substituiu Hércules — apenas a celeridade de Hermes se manteve como contributo masculino no cardápio divino. Também o papel da Mulher-Maravilha mudou, passando a ser emissária e embaixadora de Temiscira (o novo nome da Ilha Paraíso, baseado na cidade ancestral das amazonas da mitologia grega), com a missão de promover a paz no mundo do patriarca, pronta a lutar por ela, caso necessário. Nova contradição: uma embaixadora proveniente de um meio homogéneo, matriarcal e hermético, que, com o intuito de pregar a paz, vem guerrear para um mundo heterogéneo para além da sua compreensão e sujeitá-lo a ameaças mitológicas que, de outra forma, talvez o tivessem deixado sossegado.
Muita coisa aconteceu à personagem desde então, e este editorial não tem espaço para tanto, mas com o intuito de preparar o leitor para as histórias contidas neste tomo, bastará dizer que, no espaço de quase trinta anos e entre uma série de crises de identidade, a Mulher-Maravilha encontrou uma tribo de amazonas rebeldes no Médio-Oriente, foi substituída, morta, promovida a deusa da verdade, destituída do Olimpo, substituída pela sua mãe Hipólita, forçada a assistir à destruição da Ilha Paraíso e obrigada a matar um homem a sangue-frio para salvar os seus companheiros. Situações complicadas que certamente em nada ajudaram à tarefa de Phil Jimenez e Allan Heinberg, os escribas de serviço nas duas histórias aqui apresentadas. O primeiro é considerado por muitos o discípulo do supra-referido George Pérez, e o seu capítulo Paraíso Perdido explora com sinceridade as consequências de um meio hermético como a Ilha Paraíso abrir as suas portas a pessoas do mundo exterior, ainda que essas pessoas sejam irmãs amazonas de uma outra tribo. O segundo é mais conhecido pelo seu trabalho como argumentista da série televisiva Anatomia de Grey, tendo sido recrutado para dar uma nova demão à personagem após tantos e tão traumáticos eventos, tarefa que não enceta de ânimo leve no capítulo Quem é a Mulher-Maravilha, que dá o nome a este volume.
Quem é ela, então? Ou melhor, o que é a Mulher-Maravilha? Pacifista ou guerreira nata? Porta-estandarte feminista ou símbolo do amor para homens e mulheres em igual medida? Apologista do bondage ou defensora da liberdade? Deusa grega ou estátua de argila com pretensões de humanidade? A resposta é simples: tudo isso. Mais do que qualquer outro super-herói, a Mulher-Maravilha é mais ícone do que personagem, como o prova o facto de que, ao longo de mais de 70 anos de história, houve quatro Mulheres-Maravilha, todas elas presentes neste tomo, e praticamente todos os elementos dessas décadas ainda se fazem sentir de uma forma ou de outra na actual encarnação da heroína. Contraditório? Até pode ser. Mas, da mesma forma que a contradição está enraizada na condição humana, será porventura essa a principal característica que torna mais familiar uma estátua de barro com poderes divinos, e que fez da Mulher-Maravilha uma figura com inegável e duradouro apelo multigeracional. Alguns dirão que a popularidade dela se deve apenas aos seus atributos físicos e indumentária reveladora, mas, num meio como o dos comics, em que todas as mulheres são bonitas e 86-60-86 (para cima, baixo e cima, respectivamente) é necessário algo mais para uma personagem se tornar na mais famosa das super-heroínas. E foi esse «algo mais» abordado neste editorial e explorado nos seguintes capítulos, a par de uma série televisiva de sucesso, o que lhe mereceu o lugar no pódio da Trindade dos heróis da DC.
FILIPE FARIA
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