Tal como no volume anterior, o prefácio deste primeiro volume dedicado a Dylan Dog também é meu. Depois de Mater Morbi, é sempre um prazer voltar a escrever com espaço sobre um dos meus personagens de BD favoritos. Aqui vos deixo com o prefácio e com o texto que escrevi para o Público sobre este volume e que poderão ler clicando na imagem.
UM FREAK CHAMADO JOHNNY
Qualquer História da Banda Desenhada que o leitor consulte, assinala o ano de 1986 como um ano-charneira em termos da evolução da arte sequencial. Basta lembrar que foi nesse mesmo ano que foram publicadas obras absolutamente seminais como Maus, de Art Spiegelman, Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons e O Regresso do Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller.
Mas não foi só nos EUA que 1986 foi um ano marcante no que à BD diz respeito. Também em Itália as coisas estavam a mudar, com a publicação, em Setembro de 1986, de uma nova série da editora Bonelli. Uma série escrita por um escritor ainda à procura do seu primeiro sucesso, Tiziano Sclavi, e protagonizada por um detective vegetariano, com um passado de alcoolismo, que sofre de claustrofobia e vertigens e investiga casos sobrenaturais, Dylan Dog. Conforme escreveu o próprio Sclavi trinta anos depois, o primeiro número de Dylan Dog foi recebido com uma “enorme explosão de total indiferença”, ficando, em termos de vendas, no limite do cancelamento. Mas pouco a pouco, a série soube conquistar um público cada vez mais vasto, até se tornar um verdadeiro fenómeno, não só de vendas, mas também cultural. O grande trunfo de Dylan Dog foi conseguir chegar a um público bem mais abrangente do que os tradicionais fãs de BD (ou no caso italiano, dos fumetti) e conquistar leitores junto dos cinéfilos, dos intelectuais como Umberto Eco, dos cultores da literatura e do cinema de terror e, sobretudo, junto do público feminino, conquistando milhares de jovens leitoras - que não conseguiram resistir ao charme e às fragilidades, que aumentam esse charme, de Dylan Dog - algumas das quais, como Paola Barbato, Barbara Baraldi, Rita Porretto e Silvia Mericone, iriam passar décadas depois, de leitoras a escritoras das aventuras do detective do oculto.
Em Portugal, Dylan Dog fez a sua estreia só em 2017, na terceira série da colecção Novela Gráfica, com Mater Morbi, uma história assinada por Roberto Recchioni, o actual responsável editorial da série, bem representativa dos diferentes caminhos trilhados recentemente pela personagem. Para a estreia de Dylan Dog nesta colecção dedicada à editora Bonelli, que vai também encerrar, a opção recaiu em Johnny Freak, uma história mais clássica, onde não falta o dedo do seu criador, Tiziano Sclavi.
Invariavelmente presente na lista das melhores histórias de Dylan Dog de todos os tempos, Johnny Freak foi publicado originalmente em 1993, no número 81 da revista mensal do detective do pesadelo. Contrariamente ao que era habitual nesta época, em que normalmente Tiziano Sclavi lançava a ideia-base para a história, que depois era desenvolvida por outros escritores, no caso de Johnny Freak, o processo foi o inverso. A ideia da história partiu do editor Mauro Marcheselli e coube a Sclavi desenvolver o argumento e os diálogos. Mas essa não é a única particularidade desta história, onde, por uma vez, os horrores sobrenaturais dão lugar a um horror bem real, de uma criança muda a quem são removidas cirurgicamente as pernas, um rim e um pulmão. Inspirada por um artigo sobre tráfico de órgão humanos no Brasil, que Marcheselli tinha lido numa revista, esta história de ficção teria confirmação na realidade mais de uma década depois, em 2005, com o célebre caso de James Whitaker, que foi gerado e nasceu expressamente com o objectivo de ser dador de medula para o seu irmão Charlie, afectado por uma doença degenerativa mortal.
Numa das raras entrevistas que deu, Sclavi, quando lhe perguntaram se se identificava com Dylan Dog, respondeu: “Nem com Dylan, nem com Groucho. Eu sou os monstros.” E essa identificação é bem evidente nesta história, em que o verdadeiro mal se esconde nas pessoas de boa aparência e o corpo deformado de Johnny esconde uma alma de artista e um coração de ouro. Tal como os leitores, que não conseguiram resistir à fragilidade e à ternura de Johnny, o próprio Sclavi também não resistiu a alterar o final mais duro imaginado por Marcheselli, criando um novo final que, segundo o próprio, “foi escrito enquanto as lágrimas caiam sobre o teclado do computador”.
Essa emoção que Sclavi conseguiu transmitir à história, ajudou a que esta se tornasse um dos episódios mais inesquecíveis da série, mas seria injusto não referir o contributo decisivo do desenhador Andrea Venturi, cujo traço elegante e realista, a fazer lembrar Neal Adams, serve de forma admirável as diferentes nuances da narrativa.
Alternando um realismo dinâmico, com um traço mais onírico e expressionista quando reproduz os desenhos de Johnny, Venturi revela-se perfeito, tanto em termos gráficos como narrativos, para uma história com esta importância. Tratando-se de uma história escrita por Sclavi, não podiam falar as referências cinematográficas, sendo a mais óbvia, até pela alcunha que a imprensa dá a Johnny, ao filme Freaks, de Todd Browning, um clássico de 1932 cuja cassete vídeo o escritor emprestou a Andrea Venturi para que este o visse com atenção antes de começar a desenhar a história.
Se o sucesso de Johnny Freak tornava a sua continuação uma opção óbvia em termos comerciais, a forma como a história acabava, não deixava propriamente grande espaço para continuações… Daí que o trabalho de Marcheselli e Sclavi não fosse nada óbvio, nem fácil, o que só vem confirmar a grande capacidade, narrativa e criativa, destes dois grandes profissionais da escrita. Publicada originalmente em 1997, no número 127 da revista mensal, O Coração de Johnny reúne a mesma equipa de Johnny Freak, com a excepção do desenhador, pois Andrea Venturi tinha passado a desenhar a série Tex. Para o substituir, Sclavi escolheu um dos seus desenhadores favoritos; Giampiero Casertano, cuja cumplicidade com Sclavi é bem evidente na carta do escritor que reproduzimos no fim deste volume e que, não por acaso, seria também escolhido para desenhar Doppo un Lungo Silenzio, o regresso do escritor aos argumentos da série em 2016, por ocasião do trigésimo aniversário de Dylan Dog.
Senhor de um traço mais sombrio e caricatural do que Venturi, Casertano tinha um duplo desafio pela frente, pois tinha de se aproximar graficamente do desenho de Venturi nas várias cenas de flash-back que enchem a história, sem abdicar do seu estilo próprio e inconfundível, marcado por um muito conseguido jogo de sombras. A verdade é que o artista milanês, que para os desenhos de Johnny vai beber inspiração em Picasso e Bosch, conseguiu superar com distinção os dois desafios, conseguindo que, pelo menos em termos gráficos, esta continuação esteja perfeitamente à altura do original.
quinta-feira, 26 de abril de 2018
Colecção Bonelli 3 - Dylan Dog: A Saga de Johnny Freak
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