Aqui está a versão integral, não censurada, do editorial do 2º volume, escrito mais uma vez pelo José de Freitas. A versão politicimante correcta, que vem no livro, aparece em imagem, pelo que, quem quiser comparar as duas versões, basta carregar nas imagens.
Batman: Para Sempre!
Batman nasceu em 1939 nas páginas da revista Detective Comics - título que para sempre lhe ficou associado, e cujas iniciais iriam dar o nome à editora, até então National Allied Publications. Foi criado por Bob Kane (com a assistência de Bill Finger, que ajudou a definir pormenores finais do aspecto da personagem, e foi o desenhador em muitas aventuras do herói) quase como o oposto do Super-Homem. Onde este era solar, brilhante, apolíneo, e inspirado nos mitos prometaicos de progresso e redenção, Batman é negro e lunar, gótico e ligado às forças das trevas e da vingança, e mergulha as suas raízes nos pulps dos anos 30. Tal como o Super-Homem, é orfão, mas ao contrário dele, Batman sempre viveu à sombra dum tipo de loucura e de comportamento menos convencional, desde o seu relacionamento com as mulheres - até com as super-vilãs como a Mulher-Gato, ele teve casos! - até ao seu lado constantemente torturado pela morte dos pais, a sua origem quase psicanalítica.
Batman teve um sucesso quase imediato, estreando o seu próprio título em 1940 e passando por vários períodos durante a sua já longa carreira. Durante os anos 50 foi progressivamente abandonando o seu lado mais negro, e foi seguindo em parte o gosto da época, tendo passado por fases mais ligeiras, e mesmo humorísticas, que se reflectem por exemplo na série de TV dos anos 60 - não podemos esquecer, no entanto, que foi por um tempo uma das mais populares no mundo! No final dos anos 60, e ao longo da década de 70, autores como Denny O'Neil e Neal Adams, apoiados no lendário editor Julius Schwartz, levaram Batman de volta para um estilo mais próximo das suas origens pulp e noir, com grande sucesso. O seu trabalhou abriu caminho aos anos 80 e às obras de Frank Miller, de Alan Moore, e muitos outros, fazendo com que o herói merecesse plenamente o título de Cavaleiro das Trevas, e regressasse ao seu lado mais negro.
E é exactamente desse lado profundamente reprimido e torturado do Batman que os dois contos que compõem este volume tratam, quase numa relação de Alfa e Ómega. A Herança Mortal, de Grant Morrison (Batman and Son no original, que quase traduziríamos como "Batman e Filhos", numa antevisão do conceito notável que Morrison lançou na sequência, Batman, Inc.), que ele usou mais tarde como ponto de partida duma saga de vários anos que iria mudar para sempre o mito do Homem-Morcego, e o poético e surreal O que Aconteceu ao Cavaleiro das Trevas (Whatever Happened to the Caped Crusader), de Neil Gaiman, que é uma história do fim de Batman, mas do seu fim mítico, e que é também uma porta para o seu renascimento, como a história deslumbrantemente nos mostra. As duas histórias estão aliás interligadas, já que a segunda não teria sido possível se Grant Morrison não tivesse morto Bruce Wayne na sua série, em consequência directa dos acontecimentos que pôs em marcha na história que publicamos neste volume. Mas comecemos pelo princípio.
E o princípio é o evento decisivo da vida de Bruce Wayne, o momento traumático, sem o qual não haveria Homem-Morcego: o crime original, a morte dos pais que para sempre assombrará a vida do Cavaleiro das Trevas, e que possivelmente terá lançado Bruce para perto da loucura, uma loucura que o ameaça constantemente e para a qual a única terapia parece ser o seu heroismo implacável. Onde outros playboys bilionários se teriam abandonado ao niilismo narcisista, Bruce Wayne mergulha num momento de "crescimento pós-traumático", para usar o termo psicológico, e jura vingar a morte dos pais. Ironicamente, é o Joker que lhe explica a possibilidade destes momentos de viragem psicológicos na vida de qualquer pessoa, em Piada Mortal, que teremos a ocasião de ver no quinto volume desta colecção: "Basta um dia muito mau para reduzir o mais são e equilibrado dos homens à loucura total!", falando de si, mas de algum modo também de Bruce Wayne!
Como não confia nem na polícia, nem no sistema, decide tomar a justiça nas mãos e torna-se no Homem-Morcego, uma figura que lança o terror entre os criminosos, mas que talvez tenha mais do que a justiça em mente: Batman tem um lado vingativo, como se não pudesse perdoar nunca aquela noite fatídica numa viela, em que não havia Batman para salvar os seus pais. E mesmo os seus aliados e amigos o dizem, à medida que descobrem que o Batman é talvez mais calculista, mais temível, mais sinistro, que eles próprios imaginavam. Como na revelação extraordinária de que Batman manteve ficheiros secretos sobre os membros da Liga da Justiça, documentando as suas fraquezas e as maneiras de serem derrotados, em Torre de Babel, de Mark Waid e Howard Porter. Ou como naquela cena inesquecível de All-Star Batman & Robin The Boy Wonder, the Frank Miller e Jim Lee, em que o Lanterna Verde lhe lança à cara: "Os teus métodos são repugnantes. Há mais vítimas tuas que acabam no hospital do que na prisão. Sim, chamei-lhes vítimas! De cada vez que estou perto de ti, estás a partir a perna a algum bandido, ou a quebrar os queixos a um polícia!" E esta propensão para a vingança, para a violência, é integral à personagem, e vem já dos primórdios, dos primeiros dias da sua existência, apesar dos interlúdios burlescos, dos anos 50 e da série de televisão.
É este pecado original que Grant Morrison vai endereçar na sua notável saga que durou quase seis anos, e se iniciou precisamente aqui, em Batman and Son. É este o tema central da história de Morrison, a relação de Batman com aquele evento traumático, um tema particularmente bem resumido por Jezabel Jet, que se torna na namorada de Bruce Wayne, e a quem ele revela a sua vida dupla como super-herói. Diz ela: "Tanta coragem, Bruce, tanto génio, teres-te transformado no cavaleiro das trevas que não estava lá naquela noite em que precisaste dele. Mas tudo isto... tudo isto é a resposta de um rapaz perturbado à morte dos seus pais." Morrison começa por introduzir na história um filho, saído duma relação que teve com Talia, a filha de Ras al Ghul - mais uma da longa lista de vilãs com quem ele teve relações, começando na Mulher-Gato e acabando na mesma Jezabel Jet, quase como se fosse atraído pelo lado negro! Damian é quase o oposto do seu pai, educado por assassinos, convencido da sua superioridade, totalmente egocêntrico e algo psicopata, mas a dinâmica pai-filho que se vai estabelecer nesta história irá perdurar até que Damian se transforma no novo Robin - algo que é prefigurado numa cena deste volume em que ele aparece vestido de Robin. Só que quando isso acontece, já Bruce Wayne estará morto, criando assim uma simetria terrível entre os dois, ambos perderam o pai, ambos precisam de provar que são capazes de se tornar heróis!
A morte (temporária) de Bruce Wayne na série Batman RIP marca outro dos temas centrais da ideia de Grant Morrison para a sua personagem: a da imortalidade do super-herói, como símbolo, como arquétipo. Não se trata da imortalidade básica duma personagem que é publicada pela mesma editora há mais de 70 anos, simplesmente porque sim, e porque dá dinheiro, mas da imortalidade que ela alcançou na imaginação dos leitores, e no fundo, dos próprios tempos em que nasceu. Como Morrison não se cansa de dizer, "não é porque são ficcionais que estes heróis são menos reais", e aqui ele não se coíbe de usar todos os métodos para afirmar a imortalidade do Batman, numa exploração meta-ficcional da personagem. Na sua saga de morte e de ressureição do Homem-Morcego, bem como dos episódios em que outro herói toma o seu manto (ficando Damian como o Robin desse outro Batman), e na criação de Batman Inc., a rede internacional de heróis que se reclamam do Morcego, Grant Morrison demonstra o carácter mítico da personagem de modo magistral.
Na segunda história deste volume, também ela ilustrada pelo espantoso Andy Kubert, Neil Gaiman toma um caminho diferente para explicar a imortalidade do Cavaleiro das Trevas, mas não menos original e fiel ao espírito das histórias do Universo DC. Tal como Grant Morrison, Neil Gaiman fez parte daquela "ínclita" geração de autores ingleses que atravessou o Atlântico para revolucionar os comics americanos. Depois de escrever uma série de bandas desenhadas independentes no Reino-Unido, Gaiman começou a trabalhar para a DC através do seu selo adulto, a Vertigo. Curiosamente, o seu primeiro trabalho para a editora foi com uma super-heroína do universo DC, a Orquídea Negra. Mas foi com Sandman, a sua obra-prima, que Gaiman se tornou famoso, e foi também Sandman que lhe abriu as portas das grandes editoras literárias, lançando a sua carreira como escritor de fantástico, com romances como Stardust, e mais tarde American Gods. American Gods foi o romance com que atingiria a fama e que lhe granjeou todos os prémios da ficção-científica e do fantástico, desde o Hugo e o Bram Stoker Award, ao Nebula.
Tal como Morrison, Gaiman parte dum princípio simples e que presta homenagem a toda a mitologia do Batman: a ideia de que todas as histórias publicadas são, de algum modo reais, que todas elas existiram de facto na continuidade da personagem. Mas como é que isso é possível? Como é que se consegue unificar as histórias do Batman original, com as da Segunda Guerra Mundial, com o tratamento que Neal Adams lhe deu nos anos 70, e com o Batman negro e terrível de Frank Miller em O Regresso do Cavaleiro das Trevas, e com todos os outros Batmans dos últimos setenta anos? Unificam-se na morte, e é esse o segredo que é revelado a Bruce Wayne na história, e mais uma vez a ligação ao evento original, criador, da morte dos pais, é explícita. A história, que segue as pisadas de Whatever Happened to the Man of Tomorrow de Alan Moore, aqui explicitamente homenageada por Gaiman, assinala o fim de uma era na história da personagem. Foi publicada nas revistas Batman e Detective Comics, no período em que Bruce Wayne estava morto, sendo publicitada como "a história final de Batman". Mas Gaiman consegue, com grande ironia e elegância, que ela seja não só a última, mas a primeira! Talvez o momento mais surreal da história, mas ao mesmo tempo o mais trágico e mais comovente, seja a incrível narração de Alfred, quando revela que num universo do Batman, foi ele que criou os inimigos para o herói, para o conseguir manter são, e feliz, e foi ele que incarnou o Joker que ressuscitou o herói pela sua própria existência como nemesis. "Como sou inglês, tenho alguma dificuldade em identificar o sítio em que acaba a excentricidade e começa a loucura. Não nego que o Senhor Bruce era excêntrico, e admito que não é normal vestir-se como um morcego gigante para lutar contra o crime", diz o fiel servidor de Bruce Wayne, remetendo-nos de novo para o início: a loucura ou quase-loucura de Batman. "Já li sobre como as crianças traumatizadas por vezes desenvolvem personalidades dissimuladas para se protegerem de memórias dolorosas e reprimidas" afirma Bruce Wayne, numa das histórias de Grant Morrison.
Nas notáveis histórias incluidas neste volume, ambos os autores conseguem mostrar como todas essas personalidades, todas as eras, todos os estilos e contos, podem coexistir num só mito, num só arquétipo heróico. E como diz Morrison, "Muito depois de eu morrer e ter sido esquecido, muito depois de todos nós termos partido, ainda haverá um Batman".
Batman: para sempre!
José Hartvig de Freitas
sexta-feira, 19 de julho de 2013
DC Comics UNCUT 2 - Batman: Herança Maldita
Etiquetas:
Batman,
Censura,
DC,
Grant Morrison,
Levoir,
Neil Gaiman,
Público,
Uncut
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
1 comentário:
Só uma achega: o Batman "morreu" em "Final Crisis", não em "Batman RIP". No n.º 700 da "Detective Comics", Morrison faz a ponte entre o final de RIP e o começo da nova Crise.
Enviar um comentário