Tive oportunidade (e o privilégio) de escrever a introdução para aquele que é o mais importante volume em termos históricos desta colecção. Razão porque vos deixo o texto do Público apenas em imagem. Ao contrário do que tem sido habitual nesta colecção, ste foi um daqueles textos em que foi necessário fazer algumas alterações pedidas pela DC, que naturalmente não afectam a versão que aqui publico, sem quaisquer cortes ou censuras.
E KIRBY CRIOU O QUARTO MUNDO
Se há obras claramente à frente do seu tempo, cujo verdadeiro impacto só é possível abarcar décadas mais tarde, o
Quarto Mundo de
Jack Kirby é um desses títulos. Nome maior dos comics americanos, com um trabalho de uma importância tal, que lhe valeu a alcunha de King (Rei), Kirby, que nasceu como
Jacob Kurtzberg, em 1917, começou a sua carreira artística em 1936. Em 1939, depois de uma breve experiência com animação no estúdio dos irmãos Fleischer, ingressa nos estúdios Eisner/Iger - onde trabalhou também
Bob Kane, o criador de Batman. Aí, sob a orientação de Will Eisner, esteve ligado ao arranque da indústria dos comics, produzindo o mais variado tipo de histórias para várias publicações. Ao longo da sua carreira de décadas, Kirby abordou os mais diversos géneros, do western, às histórias românticas, passando pelas histórias de monstros e o policial negro, mas foi como criador de super-heróis que ganha um lugar maior na história da banda desenhada.
Um percurso que começou em 1940, ao lado de
Joe Simon, com quem criou o Capitão América, e teve o seu apogeu na década de 60, ao lado de
Stan Lee, com a criação da maioria dos heróis da Marvel. Mas no início da década de 70, Kirby decide trocar a Marvel pela DC, regressando assim a uma casa para onde já tinha trabalhado com alguma regularidade durante as décadas de 40 e 50.
Aí, contando com total liberdade e autonomia, Jack Kirby começou a contar a história do Quarto Mundo. Uma saga épica, de uma dimensão cósmica, que levava o termo
Larger than Life - Maior que a Vida - a uma escala inusitada, inteiramente editada, escrita e desenhada pelo King, transpondo para o papel um universo que, conforme refere
Marv Wolfman, que na altura trabalhava na DC, já estava na sua cabeça há mais de quatro anos.
Ainda antes da saída dos três novos títulos que contam a saga dos Novos Deuses e o combate entre Nova Génesis e Apokolips, os personagens do Quarto Mundo fazem a sua aparição na revista
Superman's Pal Jimmy Olsen, o primeiro título onde Kirby trabalha no seu regresso à DC, e para o qual vai recuperar personagens como o Guardião e a Legião dos Ardinas, criadas aquando da sua primeira passagem pela DC (então National Comics) e introduzir conceitos inovadores, como a clonagem e a nanotecnologia.
A presença do Super-Homem na revista - mesmo que os rostos do Homem de Aço e de Jimmy Olsen fossem redesenhados por
Al Plastino, e mais tarde, por
Murphy Anderson, para ficarem mais próximos da imagem oficial do Super-Homem na época, que tinha como modelo o Super-Homem desenhado por
Curt Swan - permitiu apresentar as personagens do que viria a ser o Novo Mundo a um leque mais vasto de leitores. Dessa forma, abriu-se o caminho ao lançamento em Fevereiro/Março de 1971 do primeiro número da revista
New Gods, a que se seguiram as revistas
The Forever People, no mesmo mês, e
Mister Miracle, em Abril, completando o conjunto de quatro títulos bimestrais (o que obrigava Kirby a desenhar duas revistas por mês) que contam a história do Quarto Mundo.
O tema central da saga do Quarto Mundo é a eterna luta entre o Bem e o Mal, representados por Nova Génesis e Apokolips, dois mundos opostos nascidos do conflito cósmico que levou à queda dos Antigos Deuses e ao aparecimento dos Novos Deuses. Para pôr um termo à guerra sem quartel que ameaçava destruir galáxias, Izaya, o Pai Celestial de Nova Génesis, e o impiedoso Darkseid de Apokolips, decidem trocar filhos como reféns, de modo a assegurar uma trégua. Assim, Órion, o filho de Darkseid, vai ser criado em Nova Génesis, enquanto Scott Free, o filho de Izaya, é enviado para Apokolips.
É este momento fulcral da história do Quarto Mundo que nos é contado em
O Pacto, o episódio que abre este volume e que é considerado por muitos como a melhor história de sempre de Kirby. Este episódio é também importante por dar a conhecer a origem de Scott Free, cuja fuga de Apokolips para a Terra, onde se tornará o Sr. Milagre, traz a guerra entre Apokolips e Nova Génesis para o nosso mundo e dá a Darkseid o pretexto ideal para pôr fim à trégua entre os dois mundos. É dessa guerra sem quartel, que põe em risco a sobrevivência do nosso planeta, de que o leitor terá uma visão panorâmica neste volume que proporciona uma primeira aproximação, necessariamente sintética, à história do Quarto Mundo.
Se quisermos encontrar um adjectivo que melhor descreva o trabalho de Kirby em
O Quarto Mundo, o único adequado é mesmo
kirbyesco, mas épico também está bastante próximo. Essa dimensão épica está patente na força majestática dos desenhos, na corporalidade
miguelangelesca das figuras, na pura energia que irradia das páginas cheias de acção, na maquinaria impossível, radiante de poder, que Kirby desenhava como ninguém, e também no próprio tom empolado da narrativa e dos diálogos. Aspectos que, aliados aos próprios nomes das personagens, que remetem para a Bíblia (como Izaya e Esak), para a mitologia clássica (como Órion), ou para a literatura (Desaad, o Cruel, lembra o
Marquês de Sade, e Kalibak, o filho monstruoso de Darkseid, evoca Caliban, de
A Tempestade, de
Shakespeare) mostram a vontade de Kirby em criar uma mitologia para o século XX, pois como o próprio refere numa entrevista de 1984, republicada quase três décadas mais tarde na revista
Jack Kirby Collector: "com os Novos Deuses, senti que estava a criar uma mitologia para os nossos tempos. Parecia-me que essa mitologia entretinha os leitores, como era o meu objectivo. O que eu estava a fazer era uma parábola dos nossos tempos."
Mas a verdade é que, ao contrário do que o próprio Kirby pensava, a sua criação estava muito à frente do seu tempo e os leitores não estavam ainda preparados para uma história cuja acção se espalhava por quatro títulos diferentes e que lhes pedia uma capacidade de assimilar um grande leque de personagens e de cenários, que fugiam daquilo a que eles estavam habituados. O resultado foi o cancelamento das revistas
New Gods e
The Forever People ao fim de apenas 11 números e de Mr. Miracle (a mais próxima do registo tradicional das histórias de super-heróis) após 18 números, numa fase em que a história idealizada por Kirby estava ainda bem longe de estar contada. Só em 1984, aproveitando a reedição da série
New Gods, como uma mini-série de seis volumes, Kirby pôde continuar a contar a história do Quarto Mundo, primeiro, com
Even Gods Must Die, uma nova história de 48 páginas, incluída no sexto volume dessa reedição, que abre o caminho para
The Hunger Gods, uma novela gráfica original, que concluiu a série, deixando no entanto a porta aberta para a utilização das personagens criadas pelo King por outros autores.
Mesmo que Kirby não tenha conseguido contar a história que queria, da maneira como queria, o impacto do Quarto Mundo no universo DC é incontornável. Basta ver esta colecção, onde Darkseid é a ameaça principal dos volumes dedicados à Liga da Justiça e à Legião dos Super-Heróis.
Em
American Gods,
Neil Gaiman defende que os deuses só sobrevivem enquanto houver quem acredite neles. Por isso, enquanto houver novos leitores a descobrir a magia e a glória do Quarto Mundo de Jack Kirby, os Novos Deuses de Apokolips e Nova Génesis manter-se-ão bem vivos.