Depois do José de Freitas, chegou a vez deste blog abrir o seu espaço a mais outra pessoa que não eu. Neste caso, ao Filipe Faria, nome grande da fantasia nacional, autor das Crónicas de Allarya e grande fã da DC em geral e do Super-Homem em particular. Foi nessa qualidade que assinou a tradução e o editorial do 1º volume dedicado ao Homem de Aço na Colecção DC Comics. É a versão UNCUT, não censurada deste texto, que aqui se apresenta.
UM ESTRANHO VISITANTE DE OUTRO PLANETA
ENQUANTO SUPER-HERÓI POR EXCELÊNCIA, O SUPER-HOMEM É DONO DE UMA SÉRIE DE COGNOMES, ENTRE OS QUAIS FIGURAM EPÍTETOS COMO HOMEM DE AÇO, HOMEM DO AMANHÃ OU ÚLTIMO FILHO DE KRYPTON (A PAR DE OUTROS, MENOS CONHECIDOS MAS BEM MAIS ALITERATIVOS, COMO ÁS DA ACÇÃO OU MARAVILHA DE METRÓPOLIS). UM DOS MENOS USADOS É ESTRANHO VISITANTE DE OUTRO PLANETA, PROVAVELMENTE POR TER UM EFEITO DE ALIENAÇÃO E SUSCITAR UM CERTO DISTANCIAMENTO DEVIDO À SUA TOADA, QUE REMETE PARA O TÍTULO DE UM FILME SOBRE UMA INVASÃO ALIENÍGENA, OU A DESCRIÇÃO DE UM SER MISTERIOSO, QUIÇÁ AMEAÇADOR.
Está longe de ser essa a primeira coisa que vem à cabeça quando se pensa no Super-Homem, o arquétipo do salvador, o bom samaritano sorridente que salva gatinhos de árvores com a mesma facilidade com que combate déspotas intergalácticos, o modelo heróico a partir do qual os super-heróis como os conhecemos foram moldados. Até pode ter vindo de outro planeta e ser um extraterrestre detentor de poderes que desafiam a compreensão, mas ao mesmo tempo sempre foi visto como o mais humano dos seus pares — se não na acepção biológica do termo, então certamente na ética — pois não só cresceu e foi educado como um de nós, como também sempre o caracterizaram uma incondicional abnegação e uma nobreza de carácter que poucos no Universo DC conseguem igualar. Nas palavras do próprio, algo retiradas do contexto de um dos mais reveladores diálogo deste tomo: «se alguém dedicar a sua vida à humanidade, acabará por se considerar como o mais humano de todos».
É esse o Super-Homem que o público em geral conhece, aquele com o qual se familiarizou ao longo dos anos nas mais variadas encarnações, desde a banda desenhada até ao cinema, com passagem pelos desenhos animados e séries de televisão — aquele que se pode dizer que a personagem na sua essência realmente é. Essa mesma essência é explorada a fundo neste Super-Homem: Pelo Amanhã, que a subverte e desafia ao colocar o Homem de Aço numa situação na qual ele se vê forçado a confrontar e pôr em causa tudo aquilo que representa. Trata-se de uma faceta que raramente vem à tona e que nunca antes fora abordada, não sem ser através das sempre convenientes ferramentas que fazem parte do arsenal de qualquer argumentista de histórias de super-heróis: controlo da mente, possessão demoníaca, indução psicotrópica, clones impostores, realidades alternativas, etc. Pelo Amanhã não recorre a semelhantes artifícios, limitando-se a colocar o herói numa situação na qual um evento misterioso causou o desaparecimento de um milhão de pessoas, entre as quais aquele que é considerado um dos mais importantes esteios da humanidade do próprio Homem de Aço: Lois Lane.
Originalmente rival de local de trabalho e parte integrante de um dos mais famosos triângulos amorosos do mundo da ficção, que dura desde o mítico Action Comics #1 (EUA, 1938), Lois Lane e a relação dela com o Super-Homem é bem conhecida pelo mundo fora, tendo ultrapassado barreiras culturais e artísticas ao tornar-se parte da cultura popular. Ao longo dos anos, entre crises, fraudes matrimoniais, reinícios narrativos, histórias hipotéticas e realidades alternativas, o amor entre ambos foi explorado através de todos os prismas possíveis e imaginários, até que, no ido ano de 1996 (Superman: The Wedding Album), após seis décadas de vai-não-vai, os dois deram finalmente o nó e a famosa repórter acabou mesmo por se tornar na esposa do Homem de Aço, por fim inteirada da mais famosa identidade secreta do mundo dos quadradinhos. No entanto, votos de casamento à parte, ela sempre foi vista acima de tudo como um dos «meros mortais» através dos quais o Super-Homem aprendeu a reconhecer a natureza humana em todo o seu imperfeito esplendor, e por conseguinte um dos mais importantes elos que o unem ao seu mundo adoptivo. Aquando do evento misterioso acima referido, o Homem de Aço vê-se então atingido por dois duros golpes dos quais nem mesmo a sua sobejamente conhecida invulnerabilidade o pode resguardar: a perda da sua mulher, e o saber que falhou para com o mundo, por não ter estado presente para evitar tamanho desastre.
Em resultado do desaparecimento de Lois Lane, é-nos apresentado um Super-Homem bem mais frio e distante que aquele a que estamos habituados, quase assustador no desapego que manifesta e sentindo mais do que nunca o peso do mundo sobre os seus ombros, mesmo enquanto tenta fazer boa cara e passar uma mensagem de esperança àqueles que contam com ele para resolver tudo. Quando a história começa, o nosso herói encontra-se na penúltima fase do luto, a da depressão, na qual se desprende sistematicamente das coisas que nele possam suscitar sentimentos de amor ou afecto, o que, mais uma vez, é um estado de espírito deveras atípico para o Homem de Aço. A tristeza, o arrependimento, o medo e a incerteza de que dá mostras são uma reacção perfeitamente natural e humana em semelhante fase, mas não correspondem àquilo que o mundo espera do seu maior herói em tal situação. É aqui que entra Brian Azzarello, autor mais conhecido por histórias de crime pulp noir (100 Bullets), horror (Hellblazer) e personagens falíveis com os pés bem assentes na terra — à partida, uma escolha no mínimo invulgar para escrever uma aventura sobre um alienígena invulnerável, capaz de voar e de comprimir carvão em diamante com as mãos. Contudo, Azzarello mostra em Pelo Amanhã a sua versatilidade, virando do avesso todas as expectativas ao abordar mais o sagrado do que o profano que dele se esperaria, ficando-se por uma nem por isso velada alusão a armas de destruição maciça e ao papel de uma certa superpotência nos conflitos do Médio-Oriente a título de comentário social. Só que, em vez de se perder em semelhantes considerações e enveredar pelo discurso contestatário fácil através da voz do Super-Homem, Azzarello eleva a personagem ao mesmo tempo que a rebaixa, contrastando-a com a mundanidade que a rodeia e focando mais o super do que o homem que, à partida, seria a sua zona de conforto narrativa. De realçar também que Pelo Amanhã é das poucas histórias em que o Super-Homem se vê como Kal-El, o último filho de Krypton, e não como Clark Kent, a identidade humana com a qual cresceu e foi criado — Clark Kent não aparece sequer, e essa curiosa disfunção na dicotomia que sempre caracterizou a personagem é explorada mais a fundo no segundo tomo.
Que se desenganem, contudo, aqueles que possam julgar que Pelo Amanhã representa uma desconstrução gratuita da figura, ou que os eventos o transfiguram ao ponto de se tratar de outra personagem — este Super-Homem continua a ser movido pelos mesmos motivos de sempre, tal como exemplificado pela sua sucinta e prosaica resposta quando, durante a história, alguém lhe pergunta por que razão ele se dá sequer ao trabalho de tentar salvar toda a gente: «Porque posso». Mal seria, se a única coisa que faz do percursor de todos os super-heróis aquilo que é fosse apenas o amor que sente por uma mulher, afinal de contas. Temos, isso sim, um homem — que, lá por que é super, não deixa de o ser — que perdeu aquilo que lhe era mais querido, e que passou um ano a sofrer as consequências das decisões drásticas tomadas em resultado dessa perda. Perda essa que o deixou incerto quanto à legitimidade de usar os seus tremendos poderes para resolver os problemas de outros à sua maneira, e que o leva a pesar os problemas do mundo contra os do seu foro pessoal, sobretudo quando é confrontado com a pura maldade humana numa altura em que se encontra emocionalmente tão abalado. Mais: o Super-Homem sempre foi uma fonte de inspiração heróica, representando, enquanto mandatário, o melhor que o género humano tem para oferecer e aquilo ao qual todas as pessoas de bem devem aspirar. O que acontece a essa noção, a partir do momento em que um símbolo de esperança como ele corre o risco de perder aquilo que faz dele humano?
Baseada nesta premissa, a DC Comics, editora que sempre se diferenciou da concorrente Marvel devido às suas personagens mais optimistas e idealistas, articula em Super-Homem: Pelo Amanhã um paradigma muito interessante e aparentemente contrário à sua filosofia — e logo através do seu herói mais emblemático. Neste primeiro volume temos uma narrativa ambiciosa, na qual se explora, entre outros elementos, o papel do Super-Homem no seu planeta adoptivo, a legitimidade do uso dos seus poderes para combater outras ameaças que não invasores alienígenas e as criações de cientistas loucos — bem como as inevitáveis consequências que daí advêm — e as proporções quase religiosas que ele foi adquirindo ao longo dos anos, qual deus benevolente a caminhar entre os mortais. A título de exemplo, a repetida ênfase nos motivos, iconografia e simbologia cristãs é tudo menos subtil, veiculadas pela nova personagem Padre Leone através do diálogo estilizado que é o apanágio de Brian Azzarello, e bem patentes nas poses messiânicas e afins detalhes da arte de Jim Lee, que aqui assinala um dos melhores trabalhos da sua lendária carreira. O subtexto religioso trata-se, aliás, de um aspecto incontornável da mitologia do Super-Homem — em cuja origem sempre esteve patente um inegável elemento cristofânico, na forma da analogia secular do filho que é enviado pelo pai para salvar a humanidade, para não falar da sua simbologia como uma divindade solar dos tempos modernos — e a sua prevalência nesta história apenas reforça a quase metafísica crise de fé com que a personagem se depara: deve assumir o papel que boa parte da humanidade de qualquer forma lhe reconhece e agir de forma autocrática para salvar o mundo, qual deus infalível? E qual será o derradeiro preço para a sua humanidade, caso o faça? Talvez já tenha sido pago, quando o próprio reconhece logo no início da história que o seu «pecado» foi «salvar o mundo», qual redentor que começa a pôr em causa o real valor do seu sacrifício em prol da humanidade; isto ao perceber que a verdadeira ameaça reside nos corações daqueles que jurou proteger, o que faz da sua já de si interminável batalha uma luta vã, ainda por cima.
Apesar de tudo, não seria de esperar ver um Super-Homem tão incerto e sorumbático quando a humanidade é vitimada por uma catástrofe sem precedentes, pois em circunstâncias normais uma situação destas seria sem sombra de dúvida «um trabalho para o Super-Homem». Acontece que, ao perder o amor da sua vida e ver-se confrontado com o seu fracasso em proteger aqueles que aprenderam a contar com ele, o Homem de Aço acaba até certo ponto por reverter ao seu legado alienígena em busca de conforto e orientação, por se sentir pela primeira vez na vida como um verdadeiro estranho visitante no seu planeta adoptivo, que devido a isso começa a ver o seu maior herói como uma potencial ameaça. Essa mesma impressão é partilhada pelos companheiros do Super-Homem na Liga da Justiça, que receiam que o maior protector da humanidade possa perder o rumo e pô-la em risco, o que não augura nada de bom para ele ou para o mundo — sendo que o próprio mundo acaba por ter uma palavra a dizer nesta situação, conduzindo a um clímax que, de certa forma, acaba por dar alguma legitimidade aos receios manifestados por humanos e super-humanos em igual medida. E assim se encontram reunidos os ingredientes para uma muito invulgar mas nem por isso menos memorável aventura do Super-Homem, neste primeiro capítulo de um polémico arco de história de grande sucesso comercial, cujo mérito artístico e narrativo lhe merece o lugar nesta colecção.
Filipe Faria
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